segunda-feira, 17 de março de 2014

Quatro histórias a caminho do nada

Quatro cineastas de diversos estilos - o sucesso de bilheteria, o cult, o acadêmico, o amador. Quatro cineastas que, em algum momento, passam a fazer seus filmes a partir de suas vidas - tentam construir uma obra artística, não um produto da indústria cultural. Vidas que influenciam nas obras, obras que influenciam nas obras: o cenário de "Cineastas", do argentino Mariano Pensotti, apresentado no primeiro MITSP, é dividido em dois: na parte de baixo, a vida real; na de cima, o filme realizado por cada um dos cineastas. A divisão é clara e não permite mistura de ficção e realidade, por mais que se queira - a filha de um desaparecido político obrigada a filmar o roteiro de um desaparecido que retorna trinta anos depois não reencontrará seu pai morto; os objetos de um cineasta à beira da morte, uma vez filmados, não correspondem aos objetos em seu contexto. Personagens não descem, vidas reais não sobem. Em baixo a vida, em cima a representação, e a criação de um duplo, o ficcionar a partir do seu quotidiano, faz com que um ficção e realidade se influenciem, porém não se imiscuam.
O cenário de cima - o da ficção - desde o início é nu: precisa ser assim para poder ser composto com elementos de cena, postos e tirados ao sabor dos roteiros e de suas mudanças. O cenário de baixo, por seu turno, começa bastante carregado - mesas, cadeiras, caixas, poltronas, quadros, plantas - e vai se esvaziando conforme os quatro cineastas têm suas vidas abaladas, e junto com elas os filmes que estão rodando. O desnudar do palco pode ser uma alegoria do desnudar de cada um dos cineastas dos penduricalhos de sua vida, em busca do que realmente interessaria - seus ideais, suas origens, seus passados, seus futuros. No fim, cenário do filme e da vida real se equivalem: cenários nus iluminados por luz de serviço. A equivalência entre ambos deixa clara a invasão da ficção na realidade: o cenário nu não releva uma pretensa essência, antes uma verdade: a mentira de tudo, a espetacularização da vida, à moda do cinema. O um dia exemplo de bem sucedido gerente de McDonald's se dá conta de que é um Zé Ninguém facilmente substituível; a filha de desaparecido é obrigada a aceitar que seu pai está mesmo morto; o cineasta que vai até o cinema de sua infância se depara com um culto evangélico - pastiche de rituais de uma época que não existe mais -; a filha adotiva de uma família descendente de russos vai até a Rússia e encontra a vila de seus antepassados exatamente da forma como imaginava, exatamente como há um século, a mesma estrutura das casas, os mesmos rituais... para logo descobrir que é tão-somente um cenário de um seriado de época, e se ver em meio a uma festa eletrônica comemorando o fim das filmagens.
Por quanto entregamos nossos ideais? O quanto deixamos nossos sonhos serem ditados desde fora, por alguma espécie de deus ex-machina - mesmo sabendo da sua existência e do seu funcionamento? Nossa essência desnuda possui algo de nosso - possui algo? "Cineastas" pode ser vista como uma leve comédia para o fim de domingo. Pode ser vista também como um profundo questionamento do vazio de nossas vidas - de nossas vidas vazias -, preenchidas com ficções que não nos dizem nada.

São Paulo, 17 de março de 2014.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Larissa S. [retratos feitos de memórias]

Conhecia os cinco continentes, ainda que não considerasse passar uma semana em Bali como ter conhecido a Ásia. Achei curiosa sua noção conhecer: não que não fizesse mochilões, mas sabia que bater o pé em uma cidade, sem sentir minimamente o aroma do seu quotidiano, não era conhecê-la. Havia ido em trabalho voluntário para Botsuana. Havia trabalhado no Grajaú. Destinos que chocam o interlocutor, quando se sabe que ela estudou nas melhores e mais quadradas escolas da capital - imagino, então, as pessoas próximas, mais afim aos valores que tais escolas ensinam. Ao fim do ensino médio, sem idéia do que fazer ou do que gostava, seguiu uma carreira tradicional em uma faculdade tradicional, como a grande maioria dos seus colegas - administração na FGV. Só depois se deu conta de que gostava de trabalhar com crianças. Fez pedagogia em uma faculdade perto de sua casa. Começou em uma escola bilíngue, por saber inglês; hoje leciona em uma escola socio-construtivista - reconheci minha escola do básico em várias coisas que ela comentou do seu trabalho. Não tem o jeito de "tia", que muitas vezes vi nas estudantes de pedagogia. Não tem o amargor que a grande maioria dos meus amigos que foram ser professores têm depois de menos tempo de trabalho do que ela - talvez por ter tido a sorte de não acabar em uma escola moedora de carne e idealismos, seja pública, seja privada. Bem provável que se tivesse seguido sua primeira carreira, hoje estivesse ganhando melhor do que ganha - ainda que não aparente passar privações. Desconfio que essa mudança de rumo para uma carreira tão desprestigiada não tenha sido tão tranqüila para quem teve o histórico que teve - desde sempre uma aluna bem adaptada. Ela, porém, não contava sua história com o peso dos grandes abandonos. Contava com a leveza das pequenas descobertas. Contava com a tranqüilidade de quem agiu e não só teorizou, enfrentou o mundo, e agora quer dar continuidade à sua mudança. Me lembrou Mia Couto: “Que o mundo não mudaria por disparo. A mudança requeria outras pólvoras, dessas que explodem tão manso dentro de nós que se revelam apenas por um imperceptível pestanejar do pensamento”.

São Paulo, 10 de março de 2014.