sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Brasil menino

Eu já devia estar mais esperto: peça de teatro que não é só para entreter, não convém se fiar na primeira impressão, essa que sobe (ou desce, não sei) logo quando ela termina. Não que a primeira impressão não tenha sua validade, que não possa muitas vezes ser a formadora da opinião definitiva, mas sempre cabe matutar depois, repensar o texto e a interpretação e ver se não havia algo escondido.

Foi esse o caso da peça Brasil Menino, da Cia. Berro D’Água, de Campinas. Como a própria apresentação diz, a peça se propõe a uma reflexão bem humorada sobre a relação entre a brasilidade, a cultura popular e a cultura de massa e o apelo do exterior.

Os dois atores, Brisa Vieira e Guga Cacilhas, revezam uma série de papéis: idosos e crianças, passando por personagens adultos. E conseguem trazer bem a questão complexa da cultura popular e da cultura de massa popularesca, sem cair em simplismos. As crianças não são as porta-vozes da novidade, pelo contrário, suas brincadeiras ainda têm muito das brincadeiras simples de antigamente; assim como os antigos – como diz meu avô – não são os arautos do conservadorismo. No meio termo – que não fica tão no meio -, o adulto, a quem cabe ser o responsável por puxar o afoxé no carnaval. Esse mesmo adulto que tem seu rádio ligado quase o tempo todo em músicas bregas, de letra e musicalidade sofríveis.

Por um tempo parece que a cultura popular e a indústria cultural conseguem conviver bem. Isso até surgir uma francesa oferecendo ao personagem adulto (eu não lembro dos nomes, para variar) que a acompanhe à França. Diante de tal perspectiva, não há afoxé que resista. A avó ainda insiste para que ele desista de ir “pra outras Alemanhas” e puxe o afoxé, como era o combinado. Contudo, ao ser estendido o convite a ela também, abdica do afoxé pelo sucesso no exterior. O detalhe é que a cultura “popular” que eles vão apresentar na França é inspirada na que toca no rádio do adulto, nada a ver com o relegado afoxé.

Tentei pensar também a relação do texto com o título, algumas idéias pipocaram, mas nada que eu conseguisse amarrar a conteto. Uma certa inocência da cultura popular ou dos seus produtres, ao menos? De qualquer forma, essa foi minha leitura, passada a primeira impressão, de que a peça era meio bobinha (bobinho sou eu). Como peça que não serve para entreter tem várias leituras, acredito que haja outras bem mais interessantes. Para isso depende de assistir ao espetáculo e tirar suas próprias conclusões.

Ps: Página da peça: www.brasilmenino.blogspot.com


Campinas, 30 de outubro de 2009


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sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Pequenos poderes

É sábado. O ônibus que faz a linha 3.31, do terminal Barão Geraldo até a rodoviária de Campinas, deve sair às 19h17min. Um minuto antes, motorista e cobrador sobem no carro. Quando o relógio vira a hora exata o veículo já está ligado, as portas permanecem um tempo mais abertas. Dois ônibus vindos dos bairros chegam no terminal. Passageiros descem e vão correndo em direção ao 3.31. Assim que o primeiro se aproxima, o motorista fecha as portas e começa a sair. O homem ainda bate na porta. Mas há uma regra no terminal (creio que depois que um homem acabou sendo atropelado ali), de que uma vez fora do ponto, ninguém embarca. Como o sistema de transporte público de Campinas segue o modelo brasileiro, ou seja, é feito para se servir do público e não para servir o público, esses passageiros passariam agradáveis 40 minutos até o próximo 3.31.

Cena corriqueira, poderia ser sintoma de um sistema que busca certa precisão – nos horários, ao menos. Não é o caso. Um motorista recém demitido, o Francisco, do 3.25, esperava às vezes até dez minutos pelos carros vindos do centro, pois sabia do desagradável que é esperar quase uma hora até o próximo horário.

Outra cena, conversa que escuto enquanto desço a escada rolante no terminal Tietê, em São Paulo. Dois rapazes de classe média estão atrás de mim. Um deles fala, com ar de superioridade, que acha besteira esse negócio de deixar a esquerda livre para quem estiver com pressa. “Fico na esquerda, mesmo. E se o cara estiver com pressa, aponto [a escada normal] e digo: vai por ali”. Conta que uma vez fazendo isso foi empurrado por alguém, e que só não deu uma tranqueira porque “ficou com dó”.

Dou dois exemplos de desconhecidos, mas não seria difícil encontrar casos semelhantes que pratico sem me dar conta. Com a principal diferença que não me orgulho nada de tal tipo de ação.

Ao me deparar com tais situações tenho vontade de questionar o que tal pessoa tem na cabeça, o que ela ganha com esses pequenos sadismos que não acrescentam absolutamente nada à sua vida. Logo me dou conta da mediocridade que não deve ser essa vida, da pusilanimidade que não norteia sua existência. Junta-se a isso os reflexos de uma sociedade em que o poder pessoal é capaz de passar por cima da sociedade – vide os coronéis dos rincões atrasados do país, como Sarney e cia, ou mesmo os coronéis up to date do sul-sudeste avançado, como vários caciques do PT e do PSDB –, tais pessoas mimetizam em escala micro esses desmandos, como forma de se sentirem eles também importantes. Como se fazer alguém perder o ônibus equivalesse a roubar milhões de reais. Para as perspectivas de vida de tais pessoas talvez quase equivalha. Felizmente Brasília tem vagas limitadas.


Campinas, 16 de outubro de 2009.


Publicado em www.institutohypnos.org.br