terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Histórias de bebedeiras

Não bebedor que sou, não somente me sinto um peixe fora d'água, como fico um tanto pasmo com a mediocridade da conversa daqueles mais chegados em diluir o super-ego em álcool, como diz um amigo meu. Não sei se já não escrevi sobre isso ultimamente, sei que há muito tempo escrevi sobre, mas faz tanto tempo que me parece até aconselhável escrever novamente, para comparar as idéias, e agora estou com preguiça em correr as crônicas mais recentes para evitar o risco de me repetir. Me repito, se for o caso.
Eu acompanhava a conversa de um grupo de jovens, na faixa dos 20, 21 anos, todos universitários. A conversa começou sobre a razoável precariedade em se achar coisas para fazer em Pato Branco. Papo que imagino não diferir muito de boa parte dos jovens de classe média das cidades brasileiras, pouco importa o tamanho, como se o problema maior fosse a cidade que não oferece o que fazer, e não um estilo de vida que exige um tipo de diversão absurda, não raro violenta contra a própria pessoa e, muitas vezes, difícil de suportar por longos períodos. É certo que Pato Branco contribui consideravelmente para essa sensação de nada para fazer, não posso negar.
Contavam de algumas tentativas que faziam para tentar afastar o tédio das madrugadas acordadas, que iam desde brincadeiras no Photoshop até sair pela cidade com controle remoto universal mexendo nos televisores das vitrinas – uma molecagem bastante inocente, me parece. Mas logo a conversa mudou um pouco de tema, ainda que continuasse nas histórias (pretensamente) engraçadas da madrugada. Na verdade retomou-se uma conversa que já tinha acontecido antes. As histórias engraçadas agora não passavam mais por inventar algo para fazer, molecagens inocentes com fotos ou televisores. Felizmente, preciso admitir frente à condição social do grupo, também não passavam por achar algo para fazer quebrando telefones públicos, atirando ovos em prostitutas ou incendiando mendigos. Mas se limitavam a histórias de bebedeiras. Variações de um mesmo tema que não tem uma gama muito grande de variações: tombos ou escatologias, acompanhados sempre de algum ridículo banal. A conversa que eu acompanhava ficou nas escatologias. As molecagens substituídas por porres, vômitos, mijos, como que atestar que a volta a um estágio anterior do desenvolvimento humano fosse prova de se ter alcançado a idade adulta, a maturidade. Como se se comportar como o bebê que os pais “rejeitaram” ao forçá-lo a usar fraldas inicialmente e depois o vaso, a se comportar à mesa, fosse prova de que haviam superado os “coroas”, e agora eram livres para fazer o que bem entendiam. Recontavam (pois eram conhecidos um dos outros, assim como as histórias contadas) maravilhados suas histórias deprimentes, histórias de uma mediocridade deplorável – com os ridículos do momento de sempre que dão o tom de grande diversão aos causos do gênero –, banais, exatamente como qualquer história de bebedeira entre jovens de classe média.
Alguns são capazes de me repetir que sou um ressentido por não me permitir a liberdade de desfrutar, ainda que eventualmente, de alegrias como essas. Essa tal liberdade é algo que muito me incomoda. Em conversas como a que presenciei, bebedeiras costumam ser sempre apresentadas como um momento de plena autonomia, não somente por violar as regras de boa conduta que os pais e a sociedade (teoricamente) esperavam, mas porque o super-ego não está mais lá para incomodar e refrear o que realmente gostaríamos de fazer. Como se autonomia se tratasse de seguir nossos desejos, nossos instintos – e como se nossos desejos fossem nossos mesmos, fruto de nossos instintos e não da publicidade, a mesma que prega que a liberdade só existe sob efeito do composto C2H5OH, ou sob algum outro composto mais potente. E como se se começasse a beber por conta própria, e não para ir na onda, estimulado por outros, para não se sentir excluído do grupo, para não ficar com pecha de nerde ou criança. Entrada na roda, as histórias de bebedeiras começam a ter sempre graça. Admito que algumas até têm, quando se escuta pela primeira vez. Mas quando se escuta quase as mesmas histórias em toda conversa de bebedeiras, a graça, para mim, acaba. Piada repetida só tem graça para quem foi adestrado com os seriados americanos.
Falo aqui de álcool, mas poderia tratar de qualquer outra droga, lícita, ilícia, ou conhecida com outros nomes, como televisão, videogame ou religião – que salvam das drogas em nome de um obscurantismo e de uma vida muitas vezes de histórias mais medíocre do que as de bebedeira –, que quando consumidas sem consciência e em excesso mostram-se claramente um caminho de fuga, um tapar os olhos para a mediocridade do mundo, para a banalidade da vida, para a estreiteza dos sonhos, em um ato antes de conformismo do que de rebeldia (nas décadas de 1950 e 60, as drogas tinham um sentido diametralmente oposto ao de agora, como o próprio Kerouak fez questão de apontar, ainda no final dos anos 60).
E fico triste ao notar, nas histórias de como começaram, do primeiro porre. Até então tais jovens não sentiam necessidade de bebida para se divertir, para ter histórias para contar. Questionavam a ordem da maioria, do "todos fazem". Se entediavam nas madrugadas, mas tinham criatividade para inventar algo para fazer. Dá a impressão de que achavam que beber era ruim e, uma vez que experimentaram e viram que dava prazer, passaram a achar que estavam errados (como se gostoso fosse o antônimo de ruim), e mudaram de opinião, muitas vezes lamentando todo o tempo perdido desde a primeira festa, aos 13, 14 anos até o primeiro pileque, aos 18. Faço um drama existencial, mas sei que poucos terão conseqüências no longo prazo - alcoolismo, cirrose ou outra doença associada. Alguns não poderão saber se arcariam com tais custos - morrerão antes em acidentes de trânsito ou acidentes outros, evitáveis se suportassem a vida e suas frustrações de vez em quando sóbrios. A maioria deles sairão sem maiores seqüelas desta fase, com um enorme repertório de histórias repetidas e sem originalidade. Sairão bem comportados, vestindo roupas elegantes, andando em carros pagos em 60 prestações, bons pais de famílias, respeitadores da ordem dos poderosos e revolucionários do desrespeito da coisa pública. Enfim, cidadãos de bem, conformados, conformistas e conservadores.
Lembro que na crônica que escrevi em 2003 perguntava se a vida seria tão vazia para necessitarmos de rotas de fuga precárias como essas, e as utilizarmos sem nos sentirmos mal. Hoje não me faço mais essa pergunta: para uma sociedade em que se divertir é não pensar, histórias de bebedeiras estão à altura do seu ideal.

Pato Branco, 08 de janeiro de 2008

domingo, 23 de dezembro de 2007

Excesso zero

Almoçando em uma cantina na universidade, vejo na mesa ao lado que um casal divide dois litros de refrigerante. Comento com a amiga que me acompanha que quando eu era criança, início da década de 90, refrigerante era coisa de domingo, e dividíamos em quatro uma garrafa de 700mL. Lembro do domingo de manhã indo até despensa escolher o refrigerante a ser gelado para o almoço – geralmente de framboesa (geralmente ou será que a memória me trai por ser meu favorito?). De qualquer forma, ainda que fôssemos capazes de beber mais, aquela garrafa nos satisfazia até o próximo domingo.
No meio da tarde, quando fui lanchar, uma pessoa ao meu lado bebia 600 mL de refrigerante “zero” e comia um pacote de biscoito de polvilho. Essas duas cenas – ou seria melhor dizer detalhes? – me fizeram lembrar de Jin, personagem secundária do livro O grito silencioso, escrito pelo japonês Kenzaburo Oe, em 1967.
Jin é uma mulher de um decadente povoado que come compulsivamente e é tida pelos demais habitantes locais como “a mulher mais gorda do Japão”, e por isso é vista como uma espécie de totem da comunidade.
Seu marido e filhos são magros, por sacrificarem parte do que comem à mulher. Em certa altura, alguns acontecimentos permitem que Jin tenha, pela primeira vez desde que começou com seu distúrbio, mais comida do que pode comer – ainda que seja comida enlatada. Diante daquela abundância, expressa seu sonho de poder comer tudo de uma vez, saciar de uma vez por todas seu apetite, e se prostrar à espera da morte. Sentimento semelhante o protagonista vê no filho de Jin, que pode, finalmente depois de muito tempo, comer o quanto quisesse. E o que faz é se entupir de bolachas até vomitar, para poder então recomeçar a comê-las.
Não sei qual era a situação do Japão quando o livro foi escrito, mas ele me parece ilustrar a chegada do capitalismo consumista em uma terra marcada até há pouco pela tradição. Algo semelhante, me parece, aconteceu no Brasil há cerca de dez anos, com o Plano Real, quando a classe média pode entrar no mundo do consumismo desenfreado. Entramos tarde mas, infelizmente, entramos. Debord, mais ou menos na mesma época em que Oe lançava O grito silencioso, comentava que as sociedades capitalistas avançadas haviam deixado de produzir produtos para produzir lixo – dada a descartabilidade de tudo, necessária para a manutenção do sistema.
Mas o sistema, sob o risco de produzir “mulheres mais gordas do Japão” em série, soube se adaptar. Os lixões continuam distante dos nossos olhos, e a abundância de comida é compensada com produtos diet, light, “zero”. Podemos comer e beber até nos empanturrar, até vomitar, porque não corremos o risco de engordar, E ainda que engordemos, uma cirurgia de redução de estômago nos permite recomeçar o ciclo novamente.
Tentamos saciar não nossa fome e nossa sede, mas nossa angústia de viver uma vida incerta em um mundo incerto a caminho de uma morte incerta. Como Jin, sofremos de um distúrbio, sintoma de uma anomia, na linguagem sociológica de Durkheim. Queremos consumir tudo, inclusive a nós mesmo – a consumação total (talvez bem representada pela ameaça nuclear, fortemente presente na década de 1960). É o que fazemos, inconscientemente, não sei se com esperança, ou com um simulacro de, estimulado pela publicidade e pelas embalagens bonitas e coloridas, reatualizando o velho ditado “cabeça desocupada, morada do diabo”. Sendo o diabo, agora, mais do que nunca, identificado antes conosco mesmos, com nossa consciência, nossa subjetividade, enfim, nossa condição humana; e a ocupação da cabeça não sendo mais necessariamente com trabalho ou orações, mas com produtos, com coisas inúteis, sem interesse, descartáveis, com comida em excesso – mas que, assim como não nos saciam, também não engordam, nos permitindo seguir nesse ciclo até o dia em que nos encontraremos com o que, no fundo, parece que almejamos, ao mesmo tempo que tememos: a consumação final, a morte.

Campinas, 29 de novembro de 2007 – Pato Branco, 23 de dezembro de 2007