domingo, 19 de novembro de 2006

Um sistema falido

Há um considerável otimismo com a cláusula de barreira dos partidos que entrou em vigor a partir destas eleições. Pela cláusula somente partidos com um mínimo de aceitação popular terão as benesses dadas aos partidos que (teoricamente) representam anseios da população. Louva-se a medida, pois não há 29 correntes de pensamentos distintas, partidos de aluguel desapareceriam e o espectro político se tornaria mais claro e depurado com um número menor de siglas de destaque. Acredito que tudo isso é válido (só veremos se é verdade depois de acontecer), mas cláusula de barreira, fidelidade partidária, financiamento público, voto distrital e o que mais tem sido não tocam no ponto fundamental da cultura política tupiniquim: o que é um partido no Brasil hoje?
O tipo ideal de partido político no Brasil hoje é, infelizmente, o PMDB. Claro que nenhum chega a tal extremo, mas o que vemos são caciques em disputas internas por poder dentro dos partidos. Alguns chegam a ter determina linha ideológica, qualquer difusa carta de programas, mas é tudo. Os partidos de direita no Brasil sempre foram associados ao fisiologismo. Os de esquerda adotaram a prática ao ascenderem ao poder. Serão os homens todos maus ou será o sistema falido?
O penúltimo grande tombo foi o PT: cria-se ser um partido mais coeso – vide o fato de sua bancada geralmente seguir unida – com um programa para o país, uma forma diferente de fazer política. Os cegos de plantão (no qual se inclui este escriba), ao olharem retroativamente já conseguem perceber algumas falhas da cultura política, de que o PT se utilizou (não sei se deliberadamente) em 2002, assim como em 2006. É grande o fuzuê pelo ministério do segundo mandato: quem irá para qual pasta? Que partido ficará com o que? Que aliado abocanhará que pedaço? Trata-se da mesma conversa de 2002. E é aqui que nos damos conta mais claramente do problema: elegemos Lula em 2006, assim como em 2002, com base no que? Em 2002, em um programa partidário não cumprido? Em 2006, por medo de privatizações? Mas de concreto, o que tínhamos como garantia de que o governo seria assim ou assado? Realizações passadas, promessas futuras? FHC não prometeu privatizações, assim como Lula não prometeu rasgar a carta-programa do PT. Foram reeleitos.
Vamos ao pior da eleição de 2006: a promessa não cumprida. Falo do Psol e de Heloísa Helena. Muitos (como o escriba aqui, por algum tempo) acreditavam que o Psol poderia surgir para renovar a política nacional, criar uma forma nova de fazer política. Simplesmente não seguir ortodoxamente a cartilha da publicidade política não basta para fazer política de forma nova. A maior prova do “más de lo mismo” do Psol vem que o partido não conseguiu, sequer tentou, romper com o personalismo da política nacional. Ora, se o Psol é um partido e não uma aglomeração de interesses mais ou menos convergentes, Heloísa Helena, Plínio de Arruda Sampaio, ou o Zé da Padaria da Esquina deveriam ter basicamente o mesmo programa de governo, as mesmas propostas, independente de quem fosse o candidato à presidência. Mas o Psol preferiu lançar Heloísa Helena, que tinha mais visibilidade, à presidência, o que acarretou como principal conseqüência, que sua cadeira no senado será ocupada pelos próximos oito anos por Fernando Collor de Mello. Mas supomos que o Psol tivesse ganho a presidência, quais projetos para o país foram apresentados em termos concretos: estamos aqui, passaremos por aqui, e chegaremos ali? Mais: quem seriam os ministros, os auxiliares da Heloísa Helena? O que não garante que ela faria um acordo com o PT, por exemplo, cedendo ao partido uma qualquer, mas que acabaria por desvirtuar o pretenso projeto de país do partido?
O Brasil pode ter três, cinco ou 48 partidos. Enquanto não houver partidos sérios, ideológicos, coesos, coerentes (à direita e à esquerda), continuaremos dando ao presidente da República um poder simulacro de Luís XIV, “o Estado sou eu”, com total liberdade para negociar cargos, verbas e políticas com partidos de todo o espectro político, sem que possamos reivindicar legitimamente qualquer postura. Isso para o executivo.
Para o legislativo, acho que poderíamos retomar o modelo da Atenas clássica: os representantes são escolhidos por sorteio. Seria muito simples, evitaria lobby, caixa dois, e todas essas mazelas que afligem os regimes democrático-liberais. O sujeito com mais de 18 anos e ficha limpa ia até o tribunal eleitoral local, se canditaria, e em um domingo, antes do Domingão do Faustão, sentaria com a família no sofá da sala, cruzando os dedos para ser sorteado. Esse sistema daria de fato chances iguais a todos, e ainda poderíamos ter a sorte de não contar com Maluf, Collor, Salvatti, ACM, Clodovil, Russomano, Enéas, Palocci, Virgílio, Barbalho, Sarney e tanto outros boa-pintas que infestam a câmara e o senado.

Campinas, 19 de novembro de 2006

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

“Vagina não tem osso” e a especialização crônica na universidade (incompleto)

Começo com uma cena do filme O sentido da vida, de 1983, dos comediantes ingleses do Monty Python. Dois médicos vão fazer um parto normal. Estão mais interessados na parafernalha da sala de parto, como “a máquina que faz 'ping!'”, do que na paciente – tanto é que notam que falta algo, mas levam um tempo para perceber que é a paciente. O gestor do hospital sequer sabe o que é um parto, apesar de conhecer “a máquina que faz 'ping!'” e achá-la o máximo, como os médicos. Durante o parto, a mulher pergunta o que pode fazer para ajudar, a resposta do médico é “nada, você não está habilitada para isso”.
Conversando com um estudante de medicina (um dos que julgo mais próximo de estar na carreira por vocação), ele comentava que uma mulher com quase nove meses de gravidez chegou no hospital reclamando de dor “no ossinho da vagina”. Como vagina não tem osso, ele desprezou o que a mulher disse e mandou-a embora. Fosse um caso isolado, tudo bem. Mas é comum também pessoas que freqüentam o posto de saúde com o que os médicos classificam de “ntpn”, não tem porra nenhuma (há também uma outra denominação, mais recente, mas não me lembro). O médico receita uma aspirina e manda a pessoa para casa. Como bem comentou um amigo meu psicólogo: ninguém procura um médico porque não tem nada, alguma coisa essa pessoa tem, por mais que não seja biológico. Mas para quem passou os seis anos da faculdade decorando nome de osso, princípio ativo de remédios e aprendendo a ler resultado de exames, e só olhou para a cara do paciente caso tenha optado pela especialidade de oftalmologista, não surpreende que diga “não tem nada” para quem tem pressão e nível de colesterol dentro dos padrões. Ou ignore a dor de uma mulher, simplesmente porque “vagina não tem osso”.
É possível encontramos ao menos três razões que explicam esse comportamento que antes se esperaria de um açougueiro do que de um médico. Um deles é o prestígio de ser “doutor”, o poder de decidir a vida e a morte, o que faz com que a grande maioria das pessoas que prestam medicina o façam por causa do prestígio ou do dinheiro. Outra é que a medicina tradicional lida com a doença, e não com a saúde. Saúde, nesta visão é a ausência de doença, e a doença é identificada via exames e diagnósticos. Se estes não apontam nada, a pessoa é saudável. Por fim, a formação que os médicos recebem na universidade: uma formação técnica, especialista, cujo ideal – como expressou um empolgado professor meu com os avanços da ciência – é reduzir a medicina a uma matriz, ou a uma função matemática.
Estou lendo o livro A aventura da universidade, do economista Cristóvão Buarque, ex-reitor da Universidade de Brasília. Apesar de escrito há dez anos o livro é bastante atual e, apesar de eu não concordar com muitas idéias ali expostas, Buarque tem o grande mérito de conseguir problematizar a universidade. Um dos pontos que ele insiste é a extrema especialização da universidade e conseqüente perda do seu caráter humanista – essa perda se dá em todas as áreas da universidade, exatas, biológicas, humanas e artes. Para cursos como engenharia este problema não se sente de maneira tão gritante, mas para áreas que lidam diretamente com o ser humano, essa visão da pessoa como um amontoado de carne ou uma fonte de renda chega a ser ofensiva. Sinceramente, de todos os médicos e estudantes de medicina que conheço para além do consultório, não consigo lembrar de nenhum que eu diga ter vocação para a profissão escolhida. Ou mesmo dentro do consultório, médicos “atenciosos”, como são geralmente chamados, são tão raros que são sempre lembrados e comentados.
Falo da medicina, onde essa falta da visão humanista durante sua formação é perceptível mais facilmente, mas eu poderia citar exemplos de psicólogos formados que não têm a menor condição de exercer a profissão, mas a universidade – uma das melhores do Brasil –, e o Conselho de Psicologia dizem que são aptos para tanto.
E a maior dificuldade para mudar esse panorama da universidade está dentro da própria universidade. Como bem disse Buarque, a especialização chegou a tal nível que ao invés de se exigir de um físico ou um engenheiro um conhecimento de filosofia, de artes, de algo não técnico ligado à sua formação, o que se exige é do filósofo e do artista a mesma especialização do físico e do engenheiro.
Uma das formas pela qual essa exigência pela especialização estrita é o sistema de cobrança de títulos e de “coeficiente de produtividade” (artigos publicados) dos professores e de “coeficiente de rendimento” (a nota) dos alunos. Essa cobrança anda cada vez mais rígida, e uma reprovação, algumas notas baixas, o atraso do curso em meio ano pode custar a bolsa de estudos; forçando estudantes (é o caso que conheço mais de perto) a desistirem de muitas atividades que saiam do esquema sala de aula-laboratório, pois se engajar em um projeto social, por exemplo, pode comer horas de estudos, baixar o coeficiente de rendimento e cortar uma bolsa de estudos. E é com tristeza que leio a notícia de que um dos mais empolgados com essa visão especialista-eficiente é cotado para uma secretaria no estado de São Paulo. Trata-se do ex-reitor da Unicamp, atualmente à frente da Fapesp, o engenheiro Carlos Henrique de Brito Cruz, que na reitoria da Unicamp chegou ao extremo de querer vincular bolsa-auxílio (bolsas direcionadas a alunos carentes, que não tem como se sustentar morando fora de casa e fazendo faculdade) ao coeficiente de rendimento. Ou seja, não basta o vestibular já excluir boa parte dos alunos carentes que gostariam de fazer Unicamp, uma vez dentro esses alunos vão ter que provar que mesmo trabalhando, eles conseguem tirar as mesmas notas que aqueles alunos que só dedicam a estudar (e como se nota fosse sinônimo de conhecimento).

Campinas, 11 de outubro de 2006