quarta-feira, 25 de julho de 2012

Uma noite de terça na Augusta


O plano era simples: voltara da musculação morrendo de fome, não estava a fim de preparar e comer um macarrão-gororoba de novo, e decidi comer num fast food japonês, no baixo Augusta. Depois de jantar, se desse vontade (claro que deu) desceria um pouco mais, até aonde houvesse movimento, subiria pela calçada do outro lado, e nem uma hora depois, chegaria em casa devidamente alimentado (ia dizer “bem alimentado”, mas depois de jantar junkie food o máximo que se pode dizer é alimentado). Trocaria de roupa, talvez nem lesse e ficasse como na noite anterior: pensando, ao som de Sigur Rós, o porquê de Yuki ter me atraído mais do que May ou Yumiyoshi, apesar de ser uma garota de treze anos, meio mediúnica e de modos secos – falo de personagens do romance Dance dance dance, do Harumi Murakami. E sem concluir meus pensamentos, dormiria o sono dos justos.

Não foi bem o que aconteceu. No meio do caminho encontrei dois amigos num bar, parei para dar um alô, trocar rapidamente uma idéia – em pé, mesmo – e seguir meu plano original. Começou que esse rapidamente já devia estar durando quase dez minutos, mas eu resistia a sentar – até porque eles estavam na saideira.

Estava em pé conversando, quando uma mulher veio pedir ajuda pra segurar uma outra. Reparamos no bafafá que acontecia do outro lado da porta do bar, nos olhamos – depois um dos meus amigos disse que de início achou que se tratava de um cantada –, enquanto nos olhávamos tentando entender, sinto uma pancada no lado direito, na altura do rim. Na troca de tapas entre duas mulheres, uma delas foi empurrada e me acertou. Não que tenha sido um golpe que me fez contorcer de dor, mas não foi de leve e foi bem colocado. Depois dessa, aceitei sentar um pouco, pra seguir com a conversa, enquanto meus amigos tomavam sua segunda saideira. Para facilitar a crônica, chamemos a um deles de “amigo lindo”, e ao outro de “amigo do Garcia” – razão que ficará clara no correr desta crônica.

Pouco depois desse empurra-empurra, a mulher que me acertara o rim – que devia ser amiga dos donos – entra no bar e volta com um controle remoto que joga no meio da rua: “venga segurar-me”, desafia em portunhol. O amigo lindo ainda mantem o bom humor, pede pro dono: “aumenta o som da tevê, por favor!” Um tempo depois a mulher entra no bar de novo e quebra algo dentro. “O clima não está bom, vamos tomar a saideira e vazar”, sugere o amigo do Garcia. A mulher segue causando, e a dona decide chamar a polícia. Meus amigos decidem tomar uma saideira mais, pra ver como vai acabar a história. Acaba que a polícia chega muito tempo depois: já havia dado tempo pra pedir a quarta saideira e a mulher já havia sumido – e olha que ela ficou um tempo rondando por lá. Enquanto isso conversávamos quase-amenidades: Casuística (claro), Deleuze, estruturalismo, Debord, fim da PM, Safatle... Um morador de rua passa correndo: vacilou, a polícia já tem quem pegar: preto pobre e fugindo: é culpado. Saem atrás dele, e o alcançam uma quadra acima para uma geral.

Uma garota na mesa ao lado, consideravelmente alcoolizada, resolve puxar papo. Primeiro pergunta onde moramos – estranho a pergunta, imagino que talvez quisesse saber de onde viemos, já que ainda carrego restos do meu sotaque leitE quentE. Se irrita que não entendi a pergunta – logo eu que sou inteligente e tal, como ela vai dizer várias vezes na noite. Pergunta se alguém tem um baseado – mesa de quadrados, ninguém. Cisma que somos artistas. Canta uma música que não me é desconhecida, que não consigo reconhecer (nem lembrar agora). Convidamos para sentar na mesma mesa que nós, ela se recusa e pede desculpa por se intrometer. Voltamos a nossas quase-amenidades. Não tarda muito e ela outra vez puxa conversa – sempre com uma música pra ilustrar qualquer coisa, assim como eu costumo ter uma tirinha. Demora até ela aceitar sentar na mesma mesa. A ébria conversa que se segue é papo de doido, sempre pontuada por alguma música: ela faz perguntas bizarras – que evito reproduzir, vai que minha mãe ou algum menor de idade leia –, e quando perguntamos algo de boa – como porque ela achou que éramos artistas –, se sente ofendida. Está bêbada, eu sei, não precisava ela repetir seguidamente. Meus amigos também estão um tanto altos. A conversa segue non-sense, nossa nova amiga começa frases e não termina, o amigo do Garcia ora toca air guitar e air drums para acompanhá-la, ora manda patadas – como, por exemplo, recriminá-la por seu air cavaquinho estar com o braço muito grande –, o amigo lindo decide tentar “ganhar a noite” – eu fico meio de canto, rindo, de vez em quando lembram que eu também estou na mesa. Não sei em que saideira estão, acaba sendo a última porque o bar está fechando – são quase três da manhã –, e resolvo pedir um copo, pra ver se um pouco de álcool me permitiria acompanhar a conversa. Não ajuda muito.

O bar fecha, decidimos descer a Augusta – depois de nossa nova amiga abraçar e beijar os donos do bar. Na indecisão do que fazer – depois de pararmos para que nossa nova amiga abraçasse e desse um beijo na bochecha de um funcionário que mexia na rede de esgoto –, o amigo do Garcia falou que iria consultar seu “guia espiritual”, o tal Garcia. Fomos atrás dele. Garcia é o porteiro de um inferninho. Enquanto o Garcia, a pedido do aqui chamado amigo do Garcia, explica como funciona a casa, eu, o amigo lindo e a nossa nova amiga estamos nos distraindo com outras coisas. Garcia se ofende com nosso desdém, meu amigo se irrita (mais), e seguimos descendo.

Paramos num bar. Nossa nova amiga liga para o pai, que desliga na sua cara – esquecia: é uma moça bonita, aparenta vinte e poucos mas diz ter trinta e cinco. O amigo do Garcia até segue tentando alguma conversa minimamente séria com a nossa nova amiga – como qual sua ocupação antes de estar desempregada –, mas não há espaço pra isso e ele apenas se irrita mais. O papo segue maluco como desde o início, e pontuado com músicas, como desde o início – apenas o amigo do Garcia que a acompanhava, irritado, deixou de fazer o dueto. “Quer saber? Foda-se, estou bêbada”, ela repete outras n vezes. É uma bêbada que oscila entre patadas e beijos. O amigo lindo fica na tentativa de algo com ela. O amigo do Garcia, depois de ganhar dela muitos beijos na bochecha, desiste e parte pra outra. Eu já antevejo ela ficando com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história. Um copo cheio de cerveja cai na minha calça – ao menos não pediram pra eu pagar a cerveja que eu usufruí com minha roupa. Reparo que do lado de fora do bar um careca não pára de me observar, finjo que não é comigo. Um outro maluco alto chega e fica amigo também na nova amiga, que se apresenta como sobrinha do Angeli. Ela exclama que finalmente achou alguém legal na noite – meus amigos ficam com cara de bunda, eu rio, até pareço ser o mais bêbado do grupo, justo eu, o único que lembra o nome de todos (mais: que lembra o nome de alguém). Para comemorar sua chegada, canta a mesma música que cantou logo que puxou papo conosco – e que havia cantado antes quando pediu o cigarro pra um rapaz na frente do inferninho do Garcia, a quem também havia abraçado e dado um beijo na bochecha. Ele se afasta, acho que vai ao banheiro, e nisso o amigo lindo volta a tentar algo – ainda mais depois d'ela ter dito ao cara legal que ele era lindo. O amigo do Garcia consegue um beijo da moça com quem conversava, mas depois me confessa: “putz, me confundi, não era d'ela que eu estava a fim”. Coisas de quem já está consideravelmente alto. Eu só observo e dou risada – já havia dado umas duas ou três vaciladas e resolvo que não preciso acabar com minha auto-estima toda na mesma noite. Também penso nesta crônica (que achava que ficaria bem mais interessante). Na rua, um homem noiado quebra a porta do estacionamento e chama todo mundo pra briga. A polícia aparece meia hora depois. Já de saída, terminando a conversa com a nossa nova amiga – se é que havia alguma conversa pra terminar, se é que havia alguma conversa – um homem um pouco bêbado vem fazer propaganda de um inferninho que há logo acima. O bar começa a fechar. O amigo lindo – que pouco antes tinha ido me perguntar o nome da nossa nova amiga – consegue uns beijos dela, o amigo do Garcia tenta descolar o quarto do Gyorgy – que não estava dormindo em casa – para o casal. Sem cerimônias, corto o barato: “esquece, nem é minha cama”. O cara legal já está em outra roda, tentando agitar gente para acompanhá-lo a outro bar.

Cinco da manhã. Repasso a noite: janta rápida, Delueze, Wander Wildner, PM, cerveja Duff, propaganda de inferninhos, conversas non sense: para um neófito na noite paulistana, até então acostumado com festinhas e barzinhos universitários bundas, é interessante. Concluo que meu plano original falhou totalmente – mas me diverti. A la Murakami – para compensar que não fiquei matutando no livro –, até penso que pode haver alguma ligação entre passar a encontrar outras pessoas mais de uma vez na Augusta e não ter mais encontrado Camila, a moreninha da balada, depois disso. Decido que é hora de voltar pra casa e dormir. Combino com meus amigos uma próxima trombada pela Augusta – sem golpe nos rins, de preferência.


São Paulo, 25 de julho de 2012.

domingo, 22 de julho de 2012

Como irritar pessoas (revisitado)– apresentação de dança

Reconheço, quando mais jovem eu era um velho rabugento e chato [j.mp/cG151001]. Agora, beirando os trinta, sigo um velho rabugento, mas menos, tanto velho (ao menos quesito "velho de espírito"), quanto rabugento (por conseqüênica, até). No quesito chato, sim, eu mudei: não que tenha deixado de sê-lo, apenas mudei minha chatice de situações. E não sei se por estas semanas estou um pouco mais irritadiço, ou se tenho tido sorte, mesmo.

Ao assistir à ultima apresentação do Balé da Cidade de São Paulo, no Theatro Municipal, me lembrei da esquete de John Cleese, do Monthy Pyton, "How to irritate people", quando ele fala do cinema. Não costumo ir muito a cinemas, mas apresentações de dança tenho me esbaldado como nunca este ano, desde que me mudei pra São Paulo. Tenho, logo, algum repertório de como irritar pessoas numa apresentação de dança – no caso, por ser uma das pessoas perturbadas e não perturbadoras. Eu bem poderia falar de jovens que querem aparecer mais do que quem está apresentando, mas sigo a esquete do Cleese, e prefiro falar de senhoras já de uma certa idade – coincidentemente três se sentaram ao meu lado no Municipal.


Não reparei bem na forma das senhoras, se se pareciam com saleiros ou o que, para seguir a esquete desde o início, pulemos para dentro da sala de espetáculo.

Conversas banais antes de começar a apresentação. Até aí, tudo bem. Muito normal, nada a reclamar – nem mesmo da conversa, que não tinha nada no esquema "bandido bom é bandido morto", "empalamento das aborteiras", "você viu na Veja?", ou coisas do gênero.

Soa o terceiro toque para o início da apresentação. É dado o aviso das saídas de incêndio, o pedido para que celulares sejam desligados. As luzes se apagam, as cortinas se abrem, o espetáculo começa. (Para poupar espaço, abreviemos as senhoras ao meu lado como V1, V2 e V3, na ordem de frase dita, e não para me referir a cada uma delas, que não fiquei reparando quem dizia o que).

Primeiro, elas reagem com alguma organização:
V1 – Começou!
V2 – Vai começar!
V3 – Sim, começou!

Então, não chegam a fazer um minuto de silêncio, e comentam algo sobre a dança:
V1 – Estão todos de terno!
V2 – É... todos de terno!
V3 – Sim, todos!
No caso, todos os bailarinos e bailarinas estavam vestidos de terno.

Logo a seguir, uma delas lembra que se esqueceu de desligar o celular:
V1 – Esqueci de desligar o celular!
V2 – Então desligue!
V3 – Sim, desligue!
V1 – Vou desligar.
A velhinha ao meu lado tira seu celular da bolsa, e antes de desligar, confere ver se não tem mensagem ou ligação nova, com ele virado para meu rosto. Quase um minuto depois, desliga a porcaria do aparelho.
V1 – Pronto!
V2 – Desligou?
V1 – Desliguei.
V2 – Ah, que bom!
V3 – Sim, que bom! Porque senão pode tocar...
V1 – Não mais.
V2 – Ah, que bom!

Pronto, posso começar a assistir à apresentação concentrado e tranqüilo, penso, ingenuamente. Elas seguem fazendo comentários, mal passa um minuto em silêncio:
V1 – Aquele cabeludo é muito bom!
V2 – Qual?
V1 – O cabeludo.
V2 – Ahhh...
O tal "cabeludo" devia ser uma das bailarinas, já que os bailarinos tinham todos cabelo curto.

Um instante um pouco maior de silêncio, deve chegar a três minutos, e novos comentários:
V1 – Como é escuro.
V2 – Muito escuro.
V3 – Sim, muito escuro.
Se referiam à iluminação da coreografia, que fazia uso um tanto acentuado do breu, até pra construir uma atmosfera pesada.

Talvez por não conseguir pensar em novo assunto e longe demais para reparar nos detalhes, a senhora exatamente ao meu lado – a mesma do celular – resolve limpar as mãos em um lenço de papel muito barulhento. Lentamente o tira da bolsa. Lentamente começa a limpar as mãos. Olho para ela uma vez. Segue limpando - lentamente, imaginando que assim não faz muito barulho nem incomoda os outros (quero crer na minha polianice). Olho outra vez, parece que percebeu meu olhar de pouco amigos, mas segue limpando (lentamente). Olho novamente, e desta feita resolve guardar o lenço – lenta e calmamente, com muito barulho.

Limpava as mãos, é claro, porque não iria levar comida à boca com elas sujas. Tira da bolsa balas e oferece às outras senhoras:
V1 – Quer bala?
V2 – Eu quero!
V3 – Bala?
V1 – Sim, bala.
V3 – Não, "obrigado" [sic].
V1 – Não mesmo?
V3 – Não, "obrigado" [sic].
Então as duas senhoras muito discretamente abrem as embalagens individuais de suas balas, no mínimo três minutos para desembrulhar aquelas embalagens barulhentas e discretamente guardarem o papel de bala na bolsa.

Passam um tempo em silêncio – creio eu que acompanhando a dança e procurando assunto:
V1 – Música cansativa.
V2 – Sim, cansativa.
O detalhe: a trilha sonora da coreografia era feita apenas por "barulhos" – vamos assim chamar –, não sei se as senhoras estavam a par de música eletroacústica para considerá-la música, mas a chamaram assim.

Mais um período em silêncio. A senhora ao meu lado não chega a roncar plenamente, mas ouço seu ressonar do sono de uma pessoa cansada – afinal, a música... 

Paz! Mas por alguns instantes.

Pouco antes do final, uma das senhoras se levanta, e falando sussurrante para não incomodar quem está atrás:
V1 – Vou embora.
V2 – Já?
V1 – Sim, já.
V2 – Não vai ver a outra coreografia.
V1 – Não, vou embora.
V2 – Então tchau.
V1 – Tchau.
V3 – Tchau.
V1 – Tchau. Bom espetáculo.
V2 – Obrigada.
V3 – "Obrigado" [sic].
V1 – Com licença, com licença.

Nem cinco minutos depois a coreografia se encerra.

São Paulo, 22 de julho de 2012.