terça-feira, 6 de novembro de 2012

Andança pelo Brás numa tarde de novembro

Costumo fazer minhas andanças pelo centro de São Paulo – noturnas ou diurnas – pela região da República, Santa Ifigênia, Liberdade. Esta semana, em busca de preços mais camaradas em frutas secas, castanhas e afins, fui pro lado de lá do centro, as quebradas do Brás, que nunca tinha ido antes. Apesar de ter um local específico para chegar e ter visto no mapa antes, claro que me perdi.

Desço no metrô da Sé, passo pelo Páteo do Colégio e não acho a rua que devia. Quando consigo virar à direita, viro, e sei lá onde estou. Desconfio que as abóbodas que vejo ao longe devem ser o mercado municipal, assim como um prédio xis deve ser a tal zona cerealista que me recomendaram. Não peço informações, um tanto para poder flanar pela região, outro tanto porque não gosto de pedir informações. Vou (mais ou menos) em direção ao prédio xis.

Na passarela entre os terminais Dom Pedro II e Mercado cruzo com um rapaz, e me viro para olhar para trás quando passa: deve ser a pessoa mais alta que já vi na vida – a constituição parecida com a minha, o que acentuava a altura –, me senti pequeno com meu modesto um metro e noventa.

Caminho um tanto e chego finalmente ao tal prédio. Não é a zona cerealista, mas o Centro Cultural Catavento. Caminho um pouco mais e me rendo: peço informações a um vendedor de água mineral. “É só atravessar aqui, é aquela rua”, e aponta a direção da zona cerealista – que não tinha nada a ver com o que eu imaginava.

Faço as compras que desejava e vou até mercado municipal – esse eu tinha acertado. Bem haviam me dito que era um local turístico e não para fazer compras. E aqui preciso dar o braço a torcer: o mercado de Campinas pode ser mais feio mas é bem mais interessante: serve para fazer compras do dia-a-dia, essas ordinárias e necessárias. Salvo os queijos (me falaram também dos peixes), os preços de frutas e frutas secas rivalizam – ou mesmo ganham – do Pão de Açúcar. Trinta reais o quilo da jabuticaba (pago quinze), dez a caixa de pêssego (paguei cinco no vendedor que fica na esquina de casa, que já não é muito barato). Saio do mercado municipal, espero um SUV da Audi estacionar minhas impressões, e me dirijo para a Sé. A igreja e o pedaço do cento vistos daquele ângulo são muito bonitos – talvez só percam para a visão no viaduto sobre a avenida Prestes Maia, na Luz.

Descubro, veja só!, a rua vinte e cinco de março. Gentes, muitas gentes – e ainda não deve ser o fervo do natal. Camisas de marcas a partir de dez reais. Estátuas vivas brancas contrastam com o colorido da rua. Um artista de rua faz malabarismos com bola de futebol, bola de golfe, bola-de-gude. Está no meio da sua apresentação quando um policial pára. Dá para ver que o artista hesita, sobra certa tensão no ar. Ele está mostrando a bolita (aqui conhecida como bola-de-gude) com que vai fazer embaixadinhas. Mostra pro PM também, este abre um sorriso e todo o público ri, aliviando a tensão. Faz as embaixadinhas, domina no peito, na nuca. Pede aplausos antes do último número, em que vai levantar um ovo. O policial segue. Assim como a apresentação. Vejo a última acrobacia, dou umas moedas e sigo também. DVDs, programas, séries, jogos para PC, Play dois. Enfeites de natal à venda. Churrasquinho grego e suco por dois e cinqüenta. Flores de plástico me fazem voltar ao século passado, a um dos meus professores de biologia, que tinha substituído as naturais por artificiais no seu jardim. Na vitrine de uma loja de calçados um tênis tem como chamativo “Apareceu na RGTV” (o RGTV é por minha conta), como se isso fosse qualquer prova de qualidade. O PF parece tabelado em toda a cidade: nove reais o mais barato. Passo em frente a um treco – uma estátua? – coberto por um pano vermelho. Desconfio o que é, e minha desconfiança é logo confirmada pela conversa de dois ambulantes: tão dizendo que o Kassab vai vir inaugurar o papai noel, eu vou dar garrafada se ele aparecer, diz o vendedor de água mineral. Fico me questionando se o PT tivesse conseguido o apoio do Kassab para a eleição municipal, como seria o discurso? Vai uma camisa Hollister, amigo? Acredito que venceria o Serra de qualquer forma – outro nome do PSDB eu teria dúvidas se seria tão fácil. E certamente o apoio do Kassab a propaganda não traria uma vírgula a mais de política na propaganda do PT – nem a menos, porque isso era praticamente impossível. Sabonetes Haddad. Olha a água mineral, um real, água mineral gelada. Uma loja de produtos indianos faz com que me lembre de um amiga, professora de ioga, que ficara de vir para São Paulo em outubro e não tocou mais no assunto. Ao lado, uma sinfonia de músicas (“músicas”) de luzinhas de natal tornam insalubre a loja para os clientes – e prefiro nem pensar nos pobres vendedores. Depositar uma moeda e pegar um salgado exposto – não lembro dessas pros outros cantos da região central. Aleijados expõe suas chagas em troca de moedas e misericórdia. No início da vinte e cinco, duas praças cercadas garantem a grama verde e limpa – e eu me pergunto para que serve uma praça com grades. As grades servem para moradores de rua estenderem roupas e armarem precários barracos. Olha o pen-drive de trinta e dois giga. Me admiro que neste trecho da vinte e cinco e na general Carneiro os anúncios vêm como que ensaiados, combinados a hora de cada um entrar, pois as vozes não se sobrepõem.

Na praça da Sé, alguns homens compram ouro, dois repentistas juntam um pequeno grupo ao seu redor – e me lembro da genial obra da Lygia Pape, Espaço Imantado. Compro ouro. Em um quadrado delimitado, dois homens pregam para um pequeno grupo de excluídos do baile. Porque Jesus me deu um apartamento, aleluia, diz um deles, sem fazer menção em repartir o pão com os moradores de rua que o ouvem. Os humilhados do parque com os seus jornais. Compro cabelo. Outro pequeno grupo se junta atrás de um câmera filmadora – não trazia símbolo de emissora alguma, mas já imantava gente.

Ao esperar para atravessar a rua atrás da catedral da Sé, dois homens se reencontram. Rapaz, quanto tempo! Pois é, nunca mais te vi! Está morando no lugar de sempre? De sempre? Faz quase um ano e meio que estou aqui perto. Um ano e meio?! Quanto tempo faz que a gente não se encontra? Olha, desde que você comprou o carro não nos vimos mais. É capaz de levarem outro ano e meio, penso. Vencer distâncias sem cansar, superar encontros, andar a velocidade média de galinhas. Bons motivos para não comprar um carro.

Na banca, a capa de uma revista diz que o Brasil lidera o consumo de substâncias banidas. Não é Veja, então não estão falando de drogas (que fazem mal, afinal), mas de agrotóxicos, nosso benfazejo tempero de cada dia. No restaurante próximo de casa um prato de salada – vi no cardápio, dia desses – sai na faixa de quarenta e oito reais. Nem verduras orgânicas justificam um preço desses – e gente pagar esse preço, prefiro não me alongar em possíveis explicações agora.

Resolvo não voltar caminhando e pego o metrô na estação Liberdade. Quando terminar O império dos signos talvez me anime em ler Tokyogaqui. Ainda que movimentada, como é tranqüila a região, se comparada ao final de semana! No metrô, a teletela anuncia que é sem intermediário, sem atravessador. Empréstimo? Não, vaga na Uninove a preços reduzidos – daqui a pouco os preços alcançam a qualidade, será? Na minha frente, uma garota – dezoito anos, por aí – guarda o celular no sutiã. No trajeto entre duas estações, tira-o três vezes para ver qualquer coisa, e a cada vez que tira e guarda, um baita trabalho. Larissa Riquelme fazendo escola, ainda que a mocinha aqui fosse miudinha, proporcional – e só podia mesmo com o celular, enquanto a Riquelme, se quisesse, guardava até um notebook. Penso que se a guria tivesse guardado o celular no tênis seria mais fácil de pegá-lo – mas seriam menores as chances de tiozões ficarem reparando.

Tenho muita coisa pra estudar e sei que ao chegar em casa vou escrever esta crônica, ficar cansado, me convencer que a soneca que tirarei é de apenas dez minutos, e dormir a tarde toda. Faz calor. É novembro mas o clima segue consideravelmente seco. Bem que um amigo português tem me perguntado: e o clima tropical, onde está?


São Paulo, 06 de novembro de 2012.

domingo, 4 de novembro de 2012

A publicidade e a relação com o Outro (ou onde encontrar a felicidade?)

Comentei em crônica passada que dia desses me dei o desprazer de ir comer um lanche em fast-food, mais especificamente no Bob's. Como não pedi um refrigerante para ajudar a engolir o sanduíche, terminei a iguaria com a boca meio dolorida e a garganta bem irritada. Entretanto, o que mais me chocou foi o papel que forrava a bandeja. Mais do que tosco, machista, feio, contra-eficiente, como disseram uns amigos a quem mostrei o tal papel, achei ele sintomático.

"Boas desculpas não faltam para você não ter que compartilhar o seu milk shake do Bob's", é a chamada, seguida de nove dessas "boas desculpas". Uma bela mostra do fracasso da sociedade do fracasso – essa em que self-made men vendem livros de auto-ajuda mostrando (cientifica e empiricamente) à massa que basta agir racionalmente com vistas a um fim e não ser incompetente para ser um vencedor, como se fosse uma mera questão de querer e agir, independente de questões sociais e históricas, e como se fosse possível haver vencedor sem perdedores.

A propaganda do Bob's causa certa estranheza por ir na contramão da tônica das propagandas atuais, que pregam "divida seus melhores momentos", sendo esses melhores momentos o consumo de qualquer coisa – de lenço de papel a viagem à Jerusalém. Em tais propagandas o exclusivismo é em relação ao outro distante, não ao outro próximo: em família, entre amigos, com seu amor, os serviços VIP; aos demais, que não conheço (nem pretendo ou preciso), a entrada de serviço, o transporte público, a comida sem sabor, as férias sem fotografias maravilhosas.

No fundo, a referida propaganda apenas leva ao extremo o que a sociedade do espetáculo tanto apregoa: a felicidade prometida como conseqüência do consumo e não da troca com o Outro.

Se na publicidade em geral essa troca se faz por intermédio de mercadorias, do consumo, a do Bob's desmascara que o Outro nada mais é que acessório supérfluo da mercadoria da pseudo-felicidade – nela, o Outro não é sequer apresentado como polo oposto o qual se nega para se afirmar. É esse o ciclo da busca da felicidade que nos vendem e que compramos – a começar com a idéia da felicidade como algo pronto e dado e não construído –, que não cumprem seu prometido e nos deixam apenas um vazio que prometem preencher com alguma outra mercadoria, essa, sim, a que trará a felicidade desde sempre adiada para a próxima compra.

Aristóteles já definia o homem como animal social, o zoon politikon – entendamos político aqui como o interessado pelos assuntos da pólis, da vida em sociedade, e não restrito à política representativa de hoje em dia –, e se Sartre dizia que “o inferno são os outros”, esquecia de pôr, logo em seguida, a outra face da moeda: a felicidade também está no Outro. Não que a outra pessoa seja a portadora da nossa felicidade. Contudo, são nos relacionamentos, nas relações de alteridade, no perder-se de si para se encontrar no Outro que podemos alcançar um existência mais ampla – ampla o suficiente para que a felicidade caiba em nós.

Assim como os shopping-centers substituíram os banhos da antiguidade, lipoaspirações e produtos zero fazem as vezes do vomitorium das construções romanas. Estamos aptos para seguir com nossa busca da felicidade individual pelo consumo racional do que for: na estreiteza de nosso egoísmo, exasperado em 500mL de um milk-shake vagabundo, orgulhosos do sucesso em um trabalho que nos dilapida, vaidosos com o exclusivismo da bolha metálica ordinária que nos protege do calor no congestionamento e dos encontros na cidade, ostentando roupas que nos simplificam e nos confinam, podemos nos sentir saciados, nunca satisfeitos. E não compreendemos porque não conseguimos ser felizes em nossa solidão – nem mesmo na solidão a dois –, porque não percebemos que quem é consumido, no fim, somos nós próprios.


São Paulo, 04 de novembro de 2012.

ps: texto afim: Excesso zero (23 de dezembro de 2007).