quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

Antes tarde do que nunca

Tem chous que são realmente difíceis de esquecer. Alguns ganham uma ajuda extra, como a multa por estar trafegando a 80 km;h às 4h da manhã em uma avenida deserta de Campinas. A multa aconteceu na volta do festival Claro que é rock, que aconteceu faz tempo. Mas deixemos o final para o final: comecemos do começo.
O almoço, frango assado e macarrão de forno, corria bem, a conversa ia animada, mas já se fazia hora de partirmos para São Paulo, para assistir ao festival Claro que é rock. A idéia era chegar para o chou dos gaúchos do Cachorro Grande. Eu bem que insisti para sairmos antes, mas os entendidos no trajeto disseram que uma hora e meia era tempo suficiente para chegar até o local do chou. Não tendo muito argumento além do "eu acho que pode ter congestionamento" ou "olha que podemos demorar pra achar o dito lugar", não me restou outra coisa que aceitar o tempo dos entendidos. Um atrasado no horário que eu já achava tarde ajudou a me contagiar com certo mau-humor que já rondava o carro. E como bom crítico de arte, consegui potencializar esse mau-humor (afinal, o meio é para os medíocres). A viagem correu tranqüilo e não demoramos muito para chegar ao local do festival. Ainda estávamos parados no trânsito, para entrar no estacionamento, quando escutamos um som mal definido, mas que conseguimos definir como sendo do Cachorro Grande. Estava começando aquela hora, ou seja, na hora marcada, pontualmente, como eu imaginava. Maravilha, maravilha, estacionamos o carro e fomos relativamente correndo para a entrada. Conseguimos chegar a tempo de escutar o 'falou, galera' claramente. Sequer deu pra ver os infelizes no palco (o que não é desagradável, dado a boa figura dos integrantes da banda). Claro que isso não me deixou mais mal-humorado.
Enquanto tocavam bandinhas desconhecidas com sons inspirados em Charlie Brown Jr. fomos dar uma volta pelo local. Seis reais o pedaço de pizza, três o copo d'água, e nisso percebemos que era permitido entrar com comida, de onde a fabulosa idéia: poderíamos ter trazido alguns dos doze sanduíches que deixamos no carro! Mas era tarde para tal idéia, já estávamos dentro da parada, e o negócio foi se aguentar - já que os pão-duros que acompanhavam o pão-duro que agora escreve não quiseram comprar nada para depois eu pussungar.
Ficamos andando por aquele mar de 'indies' que para ser diferentes ficam todos iguais, com um ar irritantemente de imbecil que se acha o alternativo. Na última das bandinhas desconhecidas fomos para o gramado, já que ela era até legal (pena que não lembro o nome agora).
Depois dessa bandinha legal - que não ganhou - começaram os chous grandes. A primeira banda foi Good Charlote. A banda é feita por uns irmão que trabalham também de VJs na MTV dos EUA, e serviu para atrair uma pirralhada federal e vender celular para pré-adolescentes - só dava menina nos seus 13, 14, 15 anos. Mas fora o visual milimetricamente pensado para parecer um pouco jogado, aquele bando de criança gritando e os passinhos ensaiados no melhor estilo das "boys band", como Five (ou outra que o valha e eu felizmente não me lembro e nem faço questão de puxar pela memória), o som dos caras era uma bosta! Um Blink 182 - que já é uma grande bosta - piorado.
O segundo chou foi da Nação Zumbi. Chou excelente, que terminou com os clássicos de quando tocavam com Chico Science (sei lá como se escreve), e fez a galera pular. Em seguida foi a vez do Fantômas, que substituíram o Suicidal Tendencies, que desistiu por causa de uma hérnia de disco do vocalista. Chou estranho, esquisito, e impliquei com o guitarrista com cabelo de Valderrama. Se eu fosse dar nota em estrelinhas, como todo comentador de arte que se preze gosta de fazer, daria *** em 5. Ou seja, médio. A seguir, Flaming Lips. Chou que eu estava com muitas expectativas e que não me decepcionou. Chou alegre, muito pra cima, super divertido. Com direito a bolha espacial em que Wayne Coyne entra e passeia por cima do público (passou por cima de mim!), videokê, bichinhos de pelúcia pulando e dançando no palco, serpentina, câmera junto ao microfone, música com brinquedo de criança, boneco de freira cantando, bis dos refrões das músicas (já que era a parte que o pessoal sabia ou conseguia cantar) e dois covers excelentes: começou com Bohemian Rapsody, do Queens, e terminou com War Pigs, do Black Sabbath. Maravilhoso! Depois do Flaming Lips seria difícil um chou melhor. E realmente não houve. Iggy Pop, que entrou no palco na seqüência fez um chou porra-loca. Com seus 138 anos, chamou o público para o palco, pulou no meio da galera, correu ensandecido para lá e para cá. Cansou só de assistir. Ponto fraco do chou foi o ter tocado duas vezes I wanna be your dog e o fato de eu ter ficado longe do palco, para ter tempo de correr pro outro palco (esqueci de dizer, eram dois palcos, um que cada extremidade do campo de futebol) e assistir Sonic Youth também de perto (o outro foi Flaming Lips). Foi o chou mais criticado (dos que merecem crítica, ou seja, exclui-se aqui Good Charlote). Entraram, deram uma banana pro público e ficaram se masturbando nas guitarras. Salvo a bateria que estava um pouco baixa, o chou foi excelente! Tocaram principalmente músicas do novo disco, que é excelente, e alguns clássicos mais pop de antigamente, como do disco Dirty (não tocaram 100%, infelizmente, mas esas eles já tinham aqui tocado em 2000). Aqueles que acharam o chou fraco certamente se divertiriam bastante com Jota Quest ou Lulu Santos. A seguir, Nine Inch Nails, que voltou com disco novo depois de uma longa pausa. O chou também estava muito bom, com a iluminação do palco muito bem feita. Mas eu estava muito cansado, já tinha me arrebentado o bastante no Flaming Lips e Sonic Youth. Saímos antes do fim do chou, fomos ultrapassados, na estrada, por um carro que ia a mais de 200 km/h, e quase chegando em casa tomamos, sem saber, aquela multa do radar citada no início deste relato.
Pontos positivos: a idéia dos dois palcos em cada canto do campo, poder entrar com comida, os chous do Nação, Flaming, Iggy, Sonic e Nine.
Pontos negativos: os preços: o ingresso, apesar de relativamente barato (R$ 60,00 a meia entrada), ainda assim estava caro, a comida era um assalto!; a falta de mais bandas nacionais de peso, como CSS, Autoramas, Mombojó, Relespública; as bandas desconhecidas selecionadas, aquele bando de 'indie' fazendo pose.
Ponto feito pela tal da Isa K.: Good Charlote.

Pato Branco, 21 de dezembro de 2005

sábado, 12 de novembro de 2005

O 68 dos pobres

Creio eu que a escola (na verdade, não só a escola, mas não fujamos do nosso tema) ao tentar sistematizar o conteúdo a ser ensinado, acaba por ter de ignorar o caráter dinâmico do conhecimento e, pior, simplificar as contradições existentes no mundo, no conhecimento, ou na tentativa deste de explicar aquele. Resultado: corre-se permanentemente o risco de ensinar algo errado. Uma das coisas que me ensinaram, eu me lembro bem, é de que quem nasce no Brasil é brasileiro, assim como quem nasce na China é chinês e quem nasce na França é francês. Não cheguei a ler toda a tinta impressa para relatar e comentar o 68 dos pobres que acontece na França há mais de duas semanas. Também não me proponho aqui a fazer maiores comentários sobre a revolta popular em curso: devido à falta de conhecimento, o máximo que eu poderia escrever seria repeteco do que li e concordei. Apenas levanto o curioso ponto de que os alvos prioritários dos "vândalos" (segundo o chamado da imprensa) serem carros e não sedes de grandes corporações multinacionais ou prédios públicos, nem mesmo pessoas (o que, por este ponto, assemelha-se aos protestos não-violentos de Gênova e Seattle).

Como acabei de dizer, não farei um repeteco do que li, mas comentarei algo que me chamou a atenção e que talvez ajude a compreender um pouco a situação. De tudo o que li, falava-se quase sempre em imigrantes e filhos de imigrantes, e não em "franceses de ascendência africana-islâmica", "franceses moradores da periferia" ou algo de teor similar. De onde surgiu minha pergunta: os filhos de imigrantes de ascendência africana-árabe, moradores das periferias, nascidos na França - como fica bem entendido - não são franceses? São, mas... É aqui que entra minha crítica à forma que se ensina na escola: todos os que nascem na França são franceses, mas existem os franceses de primeira classe: loiros, cristãos, olhos azuis, possuidores de bons carros, descendentes dos galeses; e os franceses de segunda classe: morenos, islâmicos, cabelos escuros, moradores da periferia. Há uma dicotomia implícita entre civilização e barbárie, quando se fala do medo dos franceses quanto aos protestos dos filhos de imigrantes. Há um resto do sentimento de colonialismo etnocêntrico, que julgava ter como seu último suspiro a ida de Le Pen ao segundo turno das eleições de 2002; mas Sarkozy mostrou que esse sentimento ainda está muito vivo. Há uma demonstração implícita de que 1789 está longe de alcançar seus objetivos.

Não é raro, em especial na grande imprensa, um certo ar de perplexidade: esses jovens, filhos de imigrantes, foram acolhidos pela França, vivem melhor do que se vivessem em “seus países”, do que podem estar reclamando? Esquecem-se, todavia, de que limpar fossa por toda a vida, por mais que resulte em um padrão de vida melhor do que na África, não é exatamente o sonho de todos os jovens. Esquecem-se de que ter um padrão de vida melhor do que o africano não significa necessariamente ter um padrão de vida bom, nem mesmo aceitável. E esquecem-se de que esses "filhos de imigrantes" são franceses, e sendo a França uma república são todos iguais perante a lei, sejam filhos de imigrantes ou descendentes de Pepino, O Breve. Ou deveriam sê-lo.

Mas o mais interessantes neste 68 da periferia é o fato de não haver uma liderança que encabece os protestos, que verbalize as reivindicações. E essa ausência não faz falta alguma: não houve analista sério - seja de esquerda, seja de direita - que não soubesse bem contra o que protestam os "filhos de imigrantes", o que reivindica a "escória". É evidente que a situação entre riqueza e pobreza está insustentável, que os ideais da revolução francesa estão cada vez mais longe, em todas as partes do globo. Os norte-africanos da França, os turcos da Alemanha, os indígenas da América, os negros dos EUA, os favelados do Brasil, a escória está em todo lugar, pronta a explodir - ou pelo menos a emergir -, falta apenas riscar o fósforo.


Campinas, 12 de novembro de 2005