quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Patrícia M. (memórias feitas de saudades)

"Sempre acreditei que a vida fosse absurdo, limite. Foi essa idéia que não suportei mais". Me mandou esse sms no dia 19 de julho, quase sete da noite, e avisava: "Uma das toalhas terminou". Na verdade, ela terminara de bordar uma das toalhas que se propusera – mas nela sujeito e objeto, sujeito e predicado se confundiam em Vida. Nas últimas quarenta e oito horas fiz tanta coisa que não queria ter feito, mas não havia alternativa - tem horas que não nos cabe qualquer poder de escolha. Não queria ter tomado o primeiro trem para fazer o seu caminho inverso. Não queria ter que perguntar "verdade" duas vezes para começar a acreditar. Não queria abraços de amigos para me apoiar – assim como eu a eles –, a perna a tremer, as costas a doer, a respiração a faltar. Não queria ter ajudado ninguém nem pedido ajuda – no máximo queria sua opinião se o azul escuro ia ficar bom na parede da sala. Não queria a carona, a terra e as flores. Queria que fosse um sonho ultra-realista e absurdo, como a vida – irreal e sem sentido. Queria você empoleirada no sofá para fumar na janela a dizer, diante da história anedótica do meu enésimo fracasso com mulheres, "Pô, Dalmoro!, assim não!, assim não! Eu e Djalma vamos ter que te ensinar uns negócios”. Queria sms sobre usuários do metrô, às seis da manhã; paqueras ao meio-dia; toalhas bordadas às seis da tarde; piadas de seriados que nunca ouvi falar à meia-noite. Queria acordar com mensagens absurdas no meu celular, no meio da madrugada, me chamando de Fanoruti e avisando que logo chegaria na minha casa, que tinha a chave e não queria me acordar. Queria acordar às quatro da manhã como todos os dias, para ir ao banheiro, para comer uma castanha ou massa de pão que a máquina já começara a bater, porque a coberta caiu; não por causa de uma ligação do seu celular do qual falava uma voz diferente. Queria mandar um sms da conversa sem noção que ouvi no trem. Queria te contar de alguma paixonite e receber de volta notícias de Marcelo ou Ezgi. Queria você me anunciando uma moça pela qual eu iria me interessar e eu fazendo o mesmo. Mas a vida é absurdo. O tempo enlouquecera a partir da madrugada do dia vinte e oito: ele estancou às três e cinqüenta e oito, ao mesmo tempo em que as horas passavam rápidas enquanto eu estava na sua casa, esperando pela sua volta que eu sabia que não ocorreria. Passavam rápidas enquanto aguardava notícias suas e da burocracia. Passavam rápidas quando estive na sua presença. Sua aparência tão serena, você que andava seguidamente com a testa franzida – está em um texto seu do seu blog secreto –, até quando dormia – que eu também reparava. Nós e nossos blogs secretos e nossos emails e nossos sms e nossas mensagens no Facebook. A dor no peito, os exames que não apontavam nada. The panic, the vomit. Vinte e três de julho, a primeira vez, você reclamou que perdeu o dia. E teve um sonho apocalíptico depois. E se não acontecesse, os exames da manhã te salvariam? Como um cacto, que absorve as energias negativas e tenta neutralizá-la. Como uma irmã – mais que isso. Mas não tinha espinhos, não conseguia se proteger. Como minha primeira peça. Como meu último conto. O futuro do pretérito que não consola nem conforta. E se? Uma tatuagem do Pica-Pau incompleto no antebraço, como a nos apresentar nossa incompletude e a angústia desse estado – era um desenho animado, mas trazia o esculacho dos seus questionamentos radicais e sutis sobre a existência. Hoje eu sou essa tatuagem. A vida é absurdo, limite. A iminência da morte – e a morte materializada na ausência. A dor. Vinte dias antes você dizia: “Essas pessoas nunca saberão que me dão uma grande esperança, que me fazem suportar tantas coisas que não entendo, tanto concreto e alumínio. Essas pessoas me prendem naquele lugar e, tendo de repensar muitas de minhas relações mais antigas e profundas, não sei avaliar em que medida são a prova de que não sei caminhar sozinha. Eu preciso sempre de algo que esteja comigo, como se as pessoas, os lugares, as ruas fossem uma espécie de escapulário que carrego no pescoço. Não sei estar só. E é um desejo muito antigo”. Você sabia que me enxia de esperanças na Vida e me prendia como ninguém neste lugar. Com você eu também desaprendi a estar só.

São Paulo, 29 de agosto de 2013.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A presença-ausente do Outro em “Desarticulações”

“Tentar entender este estar/não estar de uma pessoa que se desarticula diante de meus olhos”. Para onde fugir quando o outro que nos ancora se desfaz em um presente perpétuo, um presente que não é feito de presença, porque não possui em si a duração?

“Desarticulações”, peça inspirada na obra da argentina radicada nos EUA Sylvia Molloy, é o relato fragmentado e angustiado de uma mulher que visita uma pessoa íntima sua – Maria Luisa –, que está perdendo a memória – tanto a recente quanto a antiga. A peça levanta a questão da necessidade do Outro enquanto condição de formação de lembranças, de afetos e da própria identidade.

A protagonista nos conta sobre Maria Luisa, que ora se lembra apenas de coisas muito antigas – como se fossem ainda presentes –, ora apenas de coisas recentes, ora não se lembra sequer de ler. Há momentos que esquece até as palavras, e não só não consegue articular frases, como sua fala se reduz a sons. Diante dessa perda de conexão entre o ontem e o hoje e entre cada instante, desse desfazer-se, dessa desarticulação entre uma pessoa e um corpo, a protagonista se vê também desarticulada, ao não conseguir compartilhar as experiências vividas com Maria Luisa, se ver obrigada a contar suas memórias como se fossem novidades a alguém que há um certo tempo tinha o poder de balizá-las, confirmá-las, complementá-las. Sem esse retorno do Outro sobre o que a protagonista conta sobre si, sobre ambas, ela se vê numa situação quase tão precária quanto aquela que se desfaz. Tanto que assim como Maria Luisa aparece como sombra (projetada durante a peça), a protagonista, sem se tornar ainda sombra, se torna espectro, nas projeções em branco e preto no chão.

Num espaço branco, com luzes brancas, a protagonista veste o peso do luto: o Outro, cuja presença serve para fazer sombra e nos fazer recordar, antes de mais nada, da precariedade de nosso estar no mundo e da necessidade da contraposição do Outro como sujeito – para não nos tornarmos espectros do que um dia fomos.

São Paulo, 22 de agosto de 2013.


PS: Outro ponto que a peça me provocou: curiosamente, apesar das dos problemas de memória, Maria Luisa não se esquece de regras de etiqueta, de estratagemas de convívio social, as formas de agradar e se mostrar interessada e solícita, incorporadas como uma segunda natureza. Se apresentar bem, ser agradável, não se lembrar de nada – talvez o anúncio do que querem para nós?