domingo, 30 de junho de 2013

Lupicínio, dança, Paulista e polícia – embalos de um início de sábado à noite.

Adentro o chuvoso domingo em SP assistindo ao muito expressivo e performático Arrigo Barnabé interpretando Lupicínio Rodrigues. Uma apresentação deliciosa para encerrar minha agradável noitada cultural, que começara naquele mesmo endereço algumas horas antes, com a Cisne Negro Companhia de Dança apresentando as coreografias “Revoada”, de Gigi Caciuleanu, e “Sra. Margareth”, do israelo-americano Barak Marshall. Nesta, a música cigana que algumas vezes é executada para embalar a dança dos doze serviçais da Sra. Margareth faz uma crítica sutil mas muito precisa da, vamos chamar, hierarquia dos povos na divisão internacional de trabalho. Entre as duas apresentações, com uma hora livre, ignoro a chuva e resolvo ir até a Paulista, dar uma olhada no movimento do sábado à noite. Ainda antes de chegar na avenida Brigadeiro Luís Antônio, dois catadores de latinhas: não sei se disputam os sacos de lixo ou se trabalham colaborativamente. Na Brigadeiro, uma agência bancária com uma porta de madeira provisoriamente no lugar da de vidro. Paredes gritam que R$ 3,20 é um roubo. Eu digo que R$ 3,00 também é – mas o momento não autoriza novas manifestações no curto prazo pelo Movimento Passe Livre, infelizmente. Dois mendigos dormem protegidos da chuva sob uma marquise. Passa outro por eles, e com a mão simula vários tiros nos que dormem. Pouco antes, outro morador de rua ajeitava a cueca. Na Paulista, o movimento é razoável – ainda não são onze da noite. Passo por um grupo de seis adolescentes, discretamente animados com a noite que começa. Em frente ao prédio da Gazeta, pessoas se amontoam no pedaço de marquise disponível (as escadas estão barradas por grades). Vou até o prédio da Fiesp, onde o ex-socialista resolveu pôr uma iluminação nacionalista, e resolvo voltar. No caminho, o grupo de adolescente está contra a parede, debaixo da chuva. Os que usavam bonés, os têm na mão. Reparo nos garotos. Dezoito anos, se tanto. Parecem bastante ingênuos. São ou morenos ou negros, e trazem no estilo a marca escancarada de serem da periferia. Dois policiais – um deles negro – se preparam para uma geral. Lembro de um amigo que conta que dificilmente quando vai pra noitada passa sem uma revista da polícia militar – ele não tem estilo de periferia, mas é negro –, a ponto de quase nem se incomodar mais – Pavlov talvez explique. Lembro também dos manifestantes na Paulista, dia 20 de junho, tirando foto com essa mesma polícia militar, naquele clima de comunhão nacional, quando, dizem, o gigante acordou. Certamente não eram esses garotos ou seus amigos e vizinhos quem tiravam tais fotos. Sigo meu trajeto rumo ao teatro Sérgio Cardoso. Ficam para trás os seis garotos da periferia, os dois policiais, e o prédio da Fiesp iluminado com a bandeira do Brasil, ostentando que, condizente com nossa história nacional de exclusão, a Paulista não é para todos.


São Paulo, 30 de junho de 2013.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A rua – local político

São sete e meia da noite de uma terça-feira qualquer. Não chove mais, faz frio. Na Paulista, em direção ao seu início, umas vinte pessoas ocupam uma pista da avenida com um protesto pelo “Padrão Fifa na educação”. Entendo o motivo da manifestação: educação, não resta dúvida, é importante – e não apenas porque agora viveríamos numa pretensa sociedade do conhecimento, como apregoam na mídia. Entendo também o slogan do “padrão Fifa”. Desconfio, contudo, que a profundidade dos manifestantes sobre o assunto seja a mesma do slogan: o que seria o tal padrão Fifa? Aulas iguais para todos os alunos de todo o território nacional, seguindo os parâmetros curriculares da Suíça? Uma educação pasteurizada, sem qualquer identidade, destruidora de identidades, mas com alguns recursos a mais? Os alunos ficarem mais tempo na escola, como não fazem na Finlândia? É preciso uma discussão ampla sobre o papel e os objetivos da educação, para então discutir os métodos. Claro, começar com um aumento nos investimentos, principalmente no salário dos professores, é um imprescindível começo. Porém, mais sensato seria defender o “padrão Felipão” de salário para professores da rede pública de ensino básico. Contudo, como cartaz divulgado: “os protestos não são contra a seleção, são contra a corrupção”. E seleção brasileira, CBD, toda nossa cartolagem, com Marins, Teixeiras, Petraglias, Sánchez, são exemplos notórios de pessoas ilibadas.

Na mesma hora, na mesma avenida, mas na direção contrária, um grupo um pouco maior – uma sessenta pessoas? – atravanca a avenida e o obriga o trânsito a ser desviado. De início o protesto é contra o pastor Feliciano. Talvez por não estar angariando o apoio esperado, resolvem mudar o grito para “Vem para a rua, vem, contra o governo”. A nova jabuticaba tupiniquim, os “sem-partido com partido”, que prega a união nacional sem fissuras e sem divergências. Recém havia trocado mensagens com uma amiga, sobre a manifestação de sexta contra o político do PSC, e meu receio (na verdade, escaldo) em participar dela era ir para uma manifestação e acabar engrossando outra, diferente, quando não de bandeiras opostas às que defendo ou simpatizo.

No vão do MASP, outra manifestação: não caminha, tem mais vulto, tem discurso. Se bem entendo, é dos movimentos sociais – não sei se diretamente ligados, mas o discurso pegava carona nos protestos feitos pela manhã, em três locais da periferia de São Paulo. A moça que tem a palavra fala do descaso da mídia para com as manifestações organizadas das pessoas marginalizadas – mesmo depois do abraço da Grande Imprensa ao protestos da semana passada. Tenho a impressão de que conheço a moça, do DCE-Unicamp-Psol e eleições campineiras. Mesmo que não seja, me bate uma tristeza ver que estou quase defendendo uma turma abertamente corrupta (frauda eleições estudantis para manter um naco ridículo de poder, por exemplo [http://j.mp/137E1uP]), por sentir necessidade de me opor ao movimento fascistóide que tomou a Paulista, dia 20.

Por falar em corrupção, se a direita soube se aproveitar da movimentação levantada pela esquerda, essa não soube pôr suas bandeiras nas vagas indignações daquela: sejamos todos contra a corrupção: além de prisão para os corruptos, por que não expropriação das empresas corruptoras em favor dos seus empregados? Um ano e o Brasil se tornava uma república proletária como nunca visto antes no mundo.

“Essa meia dúzia de gato pingado dava pra ter feito o protesto na Santos, não precisava ser na Paulista”, ouço dois transeuntes conversando. Um mês atrás aposto que essa frase seria sensivelmente diferente. Até agora, me parece que o principal legado dos atos agitados pelo Movimento Passe Livre em São Paulo tenha sido o de quebrar com a noção de ordem que prevalecia na opinião geral, muito próxima da ordem ditatorial: trancar rua e atrapalhar trânsito com protesto era coisa de baderneiros, caso de polícia e porrada; agora, apesar de incomodar, é aceito como legítimo, não merece mais esse tipo de desqualificação e tratamento. A rua – em São Paulo, a avenida Paulista – passou a ser aceita como um espaço de disputa política. Mais: a política passou a ser aceita – talvez mostrando esgotamento não do Lulismo, antes da tecnocracia posta pelo tucanato, seguida pelo petismo, defendida pela Grande Mídia. Se manifestar no mundo real, fora do Fakebook, passou a ser aceito como parte do jogo político – seja para se opor ou para defender a ordem, ainda que os gritos sejam sempre de “contra”. Claro, há quem se oponha ao diferente, mas eles são minoria (ainda que muito bem organizados).

Ponto positivo nas ocupações deste dia vinte e cinco: contrariamente ao ato do dia 20, as diversas manifestações que presenciei se organizaram por conta (não pegaram carona em uma maior), gritavam suas reivindicações e não tentavam calar as demais. Havia, portanto, espírito democrático nelas. Ao mesmo tempo, me ponho a questão: quanto tempo vão durar essas manifestações etéreas, organizadas e com a participação de pessoas que não tinham o hábito da rua como local político – e, creio eu, nem da política em local algum, fora da cabine de votação, no máximo dos comentários em blogues? E, principalmente, me pergunto quanto tempo vai durar essa percepção de manifestações de rua como legítimas em uma democracia. Se perdurar tal visão, será um passo importante para, quem sabe um dia, deixemos de ser uma mera democracia pro-forma, tal qual hoje.

São Paulo, 26 de junho de 2013.