sábado, 22 de março de 2003

Os números da guerra

Dizia Lispector: “A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceita ler todo dia de guerra, dos números da longa duração”. Imagino o que ela não diria hoje, em que o número de mortos é tratado como conseqüência menor, efeito colateral, quase irrelevante, um preço a pagar pela guerra.

Preço. O número da guerra que tem importância hoje é o seu preço. Quanto vai custar? Quanto país X ou país Y vai lucrar com ela? Não sei o que me choca mais, abrir o caderno Mundo ou o caderno Dinheiro.

A guerra do Bush precisa ser rápida não porque assim é menor o número de vítimas, mas porque assim há menos sobressaltos nos mercados. Algumas pessoas dão entrevista preocupadas com a guerra: ela pode trazer prejuízos ao país se durar muito, pode provocar instabilidade, inflação.

E eu que pensava que o problema da guerra eram suas vítimas, eram seus mortos e mutilados, as pessoas sem lar, as famílias sem seus entes, o horror, a bestialidade que é toda guerra. Mas abro os jornais e descubro que a guerra pode ser boa ou ruim para a popularidade do presidente X, que pode diminuir o preço do barril do petróleo, que cada míssil custa um milhão de dólares. E uma vida? Quanto custa uma vida? Pelo jeito nada. Vidas temos em excesso no mercado.

A que ponto chegamos! Temos mísseis teleguiados e pessoas morrendo de fome. Temos presidentes bem vestidos, passeando com o cachorro e pessoas deixando pra trás o que levaram uma vida para construir, na esperança de manter pelo menos a vida. Temos soldados brincando em piscinas de plásticos e crianças esfarrapadas vendendo cigarros a eles. Temos pessoas assistindo os bombardeios pela tv e comemorando a cada nova explosão e hospitais sem equipamentos cuidando dos feridos dessa pirotecnia macabra. Temos soldados lendo a bíblia para depois matar centenas de pessoas. Temos pessoas lendo o Alcorão e depois caminhando rumo à morte certa, na esperança de matar alguém. Temos um mundo de injustiça onde a vida não vale nada.

Nessas horas, não há como não dar razão ao anarquista estadunidense Henry Thoureau: quanto mais eu conheço os homens, mais eu admiro os animais.

Campinas, 22 de março de 2003

sexta-feira, 21 de março de 2003

Abaixo a liberdade de imprensa!

Não li a reportagem, apenas vi a capa e li uma nota que saiu na Folha de São Paulo. Diz a revista Veja (Readers Digest Veja) que Bin Laden esteve no Brasil, em Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira, para ser mais específico.

Com todo o respeito, mas prefiro acreditar em duendes, acreditar que a Xuxa contribui para a formação de valores que respeitam a dignidade humana, que ela em momento algum de sua carreira estimulou a erotização infantil ou o consumismo, que a guerra do Bush é um bem para a humanidade, que FHC foi um bom presidente, e que todo natal Ariel Sharon se veste de papai-noel e sai distribuindo balas às crianças palestinas, enquanto estas entoam canções natalinas, do que acreditar na Veja.

Quem leu o livro O Castelo de Âmbar, do Mino Carta, ex-redator-chefe da Veja na década de 70 (hoje na Carta Capital), sabe que os Civita, detentores da editora Abril conhecem tão bem o Brasil que não devem nem saber se Brasil se escreve com Z ou com S. E conhecendo tão bem o nosso país, claro que eles põe os interesses da nação sempre em primeiro lugar. Que o diga as análises políticas presentes na revista, as reportagens imparciais sobre o MST (“rebeldes sem causa”) e a cobertura pós 11 de setembro.

Como o governo estadunidense deve pagar mais do que o brasileiro, a revista Veja não tem dúvidas em assumir as posições do Império. E o Império vem há muito dizendo que a região da tríplice fronteira é ninho de terrorista. Já foi provado e comprovado que é lorota, mas os EUA insistem que ali é ninho de terrorista, assim como o Iraque é uma ameaça iminente aos EUA. Sou procedente da região, e é certo que Foz do Iguaçu não é uma flor que se cheire: convivem ali diversas máfias, o tráfico de drogas, armas, cargas, carros roubados rola a solta. Mas daí para ninho de terroristas a distância é enorme. Não para Veja, que não hesita em forjar reportagens, sempre visando dar razão a quem paga mais, no caso, os EUA. Talvez numa próxima edição mostre que as Farc já dominam 50% da Amazônia brasileira, envenenando a água, matando hipopótamos-do-chifre-amarelo apenas para treinar pontaria e incendiando madeiras de lei, e que somente com uma ação militar norte americana é que o perigo será afastado.

Como dizia o meu professor de história do cursinho, também formado em ciências sociais, Fernando Gelfuso: para evitar contaminação, não use a Veja nem pra substituir o papel higiênico. Ou como diria Mafalda: Abaixo a liberdade de imprensa! Às vezes é preciso.


Campinas, 21 de março de 2003