terça-feira, 29 de setembro de 2009

O perigo de viver

Viver é perigoso, dizia Guimarães Rosa. E quem sou eu para duvidar da sabedoria do senhor João. Confesso, contudo, que nunca consegui entender bem os perigos do viver. Talvez porque ainda não tenha me sentido apto para mergulhar em Grande Sertão: Veredas (por mais que o livro já me tenha sido fortemente receitado pelo Hugo), aliado a minha pouca idade, parca experiência, limitada vivência. A vida para mim ainda é muito complicada para conseguir apreendê-la em toda a simplicidade apresentada por Guimarães Rosa.

Tem horas que pergunto se esse perigo não estaria no desconhecer a linha que nos sustenta em vida. Entre a frágil teia de aranha, que num sopro se rompe, e a corrente que prende firme, às vezes mais do que se deseja, em que ponto se sustenta nossa vida? De qualquer forma, imagino que esse perigo é o de menos: mesmo sustentado por um tênue fio, ele nos permite dançar a vida com a alegria e leveza necessárias. Talvez seja maior o nosso medo de voar e nos perdermos do solo em meio a essa dança.

Quem sabe o perigo maior esteja nos fios que vamos tecendo com os outros – próximos e distantes -, como os fios de sol que os galos do poema de João Cabral de Melo Neto se lançam a cada aurora para tecer a manhã. Apanhamos o sentimento de alguém, lançamos nossos a outra pessoa, sem saber por quem passará nesse interlúdio e como chegará – se chegará – ao destino desejado. E de fio apanhado aqui, arremessado acolá, vamos tecendo uma teia de sentimentos em nossa volta, que nos garante mais segurança em nossa vida, mas muitas vezes nos atrapalha nosso ballet pelo mundo. Uma hora nos vemos como a cidade de Ercília, descrita por Ítalo Calvino. Porém não podemos simplesmente levantar nossa casa, deixando ali a teia de nossas relações – que é, no fundo, a teia de nossa vida, do nosso ser.

Contudo, mesmo acostumados aos movimentos limitados por esse emaranhado, um dia algo nos faz despertar aos fios que não nos sustentam, apenas nos amarram. E descobrimos, como os galos a cada manhã, que não é preciso abandonar a Ercília: basta tecer um toldo livre de armação – livre de mágoas de culpas de responsáveis -, tomando cuidado, ao apanhar e lançar os raios que tecemos com os outros, de buscar apenas os sentimentos que nos permitam apreciar a vida em sua poesia.

Talvez o perigo do viver esteja em deixar a vida se esvair em um claustrofóbico novelo por medo do fio que a sustenta romper com a leveza do nosso bailado.

Pato Branco, 29 de setembro de 2009


Publicado em www.institutohypnos.org.br

sábado, 26 de setembro de 2009

Relatos de viagem

Há quem diga que uma imagem vale mais do que mil palavras. Em alguns casos, quem sabe, até pode ser. Mas eu, amante das palavras, penso antes que uma palavra é capaz de evocar mil imagens.
Comparava os relatos de viagem de duas amigas que há pouco estiveram na Europa. Ambas formadas, ambas gostam de fotografar, ambas escrevem bem – ainda que uma delas, não só pelo título de jornalista como pelas vivências extra-acadêmicas, possua um estilo mais solto. Os relatos da primeira foram feitos principalmente por meio de fotografias: a vemos nas cidades que visitou, em barzinhos, em festas, em restaurantes, no teatro; as fotos geralmente seguidas por alguma breve legenda para não ficarem totalmente aéreas aos amigos que resolviam dar uma passada pelo blog ver quais as últimas. Já a segunda, a formada em jornalismo, a Helô, fez seus relatos inteiramente em texto, ainda que não tenha poupado sua máquina durante a viagem. A diferença entre ambos é enorme. Com as fotos vemos, ah, legal, algumas cenas, paisagens. Mas que na internet achamos mais bem tiradas – em dia de sol, em visão panorâmica –, e que com o Photoshop podemos nos pôr nesses lugares. Já com o texto, passeamos junto com a Helô, sua mochila de doze quilos e a minha encomenda de mil e novecentas páginas, na direção errada para o albergue na madrugada parisiense.
Infelizmente relatos como os da Helô estão por baixo hoje em dia. Não somente porque demandam mais tempo de quem escreve, como de quem os lê. E penso que o principal motivo seja a superdependência do olhar que atualmente vivemos. Tudo precisa ser visto, ainda que pouca coisa seja realmente olhada, observada. E a nossa experiência – cada dia mais parca, rasa – se confunde com esse olhar. Não nos damos conta de que a experiência de estar em Paris ou Londres ou São Paulo, mesmo, vai além do que se vê, exige muito mais da visão: nosso estado de espírito, o estado do tempo, as expectativas carregadas e as sensações despertadas. Quem sabe mil imagens dêem conta de parte disso – como um texto –, mas precisarão ser trabalhadas e ir além de algumas fotografias.
Termino esta crônica com um pedido aos amigos que vão passar um tempo além-mar para mandarem seus relatos em garrafas virtuais. Ainda mais quando são observadores sarcásticos e escritores espirituosos – até por ser uma forma de diminuir a saudade. Seja em Granada ou alhures. Sim, Hugo, é para você: uma boa viagem, mande notícias, relatos, e até fotos, de vez em quando!

Pato Branco, 26 de setembro de 2009

Publicado em www.institutohypnos.org.br