sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Sala São Paulo – percepções e pensamentos aleatórios.

No coro, atrás da orquestra, um homem reflete a luz com seu enorme relógio quadrado. A taxa de administração do site de venda de ingressos é de vinte por cento – quero ver aplicação mais rentável. "Adágio para cordas", do Barber, me traz recordações: foi executada na primeiro e no último concerto da Sinfônica de Ribeirão que fui. Ok, nenhuma como a da OSESP, mas evito comparações. Minczuc e seus pulinhos. Reparo que o funcionário na porta do banheiro usa lápis de olho. Na sala de espetáculo, um moço com um alargador de orelhas mais ou menos do diâmetro de um copo americano. Escondido atrás do alargador, uma tatuagem "xxx". Não entendo como não se incomoda com os cochichos sibilinos logo ao seu ouvido. Por sinal, a terceira idade está perdida. Conversa, sacode os acessórios barulhentos, usa o celular durante a apresentação (não para conversar – pelo menos isso! –, mas é avisado antes que a luz do aparelho pode atrapalhar os outros), chupa bala. Não que chupar bala seja um problema, o problema é todo o caminho da bala desde a bolsa ou o bolso até boca, com seu estridente papel ou sua ecoante caixinha. Acho que dava uma boa pesquisa empírica: por que tantas pessoas têm essa necessidade súbita, repentina e impreterível de chupar bala assim que começa a apresentação? Por que não o fizeram trinta segundos antes, no intervalo entre as músicas, entre os movimentos: por que esperar a música começar pra lembrar da maldita bala? Será influência do cinema de entretenimento e suas pipocas fedorentas, a estúpida associação vendida como natural entre cinema e pipoca? Quando vai assistir a algo, por que comer? Por falar em comer, seis reais num salgado merreca de pequeno. Pelo mesmo valor compro um pote de arroz com carne e tranqueiras num fast-food oriental, com a certeza de que terei matado a fome, e não só provocado meu estômago, fingindo que iria satisfazer suas necessidades. Penso que da próxima vez posso levar uma lancheira – quem sabe a do Snoopy, que eu usava na pré-escola e no ginásio, e ainda tenho na casa do meus pais. Lembro de notícia compartilhada no Facebook: esse salgado custa mais do que um dia de salário africano – e os africanos desejam trabalhar e receber essa soma aviltante, segundo a milionária Gina Rinehart. No dos outros é refresco, como diz o ditado. E eu que poderia sobreviver trabalhando dois dias por semana. Parece que as elites não conhecem limites para seus preconceitos – mas ainda acho que a tupiniquim, por desconhecer os limites do próprio território, na ânsia de parecer cosmopolita, consegue ser um pouco pior. No intervalo, sem ter o que fazer (tenho um livro em mãos, mas estou no clima pra estudar), ligo pra dar um oi pro meu irmão, com quem não falo há uma semana – e que imagino estará ocupado no feriado. Nisso vejo uma conhecida, que sai do meu campo de visão ao passar atrás de uma senhora que me parece familiar... sim! Uma professora da Unicamp que me secou pornograficamente de alto a baixo três vezes quando fui apresentado a ela. Sem ter pra onde correr, sigo a conversa com meu irmão, de costas para a professora – mesmo sabendo que isso pode me custar outras secadas ardentes. A Sala São Paulo tem uma acústica realmente fantástica! Menos no coro, onde a música chega troncha e ainda corre-se o risco de levantar uma parede de metais que te impede de ouvir as coras (como em Ginastera) – e o pior: mais de quarenta reais o lugar lá (mais vinte por cento do site). Enfim, a Sala São Paulo, apesar da sua acústica, não é um lugar em que me sinto em casa. Nem digo que é por conta do público, que já freqüentei lugares com público bem mais tosco – digo, de refinamento mais sui generis. Acho um tanto infeliz a associação das colunas coríntias com aqueles balcões que lembram as cadeiras Favela e Célia, dos irmãos Campana – eu dispensava as colunas. Associação entre esse clássico da nossa velha burguesia do café e moderno que gosto é a do Theatro Pedro II, em Ribeirão: o teto feito pela Tomie Ohtake quando na sua reconstrução casa bem com o estilo, sem deixar de ser moderno. Música eletroacústica, John Cage e seu piano preparado, a orquestração sem surpresas de Rachmaninov, alaúde e música renascentista, Buxtehude: épocas e estilos bem variados em dez dias. Ainda não comprei o ingresso pra apresentação da São Paulo Companhia de Dança. A senhora ao meu lado reclama da incompetência da OSESP em não dar flores – uma rosa, ao menos, que fosse! – para a solista Hilary Hahn, que executou o “Corcerto nº 1 para violino em ré maior”, do Prokofiev. Não lembro se era do saber ou das rosas, mas falou que em alguma dessas casas não se cometeria tamanha gafe. O ônibus que devo tomar na sexta sai da Barra Funda ou do Tietê? Um vídeo com críticas internacionais favoráveis à OSESP e à maestrina Alsop é apresentado. Lembro das polêmicas com Neschling, do arranca rabo da semana entre Dilma e FHC, temo Russomano-Serra, e me pergunto por que há tantos lugares vagos, sendo que na hora de comprar meu ingresso a sala estava praticamente lotada. Na saída, volto para casa pelo mesmo trajeto que fui: via Estação Julio Prestes. Um amigo disse que era de boa ir pela Luz, mesmo às oito da noite. Recordo da recomendação de outro amigo, assim como do apuro que passei a vez que resolvi dar um passeio pela região depois de uma apresentação da OSESP [j.mp/cG26512] – e eram sete da noite. Decido que não quero emoções fortes desse naipe. Na praça, pessoas jogam bola. E me certifico que, apesar de mais de uma centena de concertos nas costas e quase cinco anos de piano, sou um analfabeto musical.


São Paulo, 07 de setembro de 2012.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Aquele que vê, aquele que domina.

Esteve em cartaz na Galeria Olido, e entra agora no Teatro Alfredo Mesquita (31 de agosto a 16 de setembro), "Experimentos cenográficos", do Balé da Cidade de São Paulo, com a direção artística de Lara Pinheiro. São quatro coreografias que, conforme o programa, visam “proporcionar uma perspectiva futura para jovens talentos e alimentar o mercado de dança com novos coreógrafos”. Fazem parte do programa “No' toque”, de Henrique Lima, “Papilon”, de Igor Vieira, “Aquele que vê”, de Liliane de Grammont e “Tempo”, de Fernanda Bueno. As quatro coreografias muito bonitas, as três primeiras tendo em comum uma tensão muito grande – ainda que por motivos diferentes.

“No' toques” parece ter uma tensão mais bruta: corpo em diálogo com os sons, sem apontar para uma harmonia – ainda que tensa –, como em “Papilon”, que chama a atenção pelo seu quê de onírico, e um duo mais que erótico, sensual.

Me detenho aqui em “Aquele que vê”.

A descrição – que começa com uma frase de Lacan, “o Outro é aquele que me vê” – comenta: “O que eu seleciono com o meu olhar, revela quem sou. Recorto a realidade e a reinvento. O outro, é uma abstração. Vejo e sou, sou visto e existo para o outro.”

Um das coisas que logo me chamou a atenção nesta obra não foi a questão da posição de quem vê, mas de quem é visto, aquele que é selecionado e recortado por esse olhar do Outro, e que só tem existência por causa dessa visão que faz emergir dadas figuras do que até então era fundo.

Há uma divisão bem delimitada entre o masculino e o feminino, e uma forte fragrância de machismo nessa divisão: os homens, vestidos de calça e camisa azuis, estão sentados nas margens do palco, enquanto as mulheres, em trajes pequenos, ocupam o centro ou circulam também pela margem. A diferença nos trajes deixa uma forte impressão de vulnerabilidade das mulheres. A diferença nas localizações reforça a posição de senhor do homem – se pensarmos numa dialética hegelo-marxista –, com as mulheres, apesar da sua vulnerabilidade, ocupando o centro do palco, da ação. Ademais, se o olhar do outro seleciona o que terá existência – e aqui o como o Outro se apresenta é importante para entrar no recorte –, aquele que pode ser olhado é cativo de um olhar que não o reconhece necessariamente, e por isso é obrigado a se sujeitar a estar nesse centro, vigiado de todos os lados, tendo que agradar, chamar a atenção, atrair.

O fato da coreógrafa ser mulher não deve ser desprezado. Entretanto, é curioso notar que a vulnerabilidade das mulheres em seus mini-trajes existiria igualmente se ao seu redor estivessem mulheres vestidas de calça e camisa azuis: antes de apontar para um culpado, um bode expiatório – os homens, o machismo –, a coreografia abre para a questão da relação entre seres genéricos, a relação entre papéis sociais – encarnados por homens e mulheres, mas que não são naturalmente de um ou de outro. Em suma, complexifica a questão de gênero a partir do que um dia foi seu símbolo mais imediato – o vestuário –, e o faz sem inverter essa simbologia.

Se as posições no palco, no início e em boa parte da apresentação, cheiram a dominação masculina, a dominação de quem, na verdade, está à margem, as várias coreografias têm um toque feminino, mesmo as com os homens – uma proposta de “feminilização” e não de “masculinização” como resolução dessa dominação? Nos duos (um no início, outro no final), uma tensão erótica muito grande – e sempre com a impressão de dominação masculina, então finalmente em ação de comando. No duo final, mais do que tensão, violência, com a bailarina, cercada inicialmente por dois homens, ainda mais exposta ao ter sua roupa arrancada. A violência logo se transmuta em tensão erótica, deixando no ar a dúvida se haveria sexo asséptico e politicamente correto – um contrato entre duas pessoas para usufruto das faculdades sexuais do outro, mais ou menos como disse Kant sobre o casamento, em fins do século XVIII – ou se as dissimetrias, desde que tidas seus devidos espaços e momentos, não são parte da sexualidade humana contemporânea.

A coreografia termina ao som de criança rindo, como a indicar uma grande inocência em tudo aquilo, no sentido de desfrute do presente e não em engessamentos do futuro em promessas românticas de felizes para sempre. Claro, antes disso houve uma série de momentos de dominação, de recorte do Outro, de violência, que não podem ser esquecidos – resta saber se cabem serem carregados como máculas que impedem o desabrochar pleno do presente.


São Paulo, 27 de agosto de 2012.