quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Liberdade de expressão e o direito a se expressar

Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo (4/10), o jornalista e professor Eugênio Bucci mais confunde do que esclarece quando pretende defender a tese de que “a censura judicial encontra uma estrada aberta, desimpedida, e cresce”, com apoio de parte da população.

Bucci começa seu artigo afirmando que há certa difusão da ideia de que “a defesa da liberdade de imprensa é coisa da direita, é uma agenda patronal”, com o que concordo: mesmo na academia, a divisão precária em esquerda e direita serve para julgamentos rápidos e definitivos e impede uma reflexão minimamente crítica acerca do problema – a começar pela própria definição de esquerda e direita. A seguir, o autor diz que esse bordão é a versão esquerdista da direitista “essa conversa de direitos humanos só serve para proteger bandidos”. Os dois falam de direitos fundamentais, certo, mas não há motivo para misturar uma coisa com a outra: censura é péssimo e não há argumentos razoáveis num Estado democrático para sua defesa, mas achar que é equivalente a pau-de-arara, execuções sumárias e coisas do gênero, é desrespeitar o sofrimento físico e psicológico de pessoas e familiares.

Com essa introdução, o articulista parece querer se pôr numa pretensa posição de isenção e neutralidade. O que se segue não corrobora essa impressão: ao se fiar em exemplos e mais exemplos para mostrar o avanço da censura, ele causa mais confusão ainda ao leitor, discute filigranas de pouca importância e foge do cerne do problema. Por qual motivo censura prévia e disputas judiciais pela retirada de conteúdo ofensivo devem ter igual tratamento, se são casos distintos? Que sejam condenáveis muitas das decisões para retirada de conteúdo já publicado, o próprio Judiciário oferece caminhos para seu questionamento – o que não isenta a sociedade de pressões políticas.
Frouxos e lenientes

A questão que sobra é: a partir de que momento e em que direção essas pressões devem (ou deveriam) ser feitas? Bucci foge dela.

Como consequência do desenvolvimento (?) de seu texto, Bucci chega a igual conclusão que a Folha de S.Paulo, em editorial de 28 de setembro: “A maior ameaça à liberdade de expressão no Brasil, hoje, parte do Judiciário”. Liberdade para a expressão de quem? Não de todos, com certeza. Ouso dizer que a maior ameaça à liberdade de expressão no Brasil, hoje, parte da própria imprensa – que se mostra pouco interessada em liberdade num sentido pleno, com deveres e direitos.

Sintomaticamente, no parágrafo seguinte, afirma que “O Brasil unificou-se para derrotar a inflação, assim como agora se articula para combater a pobreza”. Faltam sujeitos a essa união e essa articulação. Sobra generalização. Os que criticam o Bolsa Família como “Bolsa Vagabundagem” não parecem tão interessados assim no combate à pobreza, por mais que tentem edulcorar seu discurso com “ensinar a pescar, ao invés de dar o peixe”: alguém acredita nesse discurso, proferido desde tempos remotos de nossa história? Bucci também ignora que no mesmo dia a Folha lançou um editorial criticando as atitudes da presidente argentina, Cristina Kirchner, contra o Grupo Clarín. Nada mais natural: ao atacar a concentração da mídia (e, consequentemente, da informação), Kirchner abre um perigoso precedente: e se decidirem fazer o mesmo no Brasil, obrigando o quarto poder a seguir, ele também, a Constituição? Motivos para fazê-lo sobram. Temor, por parte dos grandes grupos de que seja feito, também. Mas os governos petistas têm sido frouxos e lenientes no cumprimento da lei: vale lembrar que a revista Veja publicou reportagem de capa difamando sem provas o chefe do poder executivo, representante do Estado nacional, de ter conta na Suíça. O que fizeram Lula e a Presidência? Uma resposta numa entrevista, na volta da sua viagem à Europa.
Um privilégio

A defesa da liberdade de expressão sem questionar se ela existe de fato no país serve apenas para reforçar o status quo. “Se queremos defender o direito à informação, precisamos defender a liberdade do Google”, diz Bucci. Corretíssimo! Contudo essa defesa está muito aquém de significar direito à informação e à liberdade de expressão. A pura e simples defesa do atual desenho da mídia serve apenas para que a imprensa possa seguir agindo como um poder paralelo, supraconstitucional, o “quarto poder”, como ela adora se apelidar – esquecendo que os outros três possuem limitações recíprocas e obrigações constitucionais a serem seguidas (não me alongo neste aspecto, que discuti no texto “O Quarto Poder para além do Estado Democrático de Direito no Brasil”, na edição 101 da revista eletrônica Casuística, páginas 93-99).

A liberdade de imprensa, nesta configuração de forças, acaba sendo, na verdade, liberalidade de imprensa, com claro pendor para os grupos com maior poder econômico; e deixa toda a população à mercê de interesses não declarados. Não se trata de defender a censura desses meios, mas a contingência de seu poder para os parâmetros exigidos pela Carta Magna do país (art. 220, § 5º) – os EUA, pais da liberdade de expressão, fazem isso.

O término do seu texto apenas acentua o caráter nada parcial e a argumentação carente de uma análise mínima de contexto desenvolvida até então: dizer que “a liberdade de imprensa não é um privilégio de jornalistas ou meios de comunicação: é um direito de todos nós” não corresponde à realidade tupiniquim: a liberdade de imprensa é, sim, privilégio de alguns poucos jornalistas e meios de comunicação – que o diga Maria Rita Kehl, com quem Bucci lançou o livro Videologias, quando demitida do Estado de S.Paulo por “delito de opinião” (ver aqui) –, quando deveria ser um direito de todos nós.

São Paulo, 04 de outubro de 2012.

Publicado originalmente no Observatório da Imprensa, edição 716.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Leituras diversas

O bom de ser um "anti-fluxista" é pegar trem e metrô vazios, geralmente com lugar para sentar. Desta feita não foi diferente. Voltava pra casa, pouco depois da uma da tarde. Peguei o trem na Estação Celso Daniel. Sentei ao lado de uma mulher que, mal sentara, já sacava da bolsa um livro. A imitei, e tirei da mochila o livro que começara a ler no dia anterior. Na minha frente se sentou uma bela mulher, com um estilo interessante: parecia beirar os trinta, esbelta, saia, meia-calça preta, cabelo laranja, alargador de orelha, piercings, braços cobertos de tatuagens. Não que eu ache que alguém com esse visual seja necessariamente rebelde, mas acredito (ingênuo...) que seja minimamente contestadora e não seja careta (no sentido existencial do termo).

Reparei no livro que a mulher ao lado lia: Ágape, do Padre Marcelo Rossi. Ri da distância de nossas leituras: me acompanhava na viagem História do olho, do Bataille (por sinal, depois de 120 dias de Sodoma, História do Olho soa agradavelmente pueril nas suas demi-escatologias). Antes de começar a leitura, o livro ostentado como a disputar com a pessoa ao meu lado (e o marca-páginas da Casuística aparecendo, claro), reparei uma vez mais na mulher na minha frente. "Fiz alguma moral com ela", pensei, ainda que não esperasse nada além disso: ter feito alguma moral com ela.
 
Segui minha leitura, com um olho no livro, outro na moça. Não demorou muito, a interessante mulher resolveu pegar também um livro. Calmamente tirou da bolsa um grosso livro preto. Interrompi minha leitura para ver o que ela estava lendo, já quase no final. Desacreditei ao ver que era um do Augusto Cury. Contestadora? Não-careta? Senti uma pontinha de decepção, por, muito provavelmente, não ter feito a "alguma moral" imaginada com a senhorita tatuada – o que não quer dizer, em absoluto, que trocaria meu livro pelo dela ou da mulher ao meu lado.
 
No metrô, apesar de não ser preferencial, ofereci meu lugar a uma senhora que entrou. Recusou: "estou bem em pé, e pra quem lê é melhor sentado". Insisti, recusou novamente. Agradeci. E por consideração à simpática senhora, escondi a capa do livro.

São Paulo 02 de outubro de 2012.