quarta-feira, 16 de julho de 2008

"Infelicidades"

Conversa velha, ainda que tenha escutado ontem e tratasse de notícias recentes. Velha porque os jornais de hoje já trazem uma mais nova – do mesmo teor, infelizmente. Na conversa ouvida ontem, um típico homem de bem, com toda a sabedoria dos primeiros fios de cabelo branco que começam a despontar, comenta o infortúnio de outra vítima “inocente” de uma ação policial. Diz compreender o lado dos policiais. Afinal, bandido hoje não respeita mais ninguém, nem a polícia, não resta outra alternativa que meter bala e matar os bandidos. O bom e velho “bandido bom é bandido morto”, ao gosto de Hebe, Padre Marcelo, Henri Sobel, e tantos outros. É certo, completava ele, que às vezes acontecem infelicidades como a morte de “inocentes”, mas é o preço a se pagar. Claro que para ele é um preço a se pagar enquanto não for a filha dele a próxima vítima “inocente”.
Antes de continuar, abro um parênteses para explicar o porquê do inocente entre aspas. Não se trata de dizer que somos todos culpados por ter deixado a situação chegar ao ponto que chegou, a ponto sermos todos culpados, como no título do último romance do Férrez, Não há inocente em São Paulo
. Ponho as aspas porque, ao vivermos em um Estado Democrático de Direito, todos somos inocentes antes que se prove o contrário. Também porque é dever do Estado proteger a vida dos seus cidadãos. E não há na Constituição, até onde eu saiba, distinção entre a vida dos “cidadãos de bem” e dos “cidadãos do mal”, geralmente designados como “marginais” (o que é muito acertado, se se deixar de lado a carga negativa que o termo atual carrega) ou “bandidos”. Assim sendo, toda vítima da polícia é, a princípio, vítima inocente – ainda mais sabendo como age a polícia brasileira, com seus “mortos em confronto”, não raro desarmados, rendidos e fuzilados pelas costas, a curta distância.
Os jornais de hoje, a exemplo do que publicaram há dez dias, há uma semana, há dois dias, estampam a notícia de mais uma vítima “inocente” da ação policial. Os homens de bem possivelmente tenham se alarmado com mais essa fatura que chega à sociedade: “meu Deus, o que está acontecendo?”, talvez se perguntem, evocando a iluminação divina que tanto falta a esse tipo de gente, apesar dos crucifixos e dos adesivos da Nossa Senhora ou com o nome de Jesus, que não raro ostentam. Se se trata de novidade para quem acha que a culpa no campo é do MST ou que na favela só tem bandido, para os marginais, essas milhares de pessoas que vivem à margem da sociedade e do Estado, acostumadas a serem tratadas sempre como suspeitas – quando não como criminosas, logo de cara –, é apenas um passo além no processo de democratização do país. É o dia-a-dia que há muito eles estão acostumados a enfrentar e obrigados a calar, que chega, finalmente, ao asfalto. As vítimas “inocentes” dessa ação de ascepcia social ainda são poucas, se comparadas ao número de vítimas totais da polícia; por isso ainda são tratadas como “infelicidades”. Mas não parece ser tratar de um fenômeno isolado. Boa parte da população, inflamada por jornalistas policiarescos e filmes de Hollywood, pensa que justiça é necessariamente feita com sangue – ou pelo menos com a execração pública dos suspeitos. Os políticos, temerosos de questionar a irresponsabilidade dos meios de comunicação e serem taxados de autoritários, de quererem a volta da censura, e terem que arcar com a perda do apoio da imprensa nas próximas eleições, aceitam pôr mais lenha na fogueira, defendem a ação da polícia e acusam os críticos de irresponsáveis. A oposição, por seu turno, trata de cobrar ações mais duras, na esperança de angariar votos da classe média temerosa. E assim, nesse elevado e frutífero debate, vai-se construindo uma solução democrática de guerra ao crime. Com custos, preços a pagar, como toda guerra, mas justificada pelo princípio da luta do bem contra o mal.
Se o típico cidadão de bem não fosse de uma incapacidade intelectual aviltante, cuja principal função do diploma superior (quando não do título de mestre ou doutor) é avalizar o senso comum que arrota com pompas de erudição, talvez esses quatro assassinatos cometidos pelo Estado noticiados pela imprensa, ocorridos só no mês de julho, já seriam mais do que suficiente para acender uma luz amarela. Mas o homem de bem não tem um raciocínio tão refinado para poder pensar em três cores. E esta não é a primeira vez que se tem razões suficientes para luzes amarelas serem acendidas. Não ficarei nem um pouco surpreendido ao ouvir, como solução para o fim das vítimas “inocentes” das ações policiais, que todo homem de bem blinde seu carro. Isso, inclusive, abreviaria o trabalho da polícia: ela atira (como tem feito), se a bala bater e não entrar no carro, era inocente, se entrar e acertar os ocupantes, não tem problema: eram bandidos, foi até bom que acertou. Os motoristas de táxi podem se abraçar e celebrar o assassinato, como fizeram neste último caso.

Pato Branco, 16 de julho de 2008

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Um trem para uma outra visão


Aluguei esta semana o filme O trem de Zhou Yu, filme de 2003 do chinês Zhou Sun. O filme conta a história de uma artesã oleira que duas vezes por semana faz uma longa viagem em trem para visitar seu namorado, um poeta e funcionário de uma biblioteca, até que em uma dessas viagens se depara com um veterinário hedonista. Achei um filme de uma poética delicada, semelhante a outros filmes orientais, como o japonês Dolls, de Takeshi Kitano, ou os do sul-coreano Kim Ki-Duk.
Em O trem de Zhou Yu, o trem e o trajeto simbolizam mais do que o superar distâncias pelo amor, antes o próprio amor como um trajeto a ser percorrido, com seus percalços e seus encontros e desencontros fortuitos, capazes de mudar sua rota, de fazer com que se pare antes da estação desejada, que se conheça paisagens inesperadas, e se desconheça horizontes queridos. Também podem simbolizar que entre duas pessoas, entre dois amantes, há distâncias maiores a serem superadas do que aquela percorrida pelo trem. O filme, contudo, não se resume a metáforas com trens e trajetos e estações. Há outros momentos de sutil poesia, como quando escritor e artesã, mesmo juntos, não conseguem olhar para a mesma direção; ou o questionamento sobre a fragilidade da arte, frágil como o amor. Mais do que um modelo para amar – como se costuma encontrar nos filmes ocidentais – O trem de Zhou Yu apresenta as complicações e contradições do amor.
Porém um outro ponto me chamou bastante a atenção: o filme se passa na China do início do século XXI. Um país já com índices de crescimento assustadores, mas cuja prosperidade, conforme a imagem vendida pelos detentores da “liberdade”, está localizada nas ilhas capitalistas, como Shenzhen, por exemplo. No resto do país – ao menos é a visão que sempre tive a partir da leitura dos jornais – uma vida controlada, cheia de restrições, infeliz e, se não de pobreza, sem nada além do básico. Não é o que o filme passa. Talvez seja proposital. Patrocinado pelo governo, fez-se um filme em que é apresentada uma visão positiva do regime. Se é isso, o faz com impressionante sutileza. Os três protagonistas do filme, o poeta funcionário de biblioteca, a artesã oleira e o veterinário, nenhum está nessas ilhas capitalistas de prosperidade e “liberdade”. Soam antes como cidadãos comuns, da classe média do regime dito comunista do país. O veterinário é apresentado como o personagem já mais afim à nova China, mas está longe de ser um novo rico. E nem por isso há um clima de terror, vigilância ou controle. A ponto de, em certa altura, eu resolver dar uma olhada nos créditos do filme, para averiguar que se tratava mesmo da China e não do Japão ou da Coréia. Nota-se certas intromissões na vida dos personagens em alguns momentos, como quando um funcionário público tenta uma aproximação com a artesã, e pelas tantas comenta que só terá direito a uma casa depois que se casar; ou quando o poeta é avisado de que será demitido da biblioteca, mas pode optar em ir para o Tibet. Em suma, a impressão que o filme passa é o da China comunista como um país de terceiro mundo, não muito diferente do Brasil ou da Argentina: cidades sem qualquer beleza, com ruas sujas; pessoas com condições de vida razoáveis; e um governo que não é empecilho para que se viaje, compre cigarros ou que um poeta namore uma oleira de uma cidade distante.
Pode ser contra-propaganda chinesa, e não se deve, portanto, levar o filme tão a sério. Mas admito que serviu para tirar muito da impressão de 1984 que eu tinha sobre o sistema do país. Significa que a imagem que tenho da China depois filme é boa? Tanto quanto a do Brasil. Trata-se que a China “classe-média comunista”, assim digamos, ganhou ares de um país qualquer.

Campinas, 26 de junho de 2008