domingo, 29 de abril de 2012

Três meses de São Paulo

Há três meses, na noite de 29 de janeiro, depois de um dia melancólico em Barão, eu aportava em São Paulo, que me recebia com sua famosa garoa. O apartamento aquela noite era só para mim. Estava todo bagunçado, abarrotado de expectativas e caixas para serem desempacotadas, que atrapalhavam a locomoção, mas não diminuíram minha alegria – era uma questão de me organizar.

Pois eis São Paulo sob garoa neste 29 de abril – não, São Paulo não é a "terra da garoa", não no século XXI, aqui é a terra das tempestades –, e eu com o apartamento inteiro só para mim: as duas pessoas com quem dividia saíram esta semana, uma porque daqui parte para a Europa; a outra porque os santos não bateram. Não há caixas a atrapalhar o movimento, apesar de ainda haver muitas expectativas a espera de ganharem a luz do dia (ou da noite). Outras pessoas já estão acertadas de virem morar, mas até se mudarem, relembro o que é morar sozinho. E este apartamento grande e branco e vazio reflete bem meu estado de espírito melancólico deste instante – deste instante!, é bom salientar.

Porque vivi neste três meses de São Paulo mais do que vivera nos últimos quatro anos em Barão. Uma cidade que tem meu ritmo – agitado –, e por isso faz com que eu me sinta mais tranqüilo: estamos em sintonia, em sincronia. Uma cidade que, se procurar, se encontra a cada dia horizontes novos, e oferece caminhos que permitem não andar em círculos. Ou mesmo onde percorrer o trajeto  de sempre não significa revivenciar as mesmas coisas.

Cidade que me abriu liberdades que eu não vislumbrava em Campinas, e com elas, coragens que eu não me permitia. É certo que São Paulo me faz rever muitas pessoas que não via há tempos, me permite encontrar sem querer com conhecidos. Mas, acima de tudo, me permite essa estranha comunhão do anonimato e da insignificância. Ser um anônimo, conhecer pessoas novas – interessantes, inteligentes, inusitadas –, e poder me apresentar também de formas novas. Que carregam ainda muito do velho – medos, limitações, e um jarro que eu julgava vazio, mas que descobri ser quase que uma caixa de Pandora para mim mesmo (ou de mim mesmo?). E sentir que mais do que à espreita, ao meu lado está a pantera que tanto temo. Ao mesmo tempo, notar o quão simples (não significa fácil) pode ser encontrar o refúgio quase idílico que almejo.

Descobri que São Paulo, que me soava hostil, por ser quase só cimento e asfalto, é poética, porque há pessoas, pessoas dos mais variados tipos, circulando e parando e te interpelando por entre o concreto e o piche. Que há o pixo, o lambe-lambe, que podem ser – parecem ser, muitas vezes – sinais de amor pela cidade. Cidade que por mais que autoridades e parte da população tentem, não permite que brinquem de esconde-esconde com ela, que se apresenta sempre inteira para quem quiser enxergar: nobre e mendiga, revolucionária e conservadora, violenta e pacífica, ampla e bitolada.

Como gosto de coincidências... neste dia 28 veio me visitar o Rafael, amigo de Barão – um dos poucos que, depois de terem entrado no mestrado em filosofia ou ciências sociais, consegui manter o mesmo contato franco e agradável de antes. Chegou quando o antigo morador terminava de retirar suas coisas. Em 28 de janeiro, Rafael foi um dos que estiveram no meu encontro de despedida. Esteve nas minhas duas despedidas: a de Barão, e a desta fase de São Paulo. Se da outra me deixou melancólico, me trouxe alegria desta feita: foi uma mostra mais de que o importante eu não deixei para trás.

Minha vinda pra São Paulo foi uma mudança, não uma revolução. São Paulo se apresentou a mim como uma cidade aberta, cabia a mim estar aberto a ela também para aproveitá-la, desfrutá-la. Esse me abrir – ainda incompleto – talvez tenha sido uma das minhas mudanças mais significativas nestes três meses. Que São Paulo agora dentre por completo este apartamento hoje vazio.


São Paulo, 29 de abril de 2012.

ps: a foto é do fotografo japonês Tatewaki Nio, que tomei conhecimento na exposição "Escultura do insconsciente", na Funarte, Campos Elíseos.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Um casal adolescente na minha frente

Tenho variado meus locais de estudo em São Paulo entre minha casa, a PUC e o Centro Cultural São Paulo (CCSP). Se na PUC há basicamente universitários, no CCSP, há uma considerável variedade de tipos: universitários, estudantes do ensino médio e cursinho, concurseiros, gente sem vínculo oficial com o ensino, e sei lá quais outras possibilidades.

Hoje – agora – havia vindo no CCSP almoçar e decidi estudar no próprio restaurante. Há um pouco de conversa, mas isso é uma constante do lugar – o que torna impossível concentração para estudar Hegel, por exemplo, e moda usar protetor auricular. Na minha frente, um casal, apostilas de cursinho ou ensino médio a acompanhá-los. Já havia notado uma vez o rapaz: outro dia dera uma mini-aula de física, de quase meia hora, a um amigo, em um local onde geralmente faz-se um pouco mais de silêncio. A mocinha, ainda não a notara, apesar que havia belos motivos para isso – bonita, belos olhos, bochechudinha, enfim.

Quando me sentei para almoçar – isso umas três da tarde –, discutiam o que estudar – decidiram por geopolítica, se não me engano. Seguiram um tempo lado a lado, cada um com sua caneta grifa texto, até que ela se apoiou em seu ombro, para estudar mais confortavelmente. Tão confortável que logo dormiu. Ou talvez nem tanto, porque não demorou para se debruçar sobre a mesa e dormir mais agradavelmente. Ele seguia a mudar as páginas e fazer correr a caneta por elas. A mocinha acordou depois de um tempo, e sem ter estudado muito, quando olhei para eles novamente, estava o namorado a explicar-lhe não sei bem o que.

Fiquei pensando. Tinham seus dezessete anos, mais ou menos, e o futuro em aberto, amplo, farto – assustador, se se parar para pensar. Em um ano ele poderia estar cursando o curso que queria, na melhor universidade do país, em São Paulo, mesmo; enquanto ela teria de decidir entre um curso que não lhe apetecia, só para seguir morando em Sampa, ou aceitar entrar no curso que era sua segunda opção, a oito horas da casa dos pais e do namorado. Em dez anos, ela poderia ser uma mulher bem-sucedida, uma carreira de sucesso e um futuro promissor dentro dela, engolindo a vida ao fim do dia, junto com dois comprimidos, para afogar qualquer pensamento acerca do caminho que trilhara. Ele poderia se descobrir em algo absolutamente inesperado e diferente e, a despeito da pressão dos pais por ganhar dinheiro ou deixar de ser “vagabundo”, se sentir feliz diante de tudo o que poderia ser e abandonou.

Tinham o devir em aberto, com ampla gama de opções – até pela condição social. Deviam ter suas angústias. Certamente as teriam – passarei, não passarei, onde, no que, terei sucesso –, mas pareciam estar presentes o suficiente para saber desfrutar do agora – por mais que fossem chatas apostilas ao lado do companheiro –, alheios a possibilidades – futuras ou passadas.

É claro que me projetava neles, em boa medida. Daqui um mês estarei começando uma faculdade que é minha segunda opção, porque não consegui passar na FAU-USP. Daqui um ano é esperado que eu já tenha defendido meu mestrado, e que já esteja preparando o projeto de doutorado. Mas vejo diante de mim um futuro amplo, talvez mais vasto do que via quando tinha dezessete anos. Ao mesmo tempo, sinto que algo precioso do agora se me escapa, escorrendo em possibilidades pretéritas que tornam o desabrochar do presente abrupto, em solavancos, carente da leveza necessária.

Quando estava prestes a terminar de escrever esta crônica, explicação do namorado já encerrada, a garota troca de apostila e boceja. A invejo por se permitir um quê de preguiça em plena quinta-feira, como quem não sente que tem tempo perdido para recuperar.

São Paulo, 26 de abril de 2012.