quinta-feira, 25 de junho de 2009

O consumo da infância

Dia desses comprava algo em uma cantina da universidade, e a televisão ligada no jornal do meio dia da Rede Globo berrava a reportagem. Falava sobre o primeiro beijo, o qual hoje costuma ser dado aos cinco, sete anos de idade, dizia a repórter. Não me detive para assistir à reportagem. O tom até então era apologético dessa precocidade dos pequenos em “demonstrar o afeto” caçando o sexo oposto.

Diante desses absurdos (o assunto da matéria e o tom da reportagem), na hora me lembrei do autor situacionista Raoul Vaneigem, que na década de 1960 já escrevia em seu livro A arte de viver para as novas gerações que “a própria infância é lentamente colonizada pela sociedade de consumo. Os menores de dez anos já são uma categoria como os teenagers na grande família dos consumidores: consumindo a infância ao invés de vivê-la, a criança envelhece em tempo recorde” (p. 228). A reportagem trazia isso bastante evidente: havia ali crianças, mas não infância. Mini-adultos-adolescentes que aos dez anos terão sua primeira ruga; aos doze, cabelos brancos e aos quinze já terão experimentado (consumido) tudo o que dizem que há no mundo para experimentar (consumir), sem nenhuma vivência de fato. E que aos trinta continuarão se portando igual aos dez, mas com o próprio dinheiro.

Lembrei também de um amigo da infância. Deu seu primeiro beijo bem depois dos cinco anos, mas desde cedo aprendeu a ser um adulto responsável, cumpridor das suas tarefas. Sempre teve todos os seus horários para o dia bem estipulados pelos pais: tal a tal hora, estudar; tal a tal, brincar; depois, aula; na volta, brincar; aos doze anos, tomar Prozac; tal a tal hora, treinar caligrafia; a seguir, estudar flauta; depois, tomar banho e jantar; a tal hora, ler a Bíblia e rezar, e por aí adentrou a idade adulta, sempre eficiente (apesar de não conseguir estipular minimamente uma rotina pra si). A última vez que o encontrei estava com a vida bem encaminhada e feliz… como só o Prozac é capaz de deixar.



Campinas, 25 de junho de 2009
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terça-feira, 9 de junho de 2009

Alfabetizados que não sabem ler

Almoçar no Bandejão da Unicamp sozinho, escutando conversas alheias, de vez em quando é bom para saber a quantas anda a futura elite do país.

Conforme Dimenstein, apenas 5% dos alunos que concluem o ensino médio na rede estadual de SP dominam a escrita e a leitura. Claro, trata-se alguém que se deve ter sempre com muita cautela. Não somente por sua defesa ingênua do self-made man, como por seu anti-estatismo difuso e por sua visão precária do que é educação (agregador de “capital humano”). Cito esse dado não por duvidar dele, mas porque creio que fôssemos para a escola privada com os mesmos critérios, e os resultados não seriam muito diferentes. Mesmo na França, Foucambert apontava, em 1986, que 15% dos franceses alfabetizados viam os escritos como pictogramas – analfabetos, enfim. Na outra ponta, apenas 30% eram leitores. Porém penso que não devemos encarar leitura somente a de textos literários (ainda que isso ajude muito): já dei aula para senhoras analfabetas e que tinham uma leitura do quotidiano muito arguta.

Enfim. Dias atrás estava eu próximo a um grupo de pós-graduandos, não sei de qual área. Pelas tantas falaram de um congresso que aconteceria no Rio. Do Rio, assunto imediato, o avião da Air France. Todos por dentro das últimas notícias. “Será que alguns sobreviventes não conseguiram ir até Fernando de Noronha”, perguntava uma. “Como”, questionava o esperto do grupo. “É, acho que não. Explodiu no ar, caiu na água”, respondia o outro. Em resumo: dos quatro, três achavam que o avião havia caído nas proximidades de Fernando de Noronha. O quarto tentou argumentar contra, foi derrotado pela maioria.

A conversa prosseguiu, com relatos de corpos e pedaços do avião encontrados. Enquanto isso eu me questionava: se eles não têm capacidade de compreender um dado simples, o que esperar de quando o assunto for algo mais complexo, como política ou aborto? Admitirão, com seus títulos e certificados pendurados na parede, que devem calar e dar a vez a quem tem o que dizer, seja analfabeto ou torneiro mecânico?


Campinas, 09 de junho de 2009


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