Em setembro, na quinta Mostra Nômade de Dança, realizada na sede da Companhia Corpos Nômades, assisti a C-E-C-Í-L-I-A, belo espetáculo de Célia Gouvêa, veterana da dança brasileira. Em C-E-C-Í-L-I-A,
Célia Gouvêa transporta o universo da escrita, o lirismo de Cecília
Meireles, para o palco, para a dança. Eu, agora, tento fazer o
caminho inverso, transportar a dança de Célia para a palavra.
“Fazer o caminho inverso” não significa retornar, voltar ao
ponto original. A linguagem, a arte, têm interstícios mil que fazem
com que seus significados se desdobrem para além de uma mera
positividade – representações prenhes de sentidos entre os
meandros do que não foi dito. Daí que a visão que apresento pode
ser diferente de outras, sem que isso implique em erro: não estamos
no domínio da veridicção, mas da obra de arte aberta ao diálogo
entre artista e público.
O desenrolar do grande rolo de papel em branco, com o que a
coreografia começa, sinaliza esse espaço tenso de abertura,
fechamento e permeabilidade: delimita-se um dentro e um à margem. Um
limite do palco para a dançarina e um limite da dança com a
escrita. Também, talvez, um limite à própria escrita. À margem o
poema declamado, a palavra em relação com as demais na construção
da tessitura do sentido. Dentro, a poesia dançada, a palavra em
diálogo com o corpo, o corpo em diálogo com o espaço, e a palavra
tendo extrapoladas eventuais sentidos imediatos.
A coreografia tem dois momentos bem distintos. O
primeiro, mais breve, se faz à luz de Mulher
ao espelho,
e dança a não-permanência cantada por Cecília Meireles.
“Já
fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.”
Se o poema tem um tom melancólico (“só não pude ser como quis”),
Célia o reinterpreta de modo leve – com pouco chão e pouco ar –,
nos remetendo a um estar no espaço sem a resistência inquebrantável
do solo: a água ou o ar: liberdade para se movimentar em toda e
qualquer direção, como um pássaro ou um peixe. Mais: liberdade de
sermos quem quisermos, escolher nosso próprio nome e traçar nosso
próprio destino. Nos convida, em suma, a um lugar para além do
nosso dia-a-dia.
O segundo momento
tem Confissão
a dar-lhe o tom inicial.
“Na quermesse
da miséria,
fiz tudo o que não devia:
se os outros se riam, ficava séria;
se ficavam sérios, me ria.”
A leveza inicial desaparece: no chão, de joelhos, ou em pé,
arqueada, é bem marcado o peso da existência – de si, como
pessoa, e de deus, como grande inquisidor. Por um lado, a necessidade
de Célia tocar-se seguidamente para se certificar da própria
existência – o que é feito com movimentos agressivos, ásperos –,
por outro, a exigência de reza e penitências compulsivas.
O palco com poucos elementos e a iluminação sem grandes efeitos
produzem, em conjunto com a postura e os movimentos, uma sensação
de aridez. Neste ponto, a transposição de Cecília por Célia
parece passar por Clarice Lispector, em um clima ao mesmo tempo tenso
e delicado, estrangeiro e familiar. Talvez sejam as contradições de
uma época em que vínculos são perdidos e não se sabe como ocupar
o espaço por eles deixado, em que as emoções surgem confusas e
abruptas, e não se sabe qual momento exige delicadeza, qual
agressividade, com os sentimentos se derramando em catarata.
E seja arqueada pelo peso de deus, seja arqueada pelo peso da própria
existência, tratam-se de dois momentos do mesmo estar em terra
estrangeira, independente de ser o solo pátrio: a retirante que
hesita o passo, como se houvesse ao retirante a possibilidade da
escolha fundamental entre o ficar e o partir.
“Aos mudos de
nascimento
fui perguntar minha sorte.
E dei minha vida, momento a momento,
por coisas da morte.”
O peso da
existência sobre uma terra hostil é também representado no
encadeamento de substantivos do Romanceiro
da Inconfidência,
atirados como pedras. Uma liberdade que ainda precisa de mártires,
uma fala que não possui todos os elementos da língua. Existência e
incompletude. “Alvarás. Decretos. Cartas.” A vida que se perde
entre burocracias exigidas para se viver.
A dança poderia ser apresentada como uma alternativa à linguagem
falada, a preencher aquilo que lhe falta, que não se completa no
papel em branco. Contudo Célia não se mostra interessada em ser
arauto de soluções simplistas, e o peso da coreografia antes
ilustra esse vazio, reforça que ele vai além da língua, vai além
de um fato pontual: é uma condição do estar contemporâneo.
A apresentação se encerra na ausência: em silêncio, enrolada no
papel em branco, braços em cruz.
São Paulo, 22 de setembro de 2012.