terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Entre o cativar e o cativeiro

Por estes dias eu matutava a famosa frase que a raposa disse ao Pequeno Príncipe: és responsável pelo que cativas. Resolvi recorrer ao livro para reler o contexto em que a frase surgia. Ainda que famoso por ter sido livro de cabeceira das misses, até ser desbancado pelo Paulo Coelho, o livro de Saint-Exupéry, não sei se precisava dizer, é de uma poesia simples mas profunda: “Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...”
Mas o amargor dos anos – ou será o cacoete de ser chato? Não sei – faz com que eu comece a achar picuinhas que me fazem torcer o nariz – ou quase – onde antes tudo era belo, e a famosa frase da raposa é um exemplo. Quem lembra do livro já deve ter notado que a frase sobre a qual eu matutava não estava exatamente de acordo com a do autor: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, essa é a frase da raposa (ao menos a da minha tradução). Há, portanto, um “eternamente” que se coloca no meio do caminho, tornando a passagem escorregadia. Ou melhor dizer, ainda mais escorregadia, pois cativar, na sua etimologia, pode ser tanto seduzir quanto prender – é de cativar que vem o substantivo cativeiro.
Mas o que é cativar, seduzir, alguém? Como se cativa alguém? Geralmente começa por um jeito de ser, por uma forma de se pôr, não somente pelo que se diz, mas pela forma que se fala, por olhares, enfim, por pequenos detalhes, que muitas vezes nos passam despercebidos pela consciência, mas nos tocam na alma: “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos”, diz a raposa. Quando notamos, sem que nos déssemos conta, fomos seduzidos, fomos cativados.
E quem é o responsável por isso? Quem cativa ou quem é cativado? A raposa põe a responsabilidade naquele que cativa. Mas será que quem foi cativado foi um mero receptor passivo, sem iniciativa ou vontade própria, seduzido por algo similar ao canto das sereias? Ou será que se trata de um jogo de mão dupla, em que quem é cativado, ainda que por algum outro meio, também cativa? Ou então de que serviria cativar alguém? Colecionar fãs, seguidores, para depois pô-los nos potinhos comprados em lojas?
Mas há ainda um outro ponto: cativar e ser cativado, seduzir e ser seduzido ocorrem em um determinado tempo, em determinado momento da vida de ambas as pessoas. Como exigir que essa responsabilidade seja eterna? Aqui é onde o cativar resvala com mais facilidade para o cativeiro. Se o Pequeno Príncipe se torna responsável pela raposa, espera-se dele não somente respeito – pois isso espera-se para todos – mas uma dose extra de consideração. E o que é levar o outro em consideração se não dar-lhe uma importância maior, uma importância maior às suas opiniões? Ao dizer “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” a raposa, ao mesmo tempo que admite ter sido seduzida pelo principezinho, põe-no sob seu olhar. Ela não está apenas exigindo cuidado, como poderia exigir a rosa, mas um cuidado extra, responsável, pesado. Com a raposa o príncipe não deve apenas dar água e protegê-la, mas também aparecer no momento que ela espera, não magoá-la – o que torna a partida do príncipe algo doloroso, quando deveria ser apenas triste.
Esse, porém, não é o pior cativeiro: ao tornar eterno o que era para ser um momento, a raposa pode exigir que o príncipe não mude, que seja sempre aquele que a cativou, ou, ao menos, que não sofra nenhuma mudança brusca que a decepcione ou a magoe: como não se decepcionar em ver o rosto que tanto admirávamos se tornar alguém estranho, que já não mais reconhecemos? A raposa não sabia de uma verdade sobre os humanos: que estes são seres em eterna construção, em perpétuo vir-a-ser, em um infinito se descobrir, se perder e se reinventar.
E quem é a raposa senão nós? Quem é o Pequeno Príncipe senão nós também? Costumamos acompanhar as mudanças de nossos próximos antes com um olhar fiscalizador do que de admiração. Ainda que isso não nos isente de conversar e tentar mostrar ao outro que está seguindo um caminho que muitas vezes sabemos ser equivocado, cobrar dele as mudanças feitas fora daquelas que aceitaríamos é tentar prendê-lo em um cativeiro. Mas aquele que cativa também não pode achar que se foi por uma questão de um momento que cativou, no momento seguinte já não tem mais responsabilidade. Não se trata de dar explicações, mas de levar o outro em consideração, com paciência. Algo que o Pequeno Príncipe fez: foi ver as demais rosas, compreender o que raposa estava sentindo, para, enfim, dizer adeus, a palavra que já dissera anteriormente, mas deixando claro a importância da raposa para sua vida, assim como esta o fizera.
E para finalizar pergunto: quando seduzidos, conseguimos ter o desapego da raposa, a ponto de não transformar o cativar em cativeiro? Quando sedutores, temos a paciência de ouvir o que o outro tem a dizer e levá-lo em consideração? Em ambos os casos: estamos abertos para o diálogo e o sentimento do outro?

Pato Branco, 19 de fevereiro de 2008

PS: Sobre a crônica anterior: como pude esquecer do filme Trainspotting, de Danny Boyle?! Poderia utilizá-la quase como um comentário/interpretação do filme.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Histórias de bebedeiras

Não bebedor que sou, não somente me sinto um peixe fora d'água, como fico um tanto pasmo com a mediocridade da conversa daqueles mais chegados em diluir o super-ego em álcool, como diz um amigo meu. Não sei se já não escrevi sobre isso ultimamente, sei que há muito tempo escrevi sobre, mas faz tanto tempo que me parece até aconselhável escrever novamente, para comparar as idéias, e agora estou com preguiça em correr as crônicas mais recentes para evitar o risco de me repetir. Me repito, se for o caso.
Eu acompanhava a conversa de um grupo de jovens, na faixa dos 20, 21 anos, todos universitários. A conversa começou sobre a razoável precariedade em se achar coisas para fazer em Pato Branco. Papo que imagino não diferir muito de boa parte dos jovens de classe média das cidades brasileiras, pouco importa o tamanho, como se o problema maior fosse a cidade que não oferece o que fazer, e não um estilo de vida que exige um tipo de diversão absurda, não raro violenta contra a própria pessoa e, muitas vezes, difícil de suportar por longos períodos. É certo que Pato Branco contribui consideravelmente para essa sensação de nada para fazer, não posso negar.
Contavam de algumas tentativas que faziam para tentar afastar o tédio das madrugadas acordadas, que iam desde brincadeiras no Photoshop até sair pela cidade com controle remoto universal mexendo nos televisores das vitrinas – uma molecagem bastante inocente, me parece. Mas logo a conversa mudou um pouco de tema, ainda que continuasse nas histórias (pretensamente) engraçadas da madrugada. Na verdade retomou-se uma conversa que já tinha acontecido antes. As histórias engraçadas agora não passavam mais por inventar algo para fazer, molecagens inocentes com fotos ou televisores. Felizmente, preciso admitir frente à condição social do grupo, também não passavam por achar algo para fazer quebrando telefones públicos, atirando ovos em prostitutas ou incendiando mendigos. Mas se limitavam a histórias de bebedeiras. Variações de um mesmo tema que não tem uma gama muito grande de variações: tombos ou escatologias, acompanhados sempre de algum ridículo banal. A conversa que eu acompanhava ficou nas escatologias. As molecagens substituídas por porres, vômitos, mijos, como que atestar que a volta a um estágio anterior do desenvolvimento humano fosse prova de se ter alcançado a idade adulta, a maturidade. Como se se comportar como o bebê que os pais “rejeitaram” ao forçá-lo a usar fraldas inicialmente e depois o vaso, a se comportar à mesa, fosse prova de que haviam superado os “coroas”, e agora eram livres para fazer o que bem entendiam. Recontavam (pois eram conhecidos um dos outros, assim como as histórias contadas) maravilhados suas histórias deprimentes, histórias de uma mediocridade deplorável – com os ridículos do momento de sempre que dão o tom de grande diversão aos causos do gênero –, banais, exatamente como qualquer história de bebedeira entre jovens de classe média.
Alguns são capazes de me repetir que sou um ressentido por não me permitir a liberdade de desfrutar, ainda que eventualmente, de alegrias como essas. Essa tal liberdade é algo que muito me incomoda. Em conversas como a que presenciei, bebedeiras costumam ser sempre apresentadas como um momento de plena autonomia, não somente por violar as regras de boa conduta que os pais e a sociedade (teoricamente) esperavam, mas porque o super-ego não está mais lá para incomodar e refrear o que realmente gostaríamos de fazer. Como se autonomia se tratasse de seguir nossos desejos, nossos instintos – e como se nossos desejos fossem nossos mesmos, fruto de nossos instintos e não da publicidade, a mesma que prega que a liberdade só existe sob efeito do composto C2H5OH, ou sob algum outro composto mais potente. E como se se começasse a beber por conta própria, e não para ir na onda, estimulado por outros, para não se sentir excluído do grupo, para não ficar com pecha de nerde ou criança. Entrada na roda, as histórias de bebedeiras começam a ter sempre graça. Admito que algumas até têm, quando se escuta pela primeira vez. Mas quando se escuta quase as mesmas histórias em toda conversa de bebedeiras, a graça, para mim, acaba. Piada repetida só tem graça para quem foi adestrado com os seriados americanos.
Falo aqui de álcool, mas poderia tratar de qualquer outra droga, lícita, ilícia, ou conhecida com outros nomes, como televisão, videogame ou religião – que salvam das drogas em nome de um obscurantismo e de uma vida muitas vezes de histórias mais medíocre do que as de bebedeira –, que quando consumidas sem consciência e em excesso mostram-se claramente um caminho de fuga, um tapar os olhos para a mediocridade do mundo, para a banalidade da vida, para a estreiteza dos sonhos, em um ato antes de conformismo do que de rebeldia (nas décadas de 1950 e 60, as drogas tinham um sentido diametralmente oposto ao de agora, como o próprio Kerouak fez questão de apontar, ainda no final dos anos 60).
E fico triste ao notar, nas histórias de como começaram, do primeiro porre. Até então tais jovens não sentiam necessidade de bebida para se divertir, para ter histórias para contar. Questionavam a ordem da maioria, do "todos fazem". Se entediavam nas madrugadas, mas tinham criatividade para inventar algo para fazer. Dá a impressão de que achavam que beber era ruim e, uma vez que experimentaram e viram que dava prazer, passaram a achar que estavam errados (como se gostoso fosse o antônimo de ruim), e mudaram de opinião, muitas vezes lamentando todo o tempo perdido desde a primeira festa, aos 13, 14 anos até o primeiro pileque, aos 18. Faço um drama existencial, mas sei que poucos terão conseqüências no longo prazo - alcoolismo, cirrose ou outra doença associada. Alguns não poderão saber se arcariam com tais custos - morrerão antes em acidentes de trânsito ou acidentes outros, evitáveis se suportassem a vida e suas frustrações de vez em quando sóbrios. A maioria deles sairão sem maiores seqüelas desta fase, com um enorme repertório de histórias repetidas e sem originalidade. Sairão bem comportados, vestindo roupas elegantes, andando em carros pagos em 60 prestações, bons pais de famílias, respeitadores da ordem dos poderosos e revolucionários do desrespeito da coisa pública. Enfim, cidadãos de bem, conformados, conformistas e conservadores.
Lembro que na crônica que escrevi em 2003 perguntava se a vida seria tão vazia para necessitarmos de rotas de fuga precárias como essas, e as utilizarmos sem nos sentirmos mal. Hoje não me faço mais essa pergunta: para uma sociedade em que se divertir é não pensar, histórias de bebedeiras estão à altura do seu ideal.

Pato Branco, 08 de janeiro de 2008