segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Por que tanto medo dos protestos contra a copa?

   Há um processo agressivo de desqualificação dos protestos em curso, e não falo aqui de jornalistas reacionários (ao menos eu não os via assim até pouco tempo atrás). Dois colunistas fizeram com que me acendesse esse sinal de alerta: Marcelo Rubens Paiva, do Estado, e Nirlando Beirão, do R7. O primeiro diz temer "pela integridade física e mental desses moleques mascarados", dispostos, segundo ele, a atacar torcedores adversários em nome de frustrar um ídolo tupiniquim, a tal copa do mundo, "instituição mundial que amamos a cada quatro anos". O segundo anunciou o fracasso do protesto de sábado por ter aparecido somente "os habituais gatos pingados" (entre mil e três mil pessoas), enquanto um bloco de carnaval sozinho atraía vinte mil pessoas, para não falar nos demais quarenta que se espalhavam pela cidade; e conclui, depois de vários qualificativos que rebaixam o debate: "o que aconteceu em junho de 2013 foi importante. Mas não tem nada a ver com os surtos da atual moléstia infantil do protestismo".   

Não sei se alguém nos protestos acredita que vai barrar a copa. Eu mesmo não sou muito simpático ao lema #naovaitercopa. Porém reconheço que como "grito de guerra", como "slogan de campanha", é um mote interessante, tanto que incomoda colunistas como os dois supra citados, e aponta que a briga não é exatamente por migalhas. Se incomodar, não concordar, achar um lema surreal, contudo, não autoriza os colunistas a agirem de má-fé e distorcerem propostas e fatos. Apesar que jornalista brasileiro tem memória extremamente curta, capaz de esquecer o que disse em menos de vinte e quatro horas (Jabor é nosso caso emblemático), e pode ser que o que escreveram foi resultado dessa amnésia que acomete significativa parcela dessa categoria. Não serei Poliana em acreditar nisso, insisto em achar má-fé.  

Ambos taxam os manifestantes de infantis, de moleques. É o que a Grande Imprensa dizia do Movimento Passe Livre, a meia dúzia de gatos pingados de arruaceiros e vândalos que ia nas suas primeiras manifestações, a ridícula briga por vinte centavos. Até se darem conta que a população não é tão bovina quanto criam.   

Paiva dá a entender que a revolta contra a copa vai se voltar contra os torcedores que aqui vierem. Diz que a revolta deveria se voltar contra o governo que assumiu responsabilidades e não cumpriu, e não contra a instituição copa, que não tem culpa de nada. O escritor só esqueceu que houve uma série de exigências da Fifa - tanto que os jogos serão em pasteurizadas arenas, ao invés de aproveitar estádios já prontos, históricos da copa de cinqüenta, como o velho Maracanã, o Pacaembu, a Vila Capanema, etc -, e que se os estádios estão quase prontos é porque dinheiro público que poderia ir para obras importantes foi canalizado para a instituição mundial que ele ama e me põe indevidamente junto (até gosto de futebol, de ir ao estádio, mas acho copa um porre, e sei que não estou sozinho).   

Já Beirão abusa da ignorância de seus leitores, e faz o jogo do Fla-Flu apedeuta que toma as discussões na rede. Ele atribui o fracasso da manifestação ao número de participantes. Vale lembrar que o primeiro ato do MPL devia ter no máximo duzentas pessoas, e que a quinta terror tinha pouco mais que o do dia vinte e dois (entre dois e cinco mil, a depender da fonte). Fracasso foi o protesto da semana seguinte à quinta terror, com milhares de pessoas nas ruas, vestindo as cores nacionais, deslumbrados com o prédio da Fiesp, atendidos por ambulantes, tirando fotos com policiais militares, hostilizando o MPL e a esquerda, enquanto protestavam contra impostos (e financiar o passe livre como?), contra o Lula (?), contra o casamento gay. O fracasso foi tamanho que o MPL se retirou temporariamente de cena, reaparecendo mais tarde nas periferias. Voltando ao protesto atual. Juntar mil pessoas, no mínimo, para apanhar da polícia militar numa tarde chuvosa e cheia de opções muito convidativas, parece estar longe de ser fracasso. Ainda mais a se julgar pela repercussão. Se o fracasso está em não alcançar seu objetivo, raros foram os protestos de sucesso, e melhor é mesmo ficar em casa, assistindo o jogo da rodada.   

E aqui o maior perigo da postura tomada por Nirlando Beirão, Marcelo Rubens Paiva, e tantos outros: um dos maiores legados (se não o maior) dos protestos de junho de dois mil e treze foi trazer a discussão política para o espaço público, para o quotidiano, autorizar a rua como espaço político democrático, e abrir espaço na Grande Imprensa para protestos que acontecem quase diariamente desde muito tempo e eram solenemente ignorados (quem escuta noticiário no rádio, por exemplo, nota a diferença). A desqualificação dos protestos contra a copa, assim como a forma que foram reprimidos pela polícia militar, é uma tentativa de retornar ao estado anterior, em que protesto era sinônimo de vagabundagem, e a população era tida por letárgica.   

Beirão sugere (e Paiva não fica muito atrás, nas entrelinhas do que diz) que "a copa é só a copa. Melhor relaxar e aproveitar". Com todo dinheiro e política envolvidos no evento, a copa não é só copa, e os protestos contra ela têm uma dimensão política que amedronta os donos do poder - tanto que seus cães de guarda já latem na Grande Imprensa.   

São Paulo, 24 de fevereiro de 2014

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Do trote ao garoto amarrado ao poste: dois momentos de um mesmo pensamento

É assunto de que já tratei várias vezes, e se me repito é porque ele também se repete, nestes tempos pseudo-cíclicos da produção capitalista-espetacular. A cena é a de todo início de período letivo das universidades: jovens sujos e cheios de tinta, pedindo dinheiro nos semáforos, supervisionados por veteranos - para não falar das brincadeiras e rituais que ocorrem até se chegar a isso. Este ano, os trotes que fui obrigado a presenciar na avenida Paulista e algumas imagens que vi na internet, me remeteram diretamente à do garoto preso ao poste por justiceiros, no Rio de Janeiro. Os princípios muito se assemelham: desrespeito, humilhação, violência. A principal diferença é que o trote é socialmente aceito por grande parte da população, enquanto a violência contra o menor ainda está em litígio. E o absurdo de haver quem defenda esse tipo de ação, creio, está estreitamente ligado à aceitação do trote acadêmico.

O que vejo na Paulista me faz lembrar da juventude hitlerista retratada no filme da Leni Riefenstahl. Os argumentos utilizados como justificativa me fazem lembrar ainda mais de parte da ideologia dos regimes totalitários da primeira metade do século XX: a tradição, o ritual de ingresso, o pertencimento, a submissão à hierarquia e à autoridade. É parte do nosso arcaísmo tecnicamente equipado - que por fim achamos natural, como natural achamos tantas coisas que até ontem nos eram absurdas. E se em algumas sociedades tradicionais esses ritos se justificam, no século XXI sua permanência na sociedade brasileira é justificada em nome de valores que não podem ser enunciados abertamente.   

As violências - físicas, muitas vezes, verbal e simbólica praticamente sempre - não são apenas de veteranos sobre calouros, essas violências são da instituição "Universidade brasileira" (e das classes que têm acesso a elas) sobre uma parcela da população. Afinal, quem é a figura que habitualmente fica nos sinais pedindo dinheiro se não uma população extremamente carente e sem quaisquer perspectivas, pouco importa a idade? Crianças, jovens, adultos e velhos são escarnecidos (quando não surrados, como aconteceu com alunos do Mackenzie Campinas anos atrás) por aqueles que em breve estarão em postos de poder. Há uma pseudo-inversão de papéis, simulacro de rituais encontrados em muitas sociedades tradicionais. Pseudo porque se os jovens têm um dia de mendigo, para à noite voltarem à normalidade, os mendigos não têm direito a um dia de classe média, com aulas, passeio no shopping para compras, refeições sofisticadas. Não apenas por isso, essa inversão também é falsa porque esses jovens universitários não são postos em contato com esse Outro que é o marginalizado: a humilhação inverte o sinal e se torna motivo de orgulho, se torna uma grande festa: a celebração da miséria e exclusão.   

O trote acadêmico, portanto, reafirma uma série de valores arcaicos que ganham outra significação no mundo moderno: reforça a hierarquia numa época em que empresas, partidos políticos, ONGs, fóruns virtuais, etc, têm se utilizado do discurso da horizontalidade (talvez não seja coincidência que as universidades sejam dos ambientes mais refratários a questionar sua hierarquia interna - que o diga o fato de professores e "trabalhadores" das universidades públicas paulista terem cada um seu sindicato); postula a homogeneidade entre as pessoas e apregoa a violência ao diferente, tido também por inferior - o ingressante e, principalmente, o marginalizado. Ele não integra, ao contrário do que imaginam alguns: ele submete. Um interage com as diferenças e descobre nelas suas riquezas, o outro as anula, amparado por um discurso do medo ou da superioridade. A universidade brasileira, ao não tomar atitudes para coibir o trote se torna cúmplice dele, e empresta sua legitimidade aos valores implícitos, difundidos e aceitos por toda a sociedade.   

Um jovem agredido e humilhado por um bando que se crê superior por qualquer motivo cretino, para "aprender seu lugar": pode ser um menor despido e preso a um poste, por ser pobre e negro; pode ser uma jovem de roupa rasgada, andando de "elefantinho", com uma placa humilhante presa pescoço, simulando sexo oral em uma banana, por ser caloura.     

São Paulo, 15 de fevereiro de 2014.