quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Mil utilidades. Para quê mesmo?

Houve um tempo em que para cada atividade havia um equipamento específico. Para escrever um texto, papel e caneta ou máquina de escrever; para ouvir música, usava-se um rádio; para ver tevê era necessário um televisor, o qual, se acoplado a um video-game permitia jogar jogos eletrônicos, ou se a um video-cassete, permitia assistir a filmes. Se se quisesse filmar seus próprios, fazia-se mister um trambolho chamado filmadora (vinha numa mala preta). Uma máquina fotográfica - desde que não as profissionais - era muito mais prática, mas só permitia tirar fotos. As únicas coisas que se tinham mil utilidades eram o canivete suíço e uma marca de palha de aço.
Coisas do século passado. Hoje critica-se um leitor de livros eletrônicos por só permitir ler livros. Quanto desperdício: um aparelho para apenas uma função nestes tempos de tudo faz tudo!
De minha parte, começo a notar que vou ficando para trás nesta época multi-uso. Ligo o computador para escrever uma crônica. Antes de desfilar meus dedos pelo teclado, ligo programa de ouvir música. Dou uma checada rápida no e-meio: vai que aquele e-meio inesperado que vai mudar minha vida e que há tanto tempo espero chegou justo nesses quinze minutos desde a última vez que acessei a internet. Nada. Às vezes penso que é por conta de eu ainda preferir escrever cartas. Aproveito também para ver notícias do meu time, por mais que não seja grande entusiasta de futebol. No embalo, lembro de jogar qualquer jogo - rapidinho, uma partida só. Depois dessa partida começarei a fazer algo que presta. Mas descubro que há novas músicas do Radiohead. Vou em busca. Vejo as horas, um compromisso me impede que eu comece a escrever - mas não de pôr um disco do Sigur Rós para baixar. Menos mal que não tenho orkut nem uso msn, ou era capaz de perder esse compromisso também.
Desligo o pc e decido: mais tarde, quando retornar à casa, se eu lembrar sobre o que eu iria escrever, escrevo no papel e uso o computador só para passar a limpo. É... "na minha época" se concentrar era algo bem mais simples.

Campinas, 26 de agosto de 2009


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quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Bons fraseadores (Borges Saramago Mia Couto)

Voltava de São Paulo de carona e a motorista, uma guria formada em música, que trabalha com dança e tem um bom repertório de literatura, comentava da sua decepção com o filme Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles. Segundo ela, mesmo nas cenas mais fortes, o filme não conseguia causar o mesmo impacto que o livro. Foi por imaginar que eu também acharia isso que não me empolguei em assisti-lo. Ademais, ela continuou, o Saramago possui toda uma poética na escrita, possui frases lapidares, coisas que o filme não conseguiu transmitir.
Isso me fez lembrar dele e de um outro autor que considero os maiores fraseadores que conheço (o que não quer dizer muito), e a forma como parecem soltar essas frases em meio às suas narrativas. Imagino esses autores em barulhentos almoços de domingo, todo mundo falando ao mesmo tempo com todo mundo. De repente Borges dá uma breve e baixa pigarreada. A mesa não chega a fazer silêncio, mas as conversas amainam e os ouvidos atentam ao que o escritor tem a dizer. Ele então solta uma das suas frases magistrais, para deleite de todos - mesmo os que não concordam com ela - e a conversa volta a se avolumar, mais rica e animada. Diferentemente vejo Saramago nessa situação. Em meio a toda balbúrdia, o português leva o guardanapo à boca e meio sem graça, como se se tratasse de um arroto, vem uma frase maravilhosa, que muitos correm o risco de não notar, tamanha a discrição.
A conversa com a Paula (a motorista) me fez lembrar de outro bom fraseador, que há tempos pretendia reler - e que o faço agora, empolgado pela carona -, o moçambicano Mia Couto e seu livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Não sei como ele se portaria num almoço de domingo, mas para não ficar feio tanto falar de frases e não citar nenhuma, duas dele: "Os lugares não se encontram, constroem-se" e "O velho Mariano falou, argumentando tudo por extenso. Que o mundo não mudaria por disparo. A mudança requeria outras pólvoras, dessas que explodem tão manso dentro de nós que se revelam apenas por um imperceptível pestanejar do pensamento".


Campinas, 19 de agosto de 2009

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