quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Aqui e ali (atti kotti)

Desço na estação República. Logo na porta, jabuticabas substituídas por lichias nos carrinhos de mão dos ambulantes. Aranhas feitas artesanalmente e dvds piratas são vendidos logo à frente. Atti kotti. Cenas urbanas. Dança. Mate. Na avenida São João, próximo à galeria Olido, um grande número de pessoas reunidas – imantadas, para usar o termo feliz de Lygia Pape (só não mais feliz que sua obra). Passo próximo, tentando observar o que está pegando ali. Numa mesa improvisada, vendem algo ou jogam, não consigo distinguir; uma pessoa examina uma calça, outra chama um homem próximo para ver a revista pornô que tem em mãos. Pego meu ingresso para o espetáculo de dança e vou comer um xis com um mate. Ao sair da lanchonete, presencio uma grande confusão. Tudo muito rápido, pessoas correndo, pessoas caindo. Briga generalizada? Bem parecia briga entre torcidas. Seria alguma disputa entre facções? É o rapa?, um rapaz pergunta a outro próximo a mim. Não, a polícia mesmo. A polícia militar, cuja função primeira não é proteger ninguém, não é garantir a integridade das pessoas, não é proporcionar segurança, mas preservar a ordem – que ordem?, é de se questionar. E ela garante, a ferro e fogo, se for preciso. Garante. Provocando tumulto e arruaça, se for preciso. Batendo, espancando, matando, se for preciso. Garante. Que ordem? A polícia em vez de prender graúdo vem avacalhar com a nossa feira, que só tem coitado, fala, indignado, um homem. A apresentação a que assisto pouco entendo mas gosto muito. Tem momentos de uma leve tensão irônica, é algo divertida – me fazem lembrar da “moça da dança”, que deve ter traumatizado minha ex-terapeuta, com um ano de um assunto sem fim e sem desenvolvimento. A mulher atrás de mim na fila veste blusa de oncinha, tem as unhas num tom estranho de azul e o dedo mínimo meio torto. Começo a perceber algumas figurinhas carimbadas da Olido – estarei eu me transformando em uma também? E a oriental de tatuagem na testa? Nunca mais a vi. São dezessete pessoas na platéia, quatro no palco, duas na produção – dentre elas a diretora Alice K, uma oriental. O oriente parece que me persegue. E a recíproca parece ser verdadeira. Taomolo, Fei Shuang, we are accidents waiting waiting to happen (em que Gigante vale por três), as coisas aconteciam com alguma explicação, o lunático em Murakami e Subaru de segunda mão; a Luanda de Lobo Antunes, antes em guerra, agora canteiro de obras dos chineses. O que seria de nós, não é, se fôssemos, de facto, felizes? Já imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados, mirando ansiosamente em volta em busca de uma desgraça reconfortadora, como as crianças procuram os sorrisos da família numa festa de colégio? Um comprimido de antiácido pelo xis e pelo mate e pelo litro de chimarrão durante o dia. A feira se refez, reimantou pessoas. Lembro do homem no trem, na volta da faculdade. Falava em AK-47 e gesticulava muito. Se as frases se encerravam com palavras terminadas em e ou o, parecia balir. Mas nunca matei ninguém, importante é o amor. O homem recém sentado ao seu lado, interpelado, concorda: amor, saúde e trabalho é o importante. Isso mesmo-o-o-o-o. Porém logo o homem que balia se retifica: eu vou admitir pra você-ê-ê-ê-ê-ê, eu não gosto de trabalhar. Eu também não. Bukowski, que me acompanhou nas viagens da semana passada, tampouco parecia empolgado com a labuta. Dentre as diferenças, Bukowski era escritor. Quando me perguntam de onde sou, digo que sou do mundo-o-o-o-o. Resposta errada, creio: no Brasil, para a polícia, cidadão do mundo, só os com três idiomas e carimbos no passaporte. Zé Ninguém filho de Zé Ninguém tem que vir de algum lugar e ir pra algum lugar, ou então é bandido – e se estiver vindo da periferia, da terra dos Zé Ninguéns, é tão bandido quanto, só vai passar porque (se) não acharam motivo pra pará-lo por ali. Mudo de lugar, para poder ler o livro sobre dança que tenho em mãos. Você sabe porque Gabriela não fala mais comigo?, leio no celular da moça ao lado-o-o-o-o-o-o. Ouço o balir de tempo em tempo. De uns dias pra cá, os pedintes na rua sempre hesitam e me cumprimentam antes de pedir dinheiro – acho estranho. E nunca tenho – desde que um deles reclamou que lhe menos de um real. E ao bom dia de uma senhora respondo com um automático não – ela carregava um monte de revistas religiosas e achei que iria me oferecer uma. Na Augusta, vejo um homem parado de quatro sobre um papelão. Poderia ser uma performance. Não é. Passo por ele, fede. Mas poderia. Olho para trás, não parece estar ansiando, passando mal, bêbado, nada, apenas parado, de quatro, na Augusta. Me pergunto qual a diferença entre uma performance e aquela cena? A atitude consciente de perturbar o banal do quotidiano? A atitude consciente de nos fazer ter olhos também para o banal do quotidiano? A possibilidade de tudo acabar quando o performer decidir que é hora? Creio eu que só tenho olhos para aquela cena graças às muitas apresentações de artes e antiartes que vi – As dos Festivais de Apartamento, que me parecem sem sentido, dentre elas. Imantados, pessoas de quatro, a feira dos humilhados do parque com os seus jornais, parangolé (grafitti), atti kotti. Disse certa feita que toda escrita começa pelo olhar: me vejo um analfabeto em enxergar o mundo.

São Paulo, 29 de novembro de 2012.
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sábado, 24 de novembro de 2012

Fora ladrão que já está fora?

Num país em que considerável parte da população do Estado mais rico da federação, em arroubo de bairrismo antiquado e proto-fascista, se orgulha de ser a “locomotiva do Brasil”, a levar o país nos trilhos corretos da história rumo à verdadeira civilização – algo pouco além de uma maria-fumaça da inovação –; em que cargos burocráticos de alto escalão dão abrigo à vanguarda do nosso atraso, um mandarinato acadêmico que tem nojinho de povo e se ressente quando lhes revelam que as grandes novidades que o deslumbra foram questionados no século XIX – como o conceito de universidade, por exemplo –; não é de se espantar que a mentalidade política – tanto da chamada esquerda quanto da chamada direita – não seja lá o supra-sumo progressista.

Há muito critico a chamada esquerda tupiniquim de ter se perdido em algum ponto entre 1848 e 1917 (mesmo a não marxista), seja nas análises, nas quais que ainda espera (enxerga, às vezes) o crescimento do proletariado e ignora o aumento da classe média/pequena burguesia, seja no plano de ação, de apoiar a burguesia a fazer a revolução burguesa, para então preparar o terreno para a grande noite da mudança social.

A chamada direita, por seu turno, conseguiu passar os anos noventa sob um figurino mais modernex. Claro, havia as exceções, como Denis Lerrer Rosenfield, paranóico um tanto atrasado nas últimas notícias, que ainda teme Cuba, vê comunista nas esquinas e crê que, por conta do PT, logo terá que dividir seu carro com os pobres (porque o comunismo, sabe como é). Via de regra, contudo, a direita, graças ao papagaiar passivo de fórmulas da metrópole passava por up-to-date e, sem ter que se preocupar com o pensar, se dava ao luxo de criar frases jocosas com todo o tempo livre de que dispunha: chamou de jurássicos seus opositores, fracassomaníacos e neobobos os que insistiam em criticar as idéias que ela comprava nos USA, Petrossauro e Petrobrax à estatal de petróleo do país.

Quando a esquerda, via PT, assumiu o poder federal, além de roubar o grosso das políticas macro-econômicas da dita direita, ainda teve a audácia de diminuir a oferta de domésticas nas cidades, levar luz elétrica para desdentados dos sertões e pôr pobre em universidade da elite. Com isso a direita perdeu aquela sua aura tão bem envernizada: não podia atacar a esquerda por fazer o que ela fazia, nem tinha propostas para se contrapôr; na ânsia de conseguir fazer alguma crítica, evidenciou sua precariedade e seu atraso: não foi capaz de criticar a partir dos pressupostos que ela dizia se embasar, e tudo o que conseguiu foi manifestar preconceitos, que alguns até tentaram travestir de crítica séria: pobre em aeroporto, preto em universidade, nordestino em supermercado, favelado com casa e carro, e por aí vai (um bom show de stand-up comedy a la Marcelo Tas deve dar um panorama razoável desse pensamento, com os adendos nos costumes).

Ontem, ao sair de casa, noto que colaram um adesivo na lixeira em frente ao prédio – se não foi esta noite, foi esta semana. Nele o sinal de proibido sobre uma mão sem o dedo mínimo, em baixo a frase “Fora Ladrão”. Na hora penso, para além do seu mau-gosto preconceituoso evidente: a chamada direita é retrógrada não somente nas suas idéias, mas suas informações. Assim como alguém precisa informar o Rosenfield que a União Soviética acabou, que Mao morreu (McCarthy também), e que o “deixe a esquerda livre” nas escadas rolantes do metrô não são propaganda subliminar dos comunistas, precisam avisar os militantes da nossa direita que o governo Dilma já vai pra sua metade do seu governo como presidente da república – ou seja, o tal ladrão já está fora, e eles estão gastando dinheiro à toa.


São Paulo 24 de novembro de 2012.