domingo, 19 de março de 2006

Irmão Gallager e os Coelhinhos da Duracel, ou Oasis

Mais tietagem do que chou. Eis o chou do Oasis. Um chou bom, mas não tão empolgado quanto as 14 mil pessoas que foram assisti-lo.
Se o ótimo último disco do Oasis pode ser comparado (em qualidade, não em sonoridade) aos seus primeiros, o chou deixa um pouco a desejar. Primeiro, faltou empolgação da “banda” (já explico as aspas), segundo, faltou um lado B, ao menos, para aqueles que são fãs e não tietes da banda: preferiram ficar só nos sucessos de aceitação fácil.
Explicando as aspas: depois de várias mudanças de formação, o que sobrou do Oasis original foram os irmão Gallager. E no palco, ao menos, eles são a banda: Irmãos Gallager e os Coelhinhos da Duracel. Os coelhinhos seriam os quatro outros músicos que estavam no palco, que tocavam bem, mas que mal tinham direito a ficar na parte iluminada do palco. Pareciam mais banda de apoio (na verdade, dois eram mesmo banda de apoio). Se “destacavam” desses quatro o baterista, por ser filho do ex-Beatles Ringo Starr (tão destacado que pouca gente sabe o nome do infeliz), e o tecladista, que se não era Jesus Cristo era o Humberto Gessinger.
Quanto à banda de verdade. Liam até se mostrou simpático. Mas mais do que isso, mostrou que seus hormônios continuam na pré-adolescência, apesar do marmanjo já ter mais de 30 anos e as rugas começarem a aparecer. Parece criança que aprendeu a se masturbar a um mês e não consegue parar de bolinar. Deve ter saído um pouco triste de São Paulo, pois nenhuma rapariga da platéia entendeu que ele pedia para que levantassem a blusa (como todo chou), mas ganhou como prêmio de consolação, graças à chuva, algo parecido com um concurso de “wet shirt”, como o próprio disse. Já seu irmão, parado no seu canto com a guitarra, roupa simples – calça jeans e camiseta – mostrava-se muito mais atitude e conseguia levar a galera sem necessidade de ser imbecil.
Falei da chuva. Essa começou a cair assim que começou o chou, e só parou na penúltima música antes do bis. No início foi bom para refrescar, o problema foi quando começou a cair o mundo e a subir o (agradável) cheiro do rio Pinheiros, mas nada que atrapalhasse o chou.
Em suma: foi um bom chou, mas se conseguiu ser o chou da vida de alguém, sinal que essa pessoa precisa assistir a mais chous.

Campinas, 19 de março de 2006.

quinta-feira, 9 de março de 2006

Manual prático do ódio (inacabado)

Terminei de ler o livro Manual prático do ódio do Ferréz. Morador da periferia de São Paulo, Ferréz geralmente é tido como um autor que retrata o quotidiano violento do local em que vive. Não se pode dizer que isso está errado, mas reduzi-lo a um mero retratista de periferia é empobrecer sua obra. Assim fosse e seus livros seriam um mero renascimento do movimento naturalista do final do século XIX, início do XX, em que com um olhar “objetivo” retratava-se homens como animais.
Em meio ao cenário de violência Ferréz capta o humano das pessoas que há muito perderam o direito de sê-lo. Os sonhos, tanto os que não deixaram de ser apenas sonhos quanto os que ainda podem a vir a ser realidade, se a realidade deixar. A solidão, a busca de um sentido para a vida, se um dia a sociedade lhe permitir viver. Pois o livro trata de humanos, mas que trazem junto a marca de marginalizados. O que muitos ali querem não é nada além de uma vida pequena burguesa, como as que assistem na televisão: uma casa e uma família. Ou então seus sonhos são sonhos de consumo: um tênis caro, uma moto cara para impressionar as garotas, curtir a vida sem preocupação, assim como os jovens das classes abastadas curtem-na. Mas se esquecem do grande abismo que há entre a favela e o Morumbi: dinheiro. E se a propaganda diz que a vida só pode ser curtida se se tiver carro, moto, tênis, roupa, por que seria diferente para quem não tem dinheiro?
O trabalho honesto é a vontade da maioria, mas distante: a vergonha do ex-operário da Metal Leve que agora sobrevive de bicos, o salário que obriga família a recolher os restos da feira, o drama do pai morrer e a família não ter dinheiro para o enterro – ela que geralmente não o tem sequer para a comida; os “bandidos” não vendo a hora de trocar de vida e comprar um sítio, e voltar para a Bahia, dar uma vida boa para os filhos: com brinquedos iguais ao vistos na tv.
O livro trata também da degradação moral da periferia. Essa degradação vem junto com a degradação do próprio local. Sem qualquer perspectiva alguns jovens preferem ter fama – qualquer fama – a qualquer preço. Matam indiscriminadamente, somente para se sentirem temidos e falados, mesmo dentro da comunidade. A degradação vem também da vida sempre miserável, ou cada vez mais miserável. E a degradação vem também do Estado: não é o crime que corrompe a polícia, é a polícia que corrompe o crime: é o delegado corrupto quem dá o suporte ao bandido que não respeita a lei da periferia.
Mas ser da periferia não é estar fadado a virar bandido – como brinca a patroa ao gracejar com o filho da empregada. Ser da periferia é correr o sério risco de ser morto a tiro, por estar no lugar errado, que são muitos. O livro começa com dois salmos: o salmo 18, versículo 37, e o salmo 58, versículo 10; mas poderia muito bem começar com o pai-nosso: e não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do mal. As perspectivas dos moradores da periferia são sempre péssimas – seja na honestidade, seja na malandragem –, mas o caminho que cada um segue deve-se também da história de cada um da sua escolha: se foi capaz de resistir à tentação, se foi capaz de escapar do mal.

Campinas, 09 de março de 2006