quinta-feira, 26 de junho de 2008

Um trem para uma outra visão


Aluguei esta semana o filme O trem de Zhou Yu, filme de 2003 do chinês Zhou Sun. O filme conta a história de uma artesã oleira que duas vezes por semana faz uma longa viagem em trem para visitar seu namorado, um poeta e funcionário de uma biblioteca, até que em uma dessas viagens se depara com um veterinário hedonista. Achei um filme de uma poética delicada, semelhante a outros filmes orientais, como o japonês Dolls, de Takeshi Kitano, ou os do sul-coreano Kim Ki-Duk.
Em O trem de Zhou Yu, o trem e o trajeto simbolizam mais do que o superar distâncias pelo amor, antes o próprio amor como um trajeto a ser percorrido, com seus percalços e seus encontros e desencontros fortuitos, capazes de mudar sua rota, de fazer com que se pare antes da estação desejada, que se conheça paisagens inesperadas, e se desconheça horizontes queridos. Também podem simbolizar que entre duas pessoas, entre dois amantes, há distâncias maiores a serem superadas do que aquela percorrida pelo trem. O filme, contudo, não se resume a metáforas com trens e trajetos e estações. Há outros momentos de sutil poesia, como quando escritor e artesã, mesmo juntos, não conseguem olhar para a mesma direção; ou o questionamento sobre a fragilidade da arte, frágil como o amor. Mais do que um modelo para amar – como se costuma encontrar nos filmes ocidentais – O trem de Zhou Yu apresenta as complicações e contradições do amor.
Porém um outro ponto me chamou bastante a atenção: o filme se passa na China do início do século XXI. Um país já com índices de crescimento assustadores, mas cuja prosperidade, conforme a imagem vendida pelos detentores da “liberdade”, está localizada nas ilhas capitalistas, como Shenzhen, por exemplo. No resto do país – ao menos é a visão que sempre tive a partir da leitura dos jornais – uma vida controlada, cheia de restrições, infeliz e, se não de pobreza, sem nada além do básico. Não é o que o filme passa. Talvez seja proposital. Patrocinado pelo governo, fez-se um filme em que é apresentada uma visão positiva do regime. Se é isso, o faz com impressionante sutileza. Os três protagonistas do filme, o poeta funcionário de biblioteca, a artesã oleira e o veterinário, nenhum está nessas ilhas capitalistas de prosperidade e “liberdade”. Soam antes como cidadãos comuns, da classe média do regime dito comunista do país. O veterinário é apresentado como o personagem já mais afim à nova China, mas está longe de ser um novo rico. E nem por isso há um clima de terror, vigilância ou controle. A ponto de, em certa altura, eu resolver dar uma olhada nos créditos do filme, para averiguar que se tratava mesmo da China e não do Japão ou da Coréia. Nota-se certas intromissões na vida dos personagens em alguns momentos, como quando um funcionário público tenta uma aproximação com a artesã, e pelas tantas comenta que só terá direito a uma casa depois que se casar; ou quando o poeta é avisado de que será demitido da biblioteca, mas pode optar em ir para o Tibet. Em suma, a impressão que o filme passa é o da China comunista como um país de terceiro mundo, não muito diferente do Brasil ou da Argentina: cidades sem qualquer beleza, com ruas sujas; pessoas com condições de vida razoáveis; e um governo que não é empecilho para que se viaje, compre cigarros ou que um poeta namore uma oleira de uma cidade distante.
Pode ser contra-propaganda chinesa, e não se deve, portanto, levar o filme tão a sério. Mas admito que serviu para tirar muito da impressão de 1984 que eu tinha sobre o sistema do país. Significa que a imagem que tenho da China depois filme é boa? Tanto quanto a do Brasil. Trata-se que a China “classe-média comunista”, assim digamos, ganhou ares de um país qualquer.

Campinas, 26 de junho de 2008

quinta-feira, 22 de maio de 2008

American way of live x manière française de vie

Se os Estados Unidos tem o american way of live para vender ao mundo, calcado na competição e no self-made man individualista; os europeus têm também seu modo de vida para consumo externo (e interno), pretensamente superiores: social-democracia, humanismo, alta-cultura, com seus escritores, intelectuais, orquestras, artistas. E, assim como tem os otários que compram a propaganda estadunidense, há também os otários, como este escriba, que compram a propaganda européia. Está certo que nos justificamos por justificavas que aparentemente são melhores do que as do modo estadunidense, mas os defensores deste acham que possuem a mesma razão, ainda que por razões diferentes. De qualquer forma, pouco importam as razões, elas não justificam a opção praticamente passiva por um ou outro modelo.
É sempre alentador quando um filme consegue fazer uma boa crítica de qualquer um desses modelos. Do american way of live temos mais facilidade em encontrar exemplos, do que do modelo europeu, já que é o modelo predominante. Às vezes é difícil achar uma crítica a ambos, ou pelo menos uma crítica a um dos modelos que não tragam escondida a defesa do outro. Pois é justamente o que Julie Delpy faz em seu filme Dois dias em Paris, na qual ela também interpreta a protagonista. Na verdade, esse tom do filme foi uma agradável surpresa. Ao ler a sinopse no jornal, que falava de um casal nova-iorquino que tenta recuperar o relacionamento em Paris, a cidade natal da protagonista, imaginava um drama, com diálogos existenciais. Não que o filme não tenha sua profundidade, mas ele quebra justamente com essa aura de seriedade. Na sinopse do cinema, falava em comédia romântica, termo que imediatamente me remete a Sandra Bullock e Julia Roberts, o que me trás arrepios. Se realmente se trata de uma comédia romântica, felizmente não segue o american way of romantic comedy.
Logo no início do filme, Jack, o namorado da parisiense (Marion), um americano que não sabe francês, paranóico com ataques terroristas e hipocondríaco, reclama do fato de ter que ficar na fila sob um céu nublado para tomarem um táxi, na saída da estação de trem. A mulher sai em busca de alternativa. Enquanto isso o grupo que está à sua frente na fila se apresenta como um grupo de cidadãos estadunidenses e pergunta se Jack não sabe onde está o Louvre. Ele diz que sim, que é ali perto e indica o caminho. A americana que pediu a informação agradece e confessa o quanto os franceses são metidos e pouco confiáveis. O grupo parte e quando Marion volta Jack já é o segundo da fila. Rebate a crítica de Marion por ter indicado o caminho errado - até porque o Louvre ficava há milhas de distância, segundo ela - dizendo que “os mais fortes sobrevivem”, logo, não pode ser acusado de ter feito nada de errado. Esse início é a chave para não imaginar que o filme, que no seu desenrolar vai se centrar na crítica aos pretensos círculos intelectuais e artísticos parisienses, irá fazer apologia do modelo estadunidense.
E o que se desenrola a seguir é uma sarcástica crítica aos ideais franceses – e europeus – que atacam de 68, na figura dos pais de Marion, como no próprio comportamento desta, aos ataques contra a globalização, feito por um gay-exotérico-lunático. Boa parte do desenrolar da história se dá em torno de temas sexuais, cantadas, encontros com ex-namorados, amantes, com algumas pitadas de preconceito, grosserias, falta de educação, racismo e rebeldia adolescente por parte dos personagens – e o filme se passa em círculos de artistas, escritores, fotógrafos, etc, teoricamente a nata do manière française de vie.
Enfim, uma sugestão para mais do que dar umas risadas, quebrar uns paradigmas.


Campinas, 22 de maio de 2008