quinta-feira, 8 de julho de 2004

Capital 1 x 0 Trabalhadores

Em meus vinte e poucos anos de existência nunca trabalhei. Pelo menos nunca trabalhei um trabalho com horários, rotina e os habituais ritos que um emprego possui. Não que isso seja um orgulho para mim, mas tampouco trata-se de uma vergonha, afinal, estou me aperfeiçoando para o dia em que se faça necessário eu labutar para ganhar a vida. É certo que me declaro, já há muito tempo, um vagabundo assumido. Isso já me causou algumas discussões com meus pais e um certo desgosto para eles, que trabalham desde antes dos 15 anos. Mas não adianta, sou vagabundo assumido e com orgulho. Preciso, todavia, sempre que assumo essa minha posição, dar algumas explicações da vagabundagem que tanto almejo: meu sonho de vida não é arranjar uma mulher rica para parasitar, ou na ausência desta, parasitar meus pais, ou então ganhar na loteria e passar a vida pendurado numa rede, tomando água de côco. Acho importante o trabalho, mas acho que ele não deve ser – tal como nossa sociedade capitalista prega – a coisa mais importante da vida. Mais importante que o trabalho deve ser os dividendos que ele rende, onde utilizá-los, o tempo livre, e onde aproveitá-los. Claro que em um país cujo salário mínimo é de R$ 260,00, e a renda média do trabalhador caiu mais de 30% nos últimos seis anos, é um disparate elitista falar em onde utilizar o salário e como aproveitar o tempo livre: para maior parte da população brasileira o salário vai dar, depois de muita economia e muitos cortes, para pagar as despesas mais básicas necessárias à sobrevivência na selva de pedra – isso se ninguém na família ficar doente e for preciso recorrer a empréstimos para comprar os remédios –; o tempo livre das oitos horas do emprego serão gastos, em boa medida, para se locomover do local de trabalho até a casa, e aí, já esgotado em suas forças, resta ao trabalhador desmontar na poltrona da sala – caso haja poltrona e caso haja sala –, ligar a tevê para não pensar e não sentir, e tentar recuperar um pouco da vitalidade para ter um prazer antes de dormir. Mas isso não nos impede de imaginar uma sociedade diferente. Na verdade, creio eu, imaginar um mundo radicalmente diferente do que o que está aí atualmente é necessário para que nossas vidas não caiam num vazio sem sentido, que habitualmente tenta-se preencher consumindo lixo industrial-publicitário. Esse mundo diferente sonhado pode ser tanto terreno quanto supra-terreno, preferindo eu a primeira opção, por julgá-la força motriz de revoluções e grandes transformações sociais.
Nas relações de trabalho uma meta que eu acho que a humanidade deveria perseguir é “pouco trabalho para todos”, ou seja, todos trabalhando, mas pouco. Esse lema é independente do sistema econômico, seja ele capitalista, socialista, anarquista ou qualquer outro que surja nos próximos anos. Um dos expoentes dessa cruzada contra o trabalho é o sociólogo italiano Domenico de Masi, defensor do “ócio criativo”. Quando vi a entrevista dele para o programa Roda Viva, da Cultura, já há muitos anos, me identifiquei com suas idéias (apesar de então eu, ainda imbuído da idéia de que o trabalho enobrece o homem, não me assumia como vagabundo). De forma muito grosseira, as idéias do italiano são de que as pessoas passarão a trabalhar cada vez menos horas por dia, e a ter férias cada vez maiores. Todo esse tempo livre que elas terão será utilizado para aperfeiçoar-se intelectualmente, através de viagens e leituras; desenvolver-se como cidadão e relaxar. Minha opinião é que o autor se esqueceu que no meio do desenvolvimento do intelecto e da cidadania existe a indústria cultural, existe a indústria cultural no meio do desenvolvimento do intelecto e da cidadania.
Enfim, estou nesta conversinha de cerca Lourenço, como diz minha mãe, e ainda não falei o que queria realmente falar. Me assustei hoje, ao abrir o jornal, e ver que o capital tem ganho cada vez mais espaço, e os trabalhadores são cada vez mais explorados e oprimidos. Sei que este papo parece antigo, coisa de marxista que parou no século XIX, mas trata-se de algo muito atual. Pois não é que na Alemanha e na França estuda-se aumentar a jornada de trabalho!? Países que estavam na vanguarda do movimento de redução de jornada de trabalho (em ambos os países a jornada é de 35 horas semanais), sentem o peso da concorrência dos escravos asiáticos e dos workaholics puritanos estadunidenses. O primeiro golpe já foi dado: a Siemens de Bolcholt, Alemanha, fez acordo com o sindicato para aumentar a jornada de 35 para 40 horas semanais, sem aumento de salário, sob a chantagem de transferir a fábrica para a Hungria. O governo francês, de centro-direita, comandado por Jacques Chirac também tem demonstrado sua vontade de mudar a jornada na França novamente para 40 horas semanais, alegando que a jornada de 35 horas é a responsável pelo baixo crescimento do país e que ele não diminuiu o desemprego.
Se pensar bem, o mundo atual se desenha assustador para o futuro próximo, pelo menos para os trabalhadores assalariados e os desempregados. A esquerda foi aniquilada por uma propaganda massiva que pregou a falência do comunismo, a social-democracia européia, modelo para as sociais-democracias do mundo, está perdida, não sabe o que fazer; a direita se aproveita e avança sobre os direitos dos trabalhadores, tratados como privilégios; e não surge nenhuma alternativa forte e aglutinadora ao que está aí. O exemplo alemão, onde os sindicatos são bem mais fortes que os sindicatos de países subdesenvolvidos, mostra o poder desproporcional que o neoliberalismo deu ao capital nas negociações com trabalhadores e estados. Até que ponto isso vai, não sei; mas tenho esperança de que dessas constantes ameaças (e perdas) que os trabalhadores tem sofrido logo surja uma nova alternativa, um marxismo adaptado às condições atuais, sem tratar Marx como um profeta, e sem acreditar na naturalidade do sistema capitalista. Até lá, tratemos de resistir!

Campinas, 08 de julho de 2004

segunda-feira, 7 de junho de 2004

Da chacina da Candelária a de Benfica

Fui assistir este fim de semana à peça “Agora e na hora de nossa hora”, de Eduardo Okamoto, do grupo Matula Teatro. O grupo é um dos muitos de Barão Geraldo (o distrito da Unicamp), um dos pólos cênicos do Brasil, que se desenvolveu ao redor do Lume. O texto, inspirado no trabalho do autor no “Projeto Gepeto – Transformando Sonhos em Realidade”, que atua junto a crianças em situação de risco psicossocial (percebe-se claramente no texto a colagem de frases e idéias de crianças nessa situação), no livro “Macário” do mexicano Juan Rulfo e na chacina da Candelária, conta a história de um garoto de rua, o Pedrinha, que presenciou a chacina.
O espetáculo não gira em torno da chacina da Candelária: ela é apenas um gancho para trazer à tona o(s) problema(s) das crianças que vivem na rua. O autor conseguiu captar bem várias nuances dessas crianças: uma hora é o animal que nós de classe média costumamos enxergar, grunhindo feito um porco enquanto come, outra é uma criança que brinca inconseqüentemente de bater a cabeça no chão para “ouvir o tambor”; uma hora canta o hino do Comando Vermelho, outra o hino da igreja.
Mas o que me chamou muito a atenção foi a incapacidade da criança em lidar com a própria situação e com o que ocorre em seu entorno: o medo e a passividade de quem ainda não se revoltou contra a condição da vida que leva.
Pedrinha dorme em cima de uma banca de jornais, para os pecados não conseguirem alcançá-lo, e para não ser apedrejado enquanto dorme. Procura evitar sentir em que parte do corpo passeiam as baratas para conseguir dormir. Um dia, depois de fumar crack, vai da Candelária à Central, onde “tem alemão”, e precisa sair correndo para não apanhar. Em nenhum momento esboça qualquer revolta. Mesmo com a chacina, não há qualquer revolta contra os policiais. A única coisa contra a qual se revolta são os ratos, que não deixam ninguém dormir, nem os moradores de rua, nem os policiais. E é por causa dos ratos que os policiais às vezes saem à caça dos meninos de rua: os culpados pela chacina são os ratos.
Levando em consideração que quem escreveu a peça tem grande experiência com tais crianças, e não deve, portanto, se tratar de uma mera abstração do autor de como seria uma criança de rua, fica a pergunta, ou melhor, o tapa na cara: o que estamos fazendo com as nossas crianças? Diminuição da idade penal? Sem dúvida a criança que mata por causa de um tênis já perdeu sua inocência de criança, já não acha que o problema da cidade são os ratos que não deixam ninguém dormir, já não acha que é normal comer quando tem comida, passar fome quando não tem; mas por que nós deixamos chegar a esse estágio? Serão essas crianças más por natureza? Se assim for, nada mais nos resta que matá-las em série. Mas a chacina da Candelária chocou a todos, e é a prova que de que nós temos compaixão por essas crianças, nos preocupamos – na medida do possível – com elas. Será? No Rio de Janeiro são assassinados 450 crianças de rua todos os anos, são mais de quatro chacinas da Candelária por mês. Mesmo as 64 crianças sobreviventes da Candelária, quem se ocupou delas? Pelo menos 40 dessas crianças também foram assassinadas. Enquanto isso, nós, nas nossas confortáveis poltronas, de frente para nossa tevê 33 polegadas, falamos, na melhor das hipóteses, “que absurdo!”, quando não comemorando que esses bandidos tenham sido mortos. Vale lembrar a frase do secretário de segurança do estado do Rio, Anthony Garotinho, sobre a rebelião em Benfica: 30 presos foram assassinados e, INFELIZMENTE, um agente penitenciário também (não sei exatamente a frase, mas sei que o infelizmente veio antes do agente penitenciário somente). Não, senhor Garotinho, infelizmente foram assassinadas 31 pessoas, das quais 30 se encontravam em regime de reclusão. Alguém pode argumentar que trata-se de um caso diferente, os presos de Benfica já eram marmanjos, não tinham mais conserto. Sem entrar na questão se os presos têm conserto ou não, apenas lembro: um dia esses marmanjos também foram crianças que acreditavam que os ratos eram os culpados de tudo. Um dia eles perderam a inocência, quem estava ao lado deles?

PS: Teatro do absurdo: 147 de 190 presos fogem pela porta da frente de uma delegacia de São Paulo. A capacidade da cadeia era de 30 pessoas.

Campinas, 07 de junho de 2004