sábado, 28 de setembro de 2013

De sonhos e coincidências (memórias feitas de saudades)

No dia em que se completava um mês da sua perda, estava tristonho e resolvi ir caminhando para a aula. Passava pelo Brás e vi um ambulante vendendo uma camiseta do Pica-Pau com o nome da sua irmã – você iria dar risada s'eu ta presenteasse (como me chamaria de acadêmico agora, por usar “ta”). À noite havia sonhado de novo com sua ausência. Diferentemente da outra vez que tive sonho assim, neste não havia pessoas ou locais familiares, não havia alguma alusão cinematográfica. Havia um quotidiano qualquer pelo qual eu circulava tentando segurar o choro (nem sempre conseguindo), por não ter mais a sua alegria, não ter mais você para compartilhar as pequenas banalidades, coisas que passariam batidas, muito provavelmente, não fosse você ter me ajudado a me aprimorar o olhar para esses tipos de miudezas. Foi um sonho também diferente do último que tive contigo, há dez dias, no qual você estava presente: subíamos a Augusta pelo seu lado preferido (o direito), nos aproximávamos da esquina com a Antônio Carlos – a qual seguidamente parávamos para bebericar uma cerveja (e você fumar) e olharmos o movimento –, eu te abraçava e dizia: “Puxa, Misson, como sinto sua falta”. Você não respondeu nada, porque antes meu celular tocou, com a mensagem de uma amiga, que perguntava de algo relacionado a você. Apenas outra de uma série de coincidências que nesse último mês abalaram minhas (des)crenças. Contra meu ceticismo, queria crer que há um além, que poderíamos ainda ter algum contato, e que essas coincidências fossem um sinal da sua presença. Mais certo, porém, que seja apenas minha dor tentando aliviar o vazio no meu dia-a-dia deixado pela sua partida. É tarefa diária reafirmar a mim mesmo a aceitação e o conformismo com sua perda (há algo mais para fazer?), ainda assim, no fim do dia, me custa a acreditar: você se foi mesmo? Se eu te mandar um sms contando da moça de gorro no Folias, você não vai responder? Ao abrir meus emails não terá um seu lá, com grandes questões existências em meios a pequenos eventos quotidianos na sua escrita gostosa de ler? No fim deste dia, no mercado, enquanto ensaiava esta crônica e me dava conta de que era capaz de lembrar em detalhes o dia vinte e oito de agosto, começa a tocar Ira!, “Vida Passageira” – outra coincidência. Queria contá-la para você, para que tirasse sarro da minha breguice.
Pouco antes, quando eu subia a Augusta, ao passar pela esquina do sonho, fiz como tenho feito sempre que passo por ali: cruzo os braços contra o corpo num abraço imaginário e digo em silêncio: “puxa, Misson, como você faz falta”.

São Paulo, 28 de setembro de 2013.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Te conto o sonho de sua ausência (memórias feitas de saudades)

Hoje sonhei com você. Minto. Sonhei com sua ausência. Eu sentia sua falta também no sonho. E chorava, chorava muito. Chorava todas as lágrimas seguradas nestes últimos dez dias, porque me resta a vida por levar – ainda embotada nas suas alegrias, manca da sua poesia, carente da sua interlocução. No sonho eu me encontraria em breve com uma guria que estava a fim (oriental, por mero acaso), mas não conseguia lembrar o nome dela – não me vinha nome algum. Pensava em te pedir ajuda, mandar um sms perguntando o que fazer, para que você me avisasse para o óbvio, para o simples, para o terreno. Sorria. Não tenha medo do ridículo. O não você já tem. Eram algumas das singelezas que você me dizia quando pedia seu auxílio nesses assuntos – mas você mesma admitia que essas coisas não eram assim tão fáceis, tanto que sempre recorria a mim para te dizer basicamente o mesmo, só que do meu jeito mais barroco. Ou repetir exatamente as suas palavras, para você me responder: meu deus, o que eu fiz?, criei um monstro! No meu sonho você estava ausente. Aquela ausência presente, sentida, indefectível. A mesma ausência que vivo quando acordado. O sonho tinha cortes espaciais sem explicações (lembra quando te contei do sonho em que eu, depois de te chamar para irmos a um castelo, te deixava sozinha pra ficar com Camila, e você aproveitou então para me falar do código de honra do grupo de amigos que fiz graças ao seu jeito agregador: se tiver mulher na parada, toda ausência é justificada?). Eu estava em um shopping. Um não-lugar (livro que você havia pego emprestado, depois que te mandara o trecho sobre o sentir-se em casa, e que você interromperia a leitura a meio caminho – para ir pra onde?), um lugar qualquer que não freqüentávamos, porque nosso lugar, fora de nossas casas, era a rua: era a Paulista, a Augusta, a República, a Sé, a Zona Leste. Eu estava nesse shopping e queria voltar para casa, precisava pegar um ônibus, mas não sabia como fazê-lo. Era noite e foi a gota d'água para que eu chorasse sua falta (a única vez que pegamos ônibus juntos, para ir a Cotia, era noite e conheci sua amiga Híndira). Em outro momento do sonho eu estava na despedida de Lagares. Na verdade devia ser Joaquim – eu sempre tive dificuldade com os nomes do seu quotidiano. Ele saía em definitivo do metrô, ia aproveitar sua aposentadoria. Nos encontramos na saída do vestiário, ele (que tinha a cara de Ian) me cumprimentava alegre, Prazer! Eu chorava porque sabia que era a última vez que o veria, que teria notícias dele – como da engenheira do metrô, da professora de inglês, de Eliza, de Carlos, de Ezgi, de Marcelo, de Nilson da granola, da Elefoa Gay, do moço que comprava bilhetes todos os dias e ficava te encarando, dos moradores de calçada, dos jovens cidadãos, das cédulas em que você escrevia Cuidado com o vão entre o trem e a palavra, entregava no troco e lamentava que não prestassem atenção, e tantos outros personagens e situações que eram quase meu quotidiano também. Lagares se encaminhava para sua partida. Era como uma sala da SP Escola de Teatro – você iria fazer cenografia e figurino lá ano que vem, lembra?, seríamos parceiros de experimento, você voltaria a mexer com teatro e arte, coisas que te faziam falta –, era também como o cenário do Show de Truman. Lagares subia por uma escada rumo a um céu com o sol contra, e acenava para todos que estavam abaixo, que estavam contentes e emocionados e acenavam de volta. Do outro lado da sala, sentado em outra escada, num escuro de platéia, eu chorava. A luz foi tomando conta dele, como no Pequeno Príncipe. Ele estava feliz, radiante – como aquele fim de tarde, que eu não sabia se era real ou era cenário.
Acordei como tantas vezes você me acordara, com o barulho de mensagem no celular. Era quase onze da manhã (e não seis, sete, como quando você me escrevia). A mensagem não falava de alguma discussão com usuário que tentara furar a fila dos preferenciais, de uma crise existencial, de alguma quotidianidade sua, de uma idéia de algo para fazermos juntos na sua folga de três. Falava de coincidências. Era de uma amiga que, por coincidência, na sua última mensagem, você perguntava sobre ela. Ela vai bem. Nos encontramos semana passada, conheceu minha mãe, devemos nos encontrar de novo esta semana. Queria que você a conhecesse também – acho que vão se dar bem.

São Paulo, 09 de setembro de 2013.

[para Patrícia Misson, que gostava de me contar seus sonhos literariamente por email]