quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Spam, ofertas e fortunas

Estou mais do que habituado a receber spams na minha caixa de e-mails. Spam é o que há de mais abundante e elementar na internet, talvez só perca para a pornografia (por sinal, um site pornográfico evangélico poderia render uma boa grana). Por sorte os novos provedores de e-mail têm sistemas anti-spam muito bons (novos porque sou da época do zipmail, do mail.com, do yahoo.com (não havia o .br), e neles sobravam muitos spams na caixa de entrada), de forma que só dificilmente sou importunado por alguma propaganda (a senhora Beatriz Azevedo, do Acrobeat, não sei como, sempre finta o filtro). Não nego, contudo, uma curiosidade mórbida por aquilo que o Gugou deixa fora da minha vista. Vai que marcou como spam algo que não era? Até hoje nunca aconteceu, mas vai que.

Na pasta de spam estão lá três ou quatro e-mails com notícias diárias que tive preguiça de desassinar. Há sempre ofertas imperdíveis – de lojas que já comprei algo e das que nunca ouvi dizer. Há os anúncios para aumentar meu pênis, que nunca me interessaram, os para parar de roncar, os que vendem sapatos ou produtos de beleza, que tampouco me interessam, e têm aparecido vários prometendo resolver o problema da calvície – reconheço, já abri desses. E sempre há amigos que não conheço me deixando mensagens em redes sociais das quais não participo. Há ainda os e-mails me avisando de parentes que eu não sabia que tinha espalhado pelo mundo – África, Ásia, essas terras tidas por exóticas – que morreram e que não sei como sabiam da minha existência, mas me deixaram zilhões de dólares de herança. Amigo meu teve a mesma sorte: apesar de nikkei, descobriu que tem raízes tchecas, e um falecido tio rico que depositou uma boa quantia num banco chinês. Quis saber mais da morte do seu tio Ivo, mas parece que não obteve detalhes.

Hoje abro minha caixa de spam e tenho uma surpresa. Nada de produtos milagrosos, de férias e finais de semana inesquecíveis, de mensagens no facebook, de fotos da minha ex fazendo sexo na piscina, de milhões de dólares. Hoje eu ganhei trinta e cinco reais! Está lá, nada de três mil e quinhentos: três cinco vírgula zero zero, com a vírgula separando os centavos. Sem historinhas mirabolantes, sem mortes, sem sorteios, sem chaves da Readers Digest: bastava eu clicar num link e ganhar o dinheiro! 

Admito: fiquei com preguiça. Preferi seguir minha vida sem essa pequena fortuna caída do céu.

Pato Branco, 27 de fevereiro de 2013.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Discurso fora de tempo

Há incômodos e incômodos que uma obra-de-arte pode causar no seu receptor. Há aquele incômodo que aflige ao sair da sala de espetáculo ou exposição: que mundo é esse que estou vendo, que não é o mesmo que via ao entrar? Às vezes de modo sutil, às vezes em detalhes até então tidos por insignificantes, a obra-de-arte, o espetáculo, nos devolve ao mundo com alguma nova inquietação, com uma nova fissura diante dessa realidade que levamos ordinariamente, no modo automático, para não ter que lidar com os golpes que nos atingem a todo instante. E há aquele incômodo que, ao fim da apresentação, nos faz pensar que alguma coisa no espetáculo está fora da ordem, fora da nova ordem mundial: não altera significativamente nossa percepção do mundo, em que a sucessão dos dias em uma cidade segue com a mesma naturalidade com que Terra gira ao redor do sol. Foi com essa sensação que saí da Galeria Olido, após a apresentação de Angu de Pagu, da Companhia Sansacroma, companhia de dança radicado no extremo sul da capital paulistana. Não que a apresentação seja ruim – pelo contrário – mas no fim o foco acaba ficando na obra.

Ao tratar da vida de Patrícia Galvão, a ativista comunista de meados do século XX, era de se esperar que houvesse um forte componente político na obra. Assim foi. Ora fiquei tentado a achar que a companhia se restringia ao ambiente da época; ora que tentava um diálogo com o presente – a começar pela distribuição do “Manifesto da antropofagia periférica”, do poeta Sérgio Vaz. Se era esse o caso, o uso excessivo da palavra, ainda mais quando se tinha um trabalho corporal de grande expressividade, me causou certo incômodo: o discurso de 1930 trazido para dialogar com 2013 perde muito do seu sentido, por mais que os problemas verbalizados persistam. Ouvir “temos que ir para as ruas” em uma sala de teatro soa o equivalente ao “consuma com consciência” de alguns anúncios publicitários: pode aliviar a consciência de alguns, mas é risível na sua efetividade.

Com a queda do bloco soviético, o discurso hegemônico se impôs com tamanha força que ficou muito difícil opôr a ele um contra-discurso, ainda mais quando esse discurso de oposição foi forjado em outra época, num contexto muito diferente. Ele acaba soando ultrapassado, não importa que as condições de reprodução social sejam, na sua base, as mesmas.

O poder atual autoriza um sem número de falas e atitudes de oposição, à esquerda e à direita. O que ele não tolera é a recusa.

Diante desse poderio, mais efetivo que um contra-discurso parece ser a desconstrução do discurso hegemônico, levá-lo ao extremo, até sua própria contradição. É o que foi feito, por exemplo, pelos Nini, na Espanha: a recusa da lógica do trabalho, negado pela própria sociedade que o defende como único valor: estamos desempregados, iremos nos desocupar juntos em praça pública, ao invés de buscar empregos que não existem e nos culparmos por uma condição que não somos responsáveis. Os saques de Londres, em 2011, também podem ser vistos como a recusa do desejo sempre postergado em favor da realização do consumo aqui e agora: não nos mataremos de trabalhar sonhando um dia em conseguir Apples, Nikes, Nokias para sermos felizes: temos direito à felicidade, e se ela se encontra nesses produtos, seremos felizes já (quem sabe se tivesse havido um segundo momento, esse movimento conseguisse se consolidar como uma contestação política mais efetiva, mas a repressão foi forte). Nestes tristes trópicos, movimentos como o MST, MTST, Rádios livres e congêneres são a recusa do discurso defendido por nossas elites, de que habitamos um país moderno, avançado e integrado – o modo menos “pós-moderno” desses movimentos, reivindicando direitos básicos é prova da nossa modernidade de retaguarda.

Nestes novos tempos, de fim das ideologias – pela vitória da ideologia do pensamento único – não faz sentido, fora do contexto de fábrica, locais de trabalho, grupos reivindicatórios, pregar a união das pessoas: ela se sentem unidas de alguma forma, na sua torcida no Big Brother, nos seus compartilhamentos de “Fora Renan” no Facebook, na sua ojeriza a um ou a todos os partidos políticos: há uma série de opções de falsa união disponibilizadas pelo sistema – apresentando como perigoso todo aquele que não é de um núcleo muito próximo, ou os bodes expiatórios (com ou sem razões) de sempre, com a vantagem de tais opções não exigirem esforços –, o que obscurece a real solidão de cada um defronte a tv, o computador, o palco.

Se tivesse deixado ao público o silêncio que hoje o acomete em sua vidinha classe média (por mais que esperneie em redes sociais e xingue atendentes de mercado), se oferecesse a violência sofrida por Pagu como uma variação da violência que atinge (com poucas variações) moradores da periferia, talvez a Cia Sansacroma tivesse sido mais feliz na sua crítica.

São Paulo, 18 de fevereiro de 2013.