segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O palhaço do inferno

Avenida Rangel Pestana, no bairro do Brás, duas e meia da tarde. Tentando se proteger do sol ardido sob uma sombra intermitente, sufocado por um calor seco de trinta e seis graus, um homem vestido de palhaço vende cachorrinhos feitos de balão. Sua roupa é comprida, cheia de bolinhas, sendo branca e amarela as cores predominantes. O chapéu é mais colorido, cada uma das suas pontas (sete, se contei direito) de uma cor diferente; o rosto, pintado de branco, o nariz postiço, vermelho - o básico que se espera de um palhaço. Toda sua figura adquire um tom pastel no contexto de calor tórrido. Anuncia: olha o cachorrinho de balão pro bebê, leva junto a espadinha. Sem sucesso tento descobrir o que é a tal espadinha. Sua voz é anasalada e desvitalizada. Não parece cansado: parece o próprio cansaço conformado. Ao fim de seu dia de labuta, deve voltar para casa com alguns minguados trocados, com o que sobrevive. Em sua roupa de palhaço, ele me parece ser a versão sem fantasias da grande maioria dos trabalhadores - do Brás ou dos bancos. Ele me parece a imagem do inferno que é a vida da maioria neste nosso sistema.   

São Paulo, 03 de fevereiro de 2014.

Presentes e passados [Memórias feitas de saudades]

Encontrei Djalma sexta à noite, num karaokê (olha o Dalmoro!, você diria). Me pediu um abraço forte, que estava precisando - ele também. Parece que seu espectro andou a passeio por este dias, deixando um certo pesar em nós. Não é o tipo de sentimento que você gostaria de despertar, tenho certeza, mas, entenda, a lembrança dos momentos que passamos juntos - bons e maus -, o prazer da sua companhia, o radiar do seu sorriso, a saudade de tudo isso, que flutua no vazio insubstituível da sua ausência, tem horas que dói. E tamanha dor, tanto tempo depois, se deve à pessoa que você foi - ou seja, culpa sua! Combinamos de ir na sua casa domingo, visitar seus pais, seus irmãos. Eu tinha uma lembrança para dona Mê, artesanato simples porém gracioso, um imã de geladeira de uma pequena rosa, feita sei lá de qual material, com uma rolha como suporte. Foi no dia em que sua mãe fazia anos que vi o enfeite, em uma festa em Pomerode. Hesitei entre a rosa e a pimenta. Esta, pensei, poderia representar o espantar eventuais má-sortes da sua família. Optei pela rosa, pois acho que estamos num ponto de fazer florescer o futuro, pois a vida segue, desabrochando alegrias e tristezas, planos e saudades, no seu incansável caminhar. E foi com alegria que fiquei sabendo que sua irmã conseguiu passar no curso que ela queria, na faculdade que ela pretendia - veterinária. Imagino o quanto você também não teria ficado feliz ao saber da notícia. Na despedida, parabenizei ela novamente, e comentei que era uma coisa que você sempre dizia, o seu desejo de que Victória conseguisse fazer o que desejasse - a gente dá um jeito, guardo parte do meu salário pra pagar a faculdade dela, um dia você comentou. Não sei se fiz bem, ela se comoveu e não conseguiu segurar as lágrimas - e não adiantou meu abraço forte ou o beijo terno do Djalma. Sua mãe comentou que tem sempre lembrado de você falar para ela calcular o custo-benefício. Achei graça, não imaginava que você tinha encampado meu discurso tanto assim - sabia que se admirava desse meu excesso racional para gastos, deixou isso bem claro quando comprei a máquina de pão, a qual cobriria os custos em, no máximo, seis meses. Houve um momento que estávamos sentados à mesa, o clima não era de velório, mas havia uma tristeza no ar, penetrando as lembranças alegres de quando estava conosco. Seu pai falou do seu bom coração - e também que você não era de deixar barato. Verdade. Djalma estava com a namorada - tenho certeza que você iria adorá-la. Eu estava sentado no lugar de seu pai, e ele ocupava o seu. Sua mãe me mostrou um vídeo de uma reportagem de quando houve qualquer caos na estação Tatuapé - parece que, desde sua partida, seus colegas próximos saíram todos de lá, exceto um. Entrar no QGinho para vê-lo foi difícil. Na reportagem, em meio ao blablablá idiota do ancora, às oito e vinte e um da manhã de um dia que não sei qual é, da câmera do helicóptero vejo você, uniforme do metrô, gesticulando com um colega, enquanto voltam para a estação e o trem tenta se locomover. Sabia desse vídeo, você tinha comentado, contudo nunca tinha visto. E vê-lo me causa uma sensação estranha: eu te vejo, agora, no presente: você caminha, segura o rádio, ajuda a abrir a porta, gesticula. Não há dúvidas, é você: o cabelo, os gestos. Não há dúvida: é no presente que vejo você se mover. Mas são imagens passadas. Tento segurar o choro, não consigo totalmente. Porra, Misson! Penso comigo, frase tantas vezes dita desde sua perda. Porra, Misson! Revejo os trinta segundos de sua presença uma, duas, três vezes. Volto para cozinha. Seu pai pergunta do seu livro, reconheço que não tenho tido estrutura para ler seus cadernos. Porra, Misson! Sabia que também pensei em comprar um caderno? Mas acho que não tenho muito o que escrever em cadernos. Você os leria? Seu irmão fala de aparecer na minha casa esta semana, para começarmos a organizar as linhas que você nos deixou. São linhas presentes - nosso tesouro. Você não é passado.   

Para Patrícia Misson. Porra, Misson!   

São Paulo, 02 de fevereiro de 2014.