sábado, 29 de dezembro de 2012

Planos de ano novo (versão softcore)

Apesar de dizer que não dou bola pra essas coisas, não resisto: vai chegando a virada do calendário e eu começo a esboçar sonhos, a fazer planos, estabelecer metas para o ano vindouro. Poderia ser influência dos métodos científicos de governança pessoal, porém creio que seja mesmo resquício de infância – ainda que quando pecorrucho eu me contentasse com planos do tipo “o ano que vem vai ser mais legal”, “fazer mais coisas que este ano”, no máximo, “jogar mais videogame” ou “bater tal jogo”. A vida era mais simples, também – eu ainda não tinha tido Kant.

O pior dos planos de ano novo é que estão sempre fadados ao fracasso, eu sei. O que não sei é por que insisto. 

Houve uma vez que decidi ser pragmático, ao menos aparentemente: estabeleci que minha meta de ano novo seria arrumar a casa e jogar fora tudo o que não me servisse mais. Havia até esse evidente efeito renovador. Linda idéia! A parte de arrumar a casa foi fácil. Difícil foi estabelecer o que não me servia mais – vai que pudesse me servir no futuro, como saber? Essa resolução de ano novo, tão singela, que deveria me trazer a satisfação de ter concretizado todas minhas metas, acabou sendo outra frustração. Para piorar, das poucas coisas que joguei fora, uma delas – um tubo de cartão no qual veio um calendário e que nunca tinha utilizado – me fez, deveras, falta no correr do ano.

Nos últimos tempos meus planos têm sido um pouco mais quantitativos. Chamo-os de metas Lula. Eles dão a impressão de que é só você querer que assim será. Falharam, e não porque eu não quis, eu sei, mas ao menos sabe-se por que falhou – por quanto falhou, na verdade. Teve ano que minha resolução foi engordar dez quilos. Musculação, suplemento, refeições reforçadas. Depois de três meses e tinha ganho míseros dois quilos. É um começo, e assim que deslanchar, chego aos dez quilos pretendidos, me consolava, enquanto a balança não se mexia. Uma gripe em maio me fez perder quatro. Passei o resto do ano penando para conseguir recuperar apenas um dos quilos perdidos.

Em dois mil e doze tinha estabelecido escrever todos os dias – pouco importa o que –, ler mais do que em dois mil e onze e comprar tantos livros quanto no ano anterior. A meta de escrever todos os dias, não sei bem, mas devo ter furado em dez dias, no máximo. Me consolei que uma falha ou outra acontecia. E mais outra e mais outra e mais outra, de forma que antes do fim de janeiro já tinha desistido desse plano mirabolante. Ler mais, eu até teria lido, não existisse a internet e o facebook – não culpo a Augusta ou qualquer oriental por isso. Também poderia ter apelado para o expediente de livros fininhos e com gravuras, porém achei que seria deslealdade. Já comprar tantos livros quanto no ano anterior eu consegui cumprir. Além de gastar dinheiro, pra que isso me serviu, eu não sei. Mas cumpri!

Para dois mil e treze, fiz várias cogitações. Ora pensava em ser o mais pragmático possível, ora pensava em arriscar metas impossíveis. Um dos meus planos foi parar de fumar. Chegaria dia primeiro para os meus pais (com quem passarei a virada), pouco depois da hora derradeira, e anunciaria: a partir de hoje não ponho um cigarro na boca! (Nem em outro lugar, caso algum leitor engraçadinho resolva fazer qualquer piadinha cretina). Pronto, era passar o novo ano como passei os últimos trinta, e teria cumprido meu plano. Confesso: teria cumprido a resolução, mas ela em si me soou um tanto frustrante – não sei, faltou um pouco de desafio.

Na linha dos que eu não conseguiria cumprir, pensei em me tornar um Don Juan. Para quem transou oito vezes na vida – aí já incluída a da semana passada –, seria um choque de gestão. Uma das coisas que mais me animou nesse plano é que poderia, quem sabe, surgir a inspiração para um novo romance: a história de um Don Juan ciumento que, em meio a sua seqüência de mulheres, encontra sua cara metade – uma “Dona Juana” ciumenta –, e passa a ter crises agudas de ciúmes, até porque nota que sua parceira é mais eficiente que ele na arte da conquista. Não surgisse esse romance e eu seguisse apenas com as crônicas, ainda assim teria sempre algo sobre o que escrever – mulheres –, e ao invés de passar um ano escrevendo sobre Ruth, a balconista da farmácia, todo mês, poderia escrever sobre uma mulher por semana. Seriam cinquenta e duas crônicas, quem sabe não daria um best-seller, Cinquenta e dois tons de mulheres? Desisti desse plano estapafúrdio: não, não daria um romance, nem crônicas, nem best-seller.

Insisti, contudo, nessa coisa da escrita, e pedi ajuda a um amigo, crupiê de jogos literários. Também me pus como meta, auxiliado pela PUC, que este ano termino, finalmente!, o mestrado – até porque serei jubilado se não o fizer. E decidi que aprenderia a tocar duas músicas novas por mês – independente da dificuldade. Com o peso, resolvi não mexer, deixarei que ele oscile por sua conta, enquanto eu oscilo na insustentável leveza do ser.

E meus planos de ano novo começavam mal, antes mesmo de começar o novo ano. Deixei para o último dia e não consegui montar minha série na Osesp – não achei essa opção no site, e acabei não fazendo a assinatura.

No fim, ao contemplar minha bela obra de engenharia pessoal, senti um certo aperto: cumprir todas minhas metas não me fará uma pessoa melhor (só em titulação), nem mais feliz. Não cumprir, em compensação... Mas, como sou uma pessoa metódica (dizem), não abro mão de ter meu futuro planejado. Aceito contribuições.


Pato Branco, 29 de dezembro de 2012.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Último dia do ano em SP

Guardas-chuvas se trombam na calçada da Galvão Bueno, que em dias de sol já se mostra insuficiente para o fluxo de pedestres – mas vagas para estacionar há. Daqui uma semana faz onze meses que me mudei para São Paulo. Graças à rua da Liberdade hoje não me embrulha o estômago quando ouço falar esse nome. A filosofia já me serviu pra algo, vejam só! Me surpreendo de ainda estar em lua-de-mel com a cidade. Não a trocaria nem pelas minhas Pasárgadas, Buenos Aires e Barcelona (quem sabe por Nova Iorque, talvez por conta de uma visão idílica de uma cidade que não conheço). Num futuro governo do moço de bem do Brasil, Luciano Huck, será que o famigerado narrador seria seu porta-voz? No metrô, duas crianças se embasbacam com as luzinhas que piscam do caminhãozinho de brinquedo, ainda em sua caixa – o natal chegou mais cedo. Na Paulista, os chatos (mais que chatos) de coletes cercam os transeuntes – minha cara de hoje fuzilo um tem me poupado dessa maçada. No restaurante japonês, enquanto tomo ban-chá, findo o almoço, chego a achar que as árvores de metal e vidro que acendem à noite ficaram bem – e que poderiam ficar o ano todo, espalhadas pela cidade toda, numa nova forma de iluminação pública das calçadas. Fora isso, sigo com minha opinião sobre decoração de natal. Que me chamem de amargo. Mirian Leitão pra ministra da economia, Coronel Telhada pro ministério da justiça, Silas Malafaia ou algum outro bispo do ramo pra igualdade social, Juliana Paes para ministra do turismo, Adriano (ou o brahmeiro Ronaldo) pro esportes, Zeca Pagodinho na cultura, Aécio Neve na coordenação política? Sim, essa São Paulo de marginais (Pinheiros e Tietê), de Minhocão, de motoboys que levam espelhinhos, de policiais que jogam gasolina em motoboys, de policiais que matam e são ovacionados pelo governador do Estado, de gays e moradores de rua que são espancados por serem gays ou moradores de rua, de universidade estadual para poucos e praças cercadas ao público, de favelas que sofrem de auto-combustão (fenômeno típico). O passeio pela Liberdade – para comprar uns quitutes pra minha mãe – me faz lembrar das minhas aventuras e desventuras com orientais – japonesas, coreanas, taiwanesas. Tenho me perguntado esses últimos dias o que foi meu 2012 – mais intenso do que os últimos cinco anos de Unicamp. No vão do Masp, integrantes de alguma orquestra jovem afinam seus instrumentos ao lado de hippies vendedores de artesanato bêbados turistas e transeuntes que se protegem da chuva. Em São Paulo, o segredo é estar aberto e na rua, comentei com amigo meu, recém mudado, quando flanávamos pela cidade, após um recital de órgão no mosteiro São Bento. Sim, a São Paulo da classe média cheirosa e limpinha (não de preconceitos e de ignorâncias) e que tem na Augusta, com seus bares baladas puteiros, skatistas putas bombados pedintes fanfarras francesas veganos bêbados (pobres e ricos) caídos travestis notebooks baratos oferecidos às duas da manhã policiais com escopetas policiais que perseguem mendigos para mostrar serviço playboys indies conhecidos patricinhas adolescentes, um dos focos de resistência da rua como local de convívio democrático (até quando?); que tem na praça Roosevelt outro ponto de disputa entre quem quer o espaço público para o público e quem quer a lei do silêncio (e não percebe que isso é, na verdade, o que leva à lei do medo), entre o poder econômico e o interesse público; que tem nas ocupações dos prédios do centro um grito de protesto contra a especulação que há tanto tempo estraga a cidade – e ela resiste, como resistem seus habitantes. No metrô, linha verde, ouço a conversa entre dois homens. Um deles comenta: a gente ganhava setecentos reais, aumentaram o aluguel pra quatrocentos e cinqüenta. Eu falei pra mulher: ou a gente entra, ou vai morar em baixo da ponte. Eu tava com um dinheiro sobrando. Essa São Paulo em que o Copan não é uma agressão (como seria em Barcelona), que tem também Pinacoteca, Olido, Boca do Lixo, Sala São Paulo, Municipal, Paulista, boas peças de teatro quase em Itaquera e lixo mass-media para a classe-média idiota, em teatros de stand-up comedy; em que pipocam shoppings centers culturais que oferecem produtos de boa qualidade e sem risco de questionamento da boa ordem – também conhecidos por Sesc. São Paulo que se transformou numa grande zona leste no dia da vitória do Corinthians. Acho que consigo entender: se afirmar como o oposto ao centro da cidade, ser da “ZL”, apesar de morar nos Jardins, não deixa de ser uma provocação, quase aviltante aos homens de bem, para quem pobreza é problema moral (faço mais ou menos o mesmo quando digo que torço pro time da favela). São Paulo que quase me matou com problemas respiratórios no inverno – poluição tempo seco e calor, que maravilha! Que tem o Centro Cultural São Paulo, quase uma continuação da rua, aberto a usos e desvios de seus corredores – talvez meu lugar preferido da cidade. Dia desses, na avenida Paulista, vi um homem engravatado de mãos dadas com uma mulher (muito bonita, por sinal) com um vestido de cauda longa verde-limão. A mulher brilhava, me perguntei se não seria alguma performance. Não deu a impressão. Dias antes, cegos que também foram lidos como mortos. E são performers ou simples malucos aqueles que dançam em cima de lixeiras, na Paulista? Na transferência para a linha azul, sigo ouvindo a conversa: Paguei quase tudo a vista. E pergunta se ela hoje quer sair da nossa casinha? Não quer. Está tudo pago, não tem documento, escritura, mas paguei tudo direitinho. No restaurante japonês, calendários de bolso fazem me lembrar da coleção que minha mãe tinha – eram da década de setenta. É meu último dia do ano em São Paulo. Chovia quando cheguei, como chove hoje. Vejo uma beleza melancólica nessa garoa (que não é tão fina). Como vejo beleza no que deve ter sido e no que pode ser, e principalmente no que São Paulo hoje é. São Paulo dos que se orgulham da sua honestidade e dos que se vangloriam da sua malandragem.

São Paulo, 22 de dezembro de 2012.