sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Conversas entre universitários

Estava difícil bandejar hoje. Não por conta da comida, pesada como sempre, mas que estava até saborosa. O problema é que, sem achar companhia, resolvi enfrentar a referida casa de pasto sozinho. Nenhuma novidade até aí, e há seus pontos positivos em comer solito: acabo me inteirando um pouco do que pensa a pretensa elite intelectual brasileira. Mas há conversas que embrulham o estômago, mais do que salsicha ao molho com salada de berinjela e suco de caju.
Bandejão cheio, sento a esmo em qualquer lugar. Ao meu lado, um rapaz e uma garota conversam. Não consegui identificar de que curso eram, e isso não vem a ter grande importância. Nem sei - ou lembro - do que falavam no início. Alguma conversa banal que não me chamou a atenção. De repente, não mais que de repente, o cara enceta um papo que começou a me aferventar o sangue.
Começou contando a história - que ele deve ter lido em alguma dessas milhares de correntes de e-meio lidas e repassadas por idiotas - de que o prêmio Nobel de medicina do ano passado (ele devia estar pensando no alemão que ganhou este ano), aos quatro anos de idade, com os pais mortos em campos de concentração (ainda que Hausen não me soe muito judeu ou cigano, mas enfim) e abandonado pelos vizinhos que tinham ficado responsáveis pelo seu cuidado, já fazia parte de uma gangue, e só sobreviveu por causa disso. Terminada a história eu esperei o arremate lógico desse tipo de pensamento - que não podemos dizer que prima pelo refinamento, ou mesmo pelo pensamento -, mas ele emendou a história do próprio pai: com sete anos era ele quem cuidava da quintanda do avô. "Meu pai já era micro-empresário com sete anos!". Lindo, pensei, conclua dizendo que só é pobre quem é vagabundo e que qualquer um, desde que trabalhe, ganha um prêmio Nobel, e me deixe comer em paz. Mas não, ele tinha mais a falar. Disse que quando tivesse um filho, aos quatro anos o largaria a 30km de distância de casa e se ele voltasse para casa, ótimo; se morresse, não era forte o bastante para fazer parte da família. Deve ser brincadeira dele, pensei. Pelo mutismo sério da moça, contudo, não devia ser tão brincadeira assim. Tentei me concentrar no meu almoço, contar as trinta e três mastigações; pensar em coisas agradáveis, como meu time beirando a terceira divisão. Mas o cara falava alto, e em breve lá estava sua voz ocupando minha mente novamente, me fazendo ter dificuldades em engoliar a comida. As pessoas, segundo ele, deviam ser criadas na dificuldade, porque se vivem na facilidade, não aprendem nada, não se tornam nada que presta. E citava o Nobel de medicina e o seu pai. Tive vontade me virar e dizer: "percebe-se logo que você sempre bebeu água mineral francesa, ainda que morando no Brasil", mas me contive: tive emoções demais por estes dias, melhor maneirar. Ele seguia com sua verborraria fascista torturante. Se dizia contra o nazismo, que não havia essa de raça pura, mas fazia sentido que se primasse pela sobrevivência dos mais fortes. "O Nobel de medicina fazia parte de uma gangue com quatro anos!". E começou a contar a história dos espartanos - provavelmente lida em outra dessas correntes de emeio, ou na mesma, é mais provável - , que largavam as crianças com sete anos na selva, no frio, nuas e com uma lança, e elas tinham que enfrentar lobos e todos os animais e o frio e o diabo a quatro para voltar para casa (talvez ele não soubesse que a casa do espartanos era Esparta). Cansei do papo e resolvi sentar no lugar vago ao lado.
Ali a conversa melhorou, pero no mucho. À minha direita, novamente um garoto e uma garota conversavam. Banalidades que eu me esforçava em ouvir, para não ser tomado de assalto pelo fascista do outro lado. Daqui a pouco, senta na mesa ao lado um rapaz que sofre de nanismo. Bem, qual o problema, pergunto eu. Nenhum, respondo. Às vezes, nas primeiras vezes, pode até chamar a atenção. E desde a primeira vez faço questão de não reparar, afinal não há nada mesmo em especial para reparar, e ele já deve estar cansado de ser reparado à toa. Os dois ao meu lado reparam. Não era a primeira vez que o viam, como não foi difícil de saber. E gargalham e começam com algumas piadas sobre a altura do rapaz. Tive vontade de perguntar se sentiam muita falta do programa do Ratinho. Desconfio que responderiam que não, que isso era coisa do populacho. Que eles só assistiam programas sérios, como Jornal Nacional e Brasil Urgente. E se acaso acontecia de ligarem a tv no Ratinho quase toda noite, era só para ficar informado do que o zé povinho tem visto.
No outro lado, o fascistóide continuava falando que é na porrada e na dor que se aprende. Bem provável que se dependesse dele o rapaz com nanismo já teria morrido há muito, talvez contribuindo para o bem da ciência, certamente para a assepsia da cidade. Porém deixando mais triste a vida da dupla da direita.
Eu terminara a comida. Ainda restava a sobremesa. Sorte minha que era laranja. Pus ela na mochila e fui em busca de um pouco de ar fresco, arejar as idéias e pensar no que será do mundo quando essa a elite, amanhã, estiver no poder.

Campinas, 31 de outubro de 2008

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Chama tua mãe

Não sei bem quando me veio a iluminação (até agora) esclarecedora. Acredito que foi ao fim da minha primeira graduação, quando me deparei com a indefectível pergunta sobre o futuro. O diploma era uma desculpa a menos para seguir fora do “mercado de trabalho”. Mas achei um álibi para permanecer mais tempo fora, me preparando.
Me preparando para o que? Para o mercado ou para a vida?
Foi aí que me dei conta de maneira mais nítida da distinção entre envelhecer e amadurecer. E desde então minha briga tem sido em nadar contra a maré e fazer com que à passagem do calendário eu amadureça e não me encaminhe para ser um velho (no sentido pejorativo do termo).
Isso não significa – eu não precisava dizer, mas faço questão de ressaltar – que eu vá tentar esconder as marcas que o tempo traz, pelo contrário: quem acabou de me conhecer já nota os cabelos um tanto ralos, e os de longa data, já me comentaram a marcante alteração nos traços. Inclusive tenho notado que são essas marcas que formam a beleza da idade (e da pessoa que as carrega): uma pele mais lisa é bonita em uma moça de dezoito anos, não em uma mulher de trinta, quarenta anos, ainda mais que da pele lisa pode-se imaginar que ela traz consigo uma razoável falta de maturidade e certa inexperiência – ainda que essa conclusão não seja necessária, ao menos quanto às moças de dezoito anos.
Todo esse preâmbulo porque hoje eu, com um quarto de século nas costas, desde 2000 morando fora da casa dos pais, os cabelos ralos e dois dias de barba por fazer, vou atender a alguém que toca a campainha. É uma mulher que munida de um Ford Fox vende travesseiros. Não me interessei. Mas voltei pensando nos meus amigos: boa parte empregado, muitos já casados ou em vias de, nenhum com filhos ainda – mais por terem “boa cabeça” e camisinhas sempre à mão –, todos já ganhando ou entradas, ou rugas, ou dores, ou peso, ou seus primeiros fios de cabelo branco, ou, como eu, perdendo cabelos. Pensei a quantos costuma ocorrer – ou há a possibilidade de acontecer – de, ao atenderem uma vendedora, escutarem: “chama tua mãe e pergunta se ela quer comprar travesseiro”?

Campinas, 30 de setembro de 2008