domingo, 12 de janeiro de 2014

Rachel Sheherazade: a nova geração de falsos polemistas.

O título na internet me chamou a atenção: "Sheherazade diz que já foi de esquerda e defende Feliciano",junto uma foto de uma mulher classicamente bem vestida. Que raios é Sheherazade? Me pareceu nome artístico de atriz pornô (ou ex, pela foto. Procurei, não achei nenhuma, mas que soa um bom nome, soa). Cliquei na notícia. Trata-se da apresentadora do jornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade, de quem tive conhecimento há pouco - apesar de estar há três anos como apresentadora nacional -, quando vi o vídeo de um amigo contra-argumentando seus comentários sobre a legalização da maconha no Uruguai. 

A reportagem que li é de Mônica Bergamo, para a Falha de São Paulo, e traça um breve perfil da apresentadora, "famosa pelos comentários polêmicos", segundo a jornalista. Talvez a polêmica maior de Rachel seja poder demais para pensamento "demenos": ela não se restringe ao senso comum classe-média, como Ricardo Boechat, seu concorrente da Band; ela vai além e abusa de preconceitos. E não digo isso só pela sua defesa do deputado e pastor Marco Feliciano que, segundo ela, sofre "perseguição religiosa" por sua incitação ao ódio. Falo também do preconceito com a cidade, com pessoas pobres, quando diz que tem medo de violência urbana e que, a não ser para trabalhar, raramente sai de Alphaville, e quando sai, é para ir a shoppings (talvez não mais com o risco da turba querer utilizar esse espaço). Trata-se de outro bom exemplo do nível do que a Grande Imprensa apresenta ao grande público como formadores de opinião, pensadores, intelectuais: pessoas com formação superior (para dar legitimidade), uma capacidade de refletir rasteira, uma capacidade de argumentar precária, e uma retórica afiada para inflamar paixões. É da geração que substituirá Jabor, Leitão, Boechat, Waack, Azevedo, Mainardi, Bueno e outros, que cria polêmica para ter ibope, e não aquela polêmica que leva a repensar pontos estabelecidos. O pior é que, como formadora de opinião, trata-se de um modelo de postura - fechada ao diálogo, dona da verdade, recusadora da reflexão, desmerecedora do Outro - que provavelmente será seguido por muitos.

Outro ponto do perfil que me chamou a atenção é quando fala da sua orientação política: "eu era de esquerda. Votei no Lula até ele ser eleito. Me decepcionei com o PT (…). Com minha maturidade, passei a ter posicionamentos mais de direita do que de esquerda". O PT parece ser o álibi mais fácil e em voga para supostas mudança de lado. O que esse argumento mostra, antes de tudo, é a precariedade do pensamento, que aceita desde a identificação de um partido com uma linha política até a escolha binária, é isso ou o contrário. Nuances? Possibilidades fora do que é dado? Crítica ao sistema representativo que gera esquerdas e direitas tão próximas? Nunca!

A pretensa mudança de lado, na verdade, me parece ser o desvelamento do conservadorismo inerente aos habitantes da "sociedade do espetáculo". Ao ferimento do seu narcisismo, à aridez de um mundo que não é a Terra do Nunca que os pais disseram que era, os antigos jovens bem de vida e de esquerda se tornam adultos bem de vida e maduros. Quantos ex-presidentes, escritores, intelectuais, professores universitários e mais um sem número de pessoas que se crêem ilustradas, não enchem o peito para falar de antigamente, das lutas revolucionárias, dos conflitos com a polícia ou com a autoridade, para então concluírem à sua platéia jovem-revolucionária de que eram irresponsáveis e irrealistas - idealistas -, e se hoje criticam a esquerda é porque já foram um dia e sabem o que estão falando. 

Sheherazade tem quarenta anos, creio que não preciso de mais dez anos para ver meus ex-colegas de faculdade (afinal, estudei no antro marxista do Brasil), então cheios de hormônios revolucionários, discursarem, na melhor das hipóteses, um conservadorismo xoxo de esquerda: de graduandos revolucionários a acadêmicos responsáveis. Auto-crítica, dirão eles, como disseram a eles nossos professores. E a auto-crítica de perceberem que sempre foram conservadores, essa nunca fazem, porque desligitimaria seu discurso de "eu sei" e, pior, poderia mostrar a seus pupilos que eles fazem teatrinho de contestação, nada sério. Como dizia Debord, em 1967, na sua tese 62: "Onde se instalou o consumo abundante, aparece entre os papéis ilusórios, em primeiro plano, uma oposição espetacular entre a juventude e os adultos: porque não existe nenhum adulto, dono da própria vida, e a juventude, a mudança daquilo que existe, não é de modo algum propriedade desses homens que agora são jovens, mas sim do sistema econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e que são jovens; que se excluem e se substituem sozinhas". Rachel Sheherazade, diante do seu papel político na sociedade, é como qualquer um de nós: insignificante pela sua pessoa e substituível com mais facilidade do que se troca de roupa.

Pato Branco, 12 de janeiro de 2014

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Mercados do tempo

Dia 31 de dezembro acompanhei meus pais na ida ao mercado, no meio da tarde. Apesar de ser terça, por se tratar de véspera de feriado, tinha movimento de sábado. Esse passeio foi um pouco passear no tempo. No século passado, na ausência de shopping center na cidade (ausência que persiste), o que havia de opção aos pré-adolescentes que atendesse ao binômio diversão-compras era o supermercado. Ao adentrá-lo, o que primeiro me chamou a atenção foi como o estabelecimento encolheu - de espaço, de tamanho, de altura. Certo, na verdade fui eu que cresci, meus horizontes que se ampliaram, mas foi estranho. A lojinha na entrada não há mais, o café foi para o canto e não há torresmo para degustação (não devia ser para degustação, mas eu degustava, meio com medo de não poder fazer aquilo e acabar tomando uma bronca). Meus pais, claro (estamos numa cidade pequena), encontram conhecidos, trocam duas três frases, perguntam notícias de algum terceiro. Eu empurro o carrinho - como fazia vinte anos atrás. Não vejo ninguém que conheço, o que não me aborrece. Reparo que há vários pré-adolescentes: estariam eles, como eu fazia outrora, paquerando no mercado? Empurrava o carrinho, chopinava pros meus pais comprarem um cereal ou um iogurte, degustava um torresmo, e reparava disfarçadamente nas gurias. Algumas reparavam de volta, disfarçadamente também - os pais em cima, comentando animados sobre a nova embalagem do creme de amendoim. No fim, era isso. E eu devia ser ruim de fisionomia, porque não lembro de ter paquerado duas vezes a mesma guria. O caixa, óbvio, tem leitura ótica - bem diferente de quando valor por valor era batido na caixa registradora. Não é mais tempo de inflação, mas meus pais acabam "fazendo o rancho" nessa ida ao mercado, como se diz por estas terras.
Dias depois, aproveitando o primeiro dia de sol e de relativo calor do ano, fui com minha mãe resolver qualquer coisa no centro. Ela seguiu suas andanças, eu voltei para casa. Para escapar do sol quente, fui por um corredor que dá acesso ao mercado próximo de casa. Outra viagem no tempo. Ah, a época que o mercado fechava do meio dia às duas, as pessoas sentadas esperando ele abrir. A locadora que ocupava o outro lado do corredor já havia sido reduzida a um quinto do seu tamanho e agora funciona uma sapataria nesse quinto restante - apesar da placa anunciando a locadora. Locadora cujos atendentes sabiam decor o código do cliente dos meus pais - 24 -, e que atendiam aos pedidos de minha mãe de dizer ao meu irmão que a fita de desenho só podia ser assistida duas vezes, ou tinha que pagar um valor extra - deixasse e meu irmão desgrudava da televisão o tempo de rebobinar o vhs. Subo a rampa que dá acesso ao corredor, onde eu fazia manobras com minha bicicleta vermelha (eu devia julgá-las radicais). No corredor, finalmente, as vitrines outrora cheias de brinquedos, que eu observava babando, agora estão tomadas por caixas da loja de roupas que funciona no local. Eu achava aquela passagem algo mágica, que me levaria a qualquer lugar especial - ela própria um lugar especial. Lembro do medo de entrar nela e ela ser fechada antes de eu chegar no outro lado. Não consigo me desvencilhar dessa sensação: há algo de mágico nesse pequeno trajeto, e não se trata exatamente do corredor.

Pato Branco, 07 de janeiro de 2014