segunda-feira, 7 de junho de 2004

Da chacina da Candelária a de Benfica

Fui assistir este fim de semana à peça “Agora e na hora de nossa hora”, de Eduardo Okamoto, do grupo Matula Teatro. O grupo é um dos muitos de Barão Geraldo (o distrito da Unicamp), um dos pólos cênicos do Brasil, que se desenvolveu ao redor do Lume. O texto, inspirado no trabalho do autor no “Projeto Gepeto – Transformando Sonhos em Realidade”, que atua junto a crianças em situação de risco psicossocial (percebe-se claramente no texto a colagem de frases e idéias de crianças nessa situação), no livro “Macário” do mexicano Juan Rulfo e na chacina da Candelária, conta a história de um garoto de rua, o Pedrinha, que presenciou a chacina.
O espetáculo não gira em torno da chacina da Candelária: ela é apenas um gancho para trazer à tona o(s) problema(s) das crianças que vivem na rua. O autor conseguiu captar bem várias nuances dessas crianças: uma hora é o animal que nós de classe média costumamos enxergar, grunhindo feito um porco enquanto come, outra é uma criança que brinca inconseqüentemente de bater a cabeça no chão para “ouvir o tambor”; uma hora canta o hino do Comando Vermelho, outra o hino da igreja.
Mas o que me chamou muito a atenção foi a incapacidade da criança em lidar com a própria situação e com o que ocorre em seu entorno: o medo e a passividade de quem ainda não se revoltou contra a condição da vida que leva.
Pedrinha dorme em cima de uma banca de jornais, para os pecados não conseguirem alcançá-lo, e para não ser apedrejado enquanto dorme. Procura evitar sentir em que parte do corpo passeiam as baratas para conseguir dormir. Um dia, depois de fumar crack, vai da Candelária à Central, onde “tem alemão”, e precisa sair correndo para não apanhar. Em nenhum momento esboça qualquer revolta. Mesmo com a chacina, não há qualquer revolta contra os policiais. A única coisa contra a qual se revolta são os ratos, que não deixam ninguém dormir, nem os moradores de rua, nem os policiais. E é por causa dos ratos que os policiais às vezes saem à caça dos meninos de rua: os culpados pela chacina são os ratos.
Levando em consideração que quem escreveu a peça tem grande experiência com tais crianças, e não deve, portanto, se tratar de uma mera abstração do autor de como seria uma criança de rua, fica a pergunta, ou melhor, o tapa na cara: o que estamos fazendo com as nossas crianças? Diminuição da idade penal? Sem dúvida a criança que mata por causa de um tênis já perdeu sua inocência de criança, já não acha que o problema da cidade são os ratos que não deixam ninguém dormir, já não acha que é normal comer quando tem comida, passar fome quando não tem; mas por que nós deixamos chegar a esse estágio? Serão essas crianças más por natureza? Se assim for, nada mais nos resta que matá-las em série. Mas a chacina da Candelária chocou a todos, e é a prova que de que nós temos compaixão por essas crianças, nos preocupamos – na medida do possível – com elas. Será? No Rio de Janeiro são assassinados 450 crianças de rua todos os anos, são mais de quatro chacinas da Candelária por mês. Mesmo as 64 crianças sobreviventes da Candelária, quem se ocupou delas? Pelo menos 40 dessas crianças também foram assassinadas. Enquanto isso, nós, nas nossas confortáveis poltronas, de frente para nossa tevê 33 polegadas, falamos, na melhor das hipóteses, “que absurdo!”, quando não comemorando que esses bandidos tenham sido mortos. Vale lembrar a frase do secretário de segurança do estado do Rio, Anthony Garotinho, sobre a rebelião em Benfica: 30 presos foram assassinados e, INFELIZMENTE, um agente penitenciário também (não sei exatamente a frase, mas sei que o infelizmente veio antes do agente penitenciário somente). Não, senhor Garotinho, infelizmente foram assassinadas 31 pessoas, das quais 30 se encontravam em regime de reclusão. Alguém pode argumentar que trata-se de um caso diferente, os presos de Benfica já eram marmanjos, não tinham mais conserto. Sem entrar na questão se os presos têm conserto ou não, apenas lembro: um dia esses marmanjos também foram crianças que acreditavam que os ratos eram os culpados de tudo. Um dia eles perderam a inocência, quem estava ao lado deles?

PS: Teatro do absurdo: 147 de 190 presos fogem pela porta da frente de uma delegacia de São Paulo. A capacidade da cadeia era de 30 pessoas.

Campinas, 07 de junho de 2004

segunda-feira, 31 de maio de 2004

O parlamentarismo extra-oficial brasileiro

Tenho muito pouco conhecimento para dizer o que acho do presidencialismo e do parlamentarismo. Não gosto muito da monarquia, seja ela absolutista ou parlamentarista. No mais, o que sei sobre presidencialismo e parlamentarismo é que no segundo, quando há uma crise no governo, o país não pára, a exemplo do primeiro, porque as funções foram divididas: se o problema é com o primeiro-ministro, ainda sobra o presidente para segurar as pontas e vice-versa.
A constituição brasileira de 88, pelo que dizem, é uma constituição parlamentarista, mas esqueceram de mudar o sistema de governo e adaptar a ela, e o resultado é um certo anacronismo, que as diversas emendas constitucionais tentam consertar. Em meados da década de 90 houve um plebiscito para decidir a forma de governo, e ganhou o presidencialismo, mas isso não intimidou os adeptos do parlamentarismo, como FHC e Marco Maciel, que durante o reinado fernandido trabalharam duro na tentativa de mudar o sistema. Não conseguiram, pelo menos oficialmente.
Extra-oficialmente, entretanto, a impressão que dá é que o Brasil possui na prática um primeiro-ministro, que atende pelo nome de Antônio Palocci, e ocupa oficialmente o posto de ministro da economia. Lula, aparentemente, tem feito um mero papel figurativo no governo: inaugurações, discursos, viagens internacionais; enquanto Dirceu e Palocci são os que realmente mandam e fazem o governo funcionar (sic). Mas a posição de Palocci parece ser de destaque maior do que a de Dirceu, e que a do presidente. Basta acompanhar os desmentidos que Palocci tem feito a Lula. Lula anuncia a correção da tabela do Imposto de Renda, e logo em seguida Palocci anuncia que não haverá correção da tabela. A novela do reajuste (sic) do salário mínimo foi outro episódio em que quem bateu o martelo foi Palocci.
Como disse acima, não defendo nem o parlamentarismo nem o presidencialismo, mas acho que é importante mudar a constituição antes de mudar o sistema político. Se é para o Brasil ter primeiro-ministro, que crie o cargo de primeiro-ministro, com todas as firulas inúteis que o cargo exige, como acontece na Índia. A Índia por sinal, é um ótimo exemplo de como funciona o parlamentarismo: a população elege um partido para a câmara, na esperança de que assuma quem o partido disse que assumiria, os mercados dizem depois se aprovam ou o nome indicado pelo partido (no caso indiano a candidata não foi aprovada), e a câmara depois ratifica a escolha dos mercados.
Agora, monarquia não! Eu não agüentaria passar o resto da minha vida sendo obrigado a ver o Lula fazer discursos demagógicos e inaugurações de carros velhos. Que pelo menos cada quatro (ou oito) anos apareça uma cara nova pra fazer a gente de palhaço, enquanto quem realmente manda no governo realiza seus “meeting” com a finança internacional.

Campinas, 31 de maio de 2004