quarta-feira, 30 de julho de 2014

São Paulo não esconde sua violência

Quatro e meia da tarde, estou no intervalo da minha aula. Em frente a praça Roosevelt, do outro lado da rua da Consolação, dois mendigos estão apoiados na "mureta" que evita que os pedestres se aproximem da rua que passa abaixo - o fim do Minhocão. Um deles aparenta embriaguez, o outro parece alheio. Passam por eles três jovens, na casa dos vinte anos, trajam roupas de marca. Um deles pára, olha para trás, tira seu iPhone, entrega a um amigo: "tira uma foto", e se põe entre os dois mendigos. "Uma foto cozamigo", ainda ouço ele dizer. Quando a miséria, a dor ou o sofrimento do Outro não merecem nada mais que escárnio, qual o limite para a desumanidade? Não sei, e tenho medo de descobrir. Mais medo ainda porque já me parece muito o pouco que sei. Adiante, novas pistas de que nada sei. Garotas passam pintadas e com as roupas rasgadas. Garotos passam pintados, cabelos estragados e bêbados. Uma bonita demonstração da divisão sexual do trote: às mulheres, perder a roupa, aos homens, o juízo. Comento com meu amigo o quanto, desde a Unicamp, me alegra presenciar esses simulacros de celebração da juventude hitlerista. O fato dos fascistóides na nossa frente serem da Universidade Presbiteriana Mackenzie (ah, como o cristianismo ajuda a construir um mundo mais digno!), em nada altera: um pouco mais ou um pouco menos, são a fina flor do país, a nata intelectual e financeira - junto com os acadêmicos da PUC, USP, Unicamp, UFAbc ou algumas outras. Até a UNIP tem seu simulacro fascista, expondo a pobreza de todos - veteranos e calouros - de maneira absurda: porque ali não há berço esplêndido para ocultar a pobreza do ato. De volta à escola de teatro, um exemplo que me ainda choca, e não acredito que algum dia deixe de me chocar: comento com a secretária - sempre leve, bem disposta, bonita - que não consegui ver o vídeo em que ela é entrevista pela BBC, apenas lera o breve resumo do seu relato. Ela me conta ao vivo, então, o que pode ser resumido como: teve a sorte de "só" perder um rim após levar um chute - e desta vez não estou sendo irônico. Nove pessoas - homens e mulheres -, entre dezesseis e vinte e dois anos atacaram-na quando passava pela praça da República, em direção a uma lanchonete. Ela perdeu um rim, o amigo que tentou protegê-la, "só" sofreu escoriações e acabou com o nervo ciático grudado no fêmur - três meses de fisioterapia para começar a voltar a ter os movimentos da perna. Seu crime: ser uma transexual. E eu que ingenuamente achava que esse tipo de violência seria excesso de testosterona, e não premeditação pela qual esteve presente a razão. Dava tudo isso por suficiente para o dia, queria chegar em casa, escrever esta crônica, seguida de uma mais leve, mas o dia me ofertava mais um belo exemplo do neofascismo das classes paulistanas favorecidas. Estou entrando no Centro Cultural São Paulo, um homem fecha sua mochila enquanto reclama: "é claro que eu vou ficar assustado, saio do banheiro e três seguranças me cercam e me intimidam", o segurança fala algo que não ouço, ele responde: "então vamos entrar e conferir", ele e dois seguranças entram no banheiro, um terceiro fica na porta. O homem está bem vestido (bem melhor do que eu), demonstra bom domínio do português. Seu crime: ser negro. O CCSP segue aprofundando seu processo de limpeza social para se tornar um Sesc público. Talvez seja isso uma das coisas que me faz gostar de São Paulo, em especial de seu centro: ela não é uma cidade hipócrita, não esconde suas mazelas, não disfarça seu racismo, não doura seu preconceito, não finge nenhuma democracia racial ou social. Não que eu goste de presenciar isso tudo, mas esconder o rosto para não ver toda essa violência simbólica diária e ostensiva não a torna menos violenta ou menos quotidiana. O centro de São Paulo nos cospe na cara nossa precariedade como sociedade e como humanos.



São Paulo, 30 de julho de 2014.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Jorge C. [Retratos feitos de memórias]

Reconheço que eu possuía um pouco de preconceito com historiadores da arte. Conheço alguns alunos tranqüilos, fazem sua pesquisa, não se acham nem mais nem menos por isso. Conheço outros, em compensação, que arrotam em francês, tão finos e cultos são. Conheço professores assim também - que aliviam um pouco essa postura, passado o contato inicial. É certo que conheço alunos, professores e profissionais de outras áreas do conhecimento que agem do mesmo modo, mas meu foco agora é em história da arte. Ainda que não achasse que todo historiador da arte seria um chato-prepotente, estava sempre preparado para me deparar com um desses. E foi com esse preparo que entrei na sala de aula para assistir ao curso de história de arquitetura um, com o professor Jorge C. Ele havia lecionado na França, escrevia livros (eu havia lido um, bem introdutório), escrevia em jornal. Imaginava que aprenderia muito nesse curso, apenas precisaria tolerar seu mau humor em ter que dar aula para um bando de adolescente de dezessete, dezoito anos. Logo na primeira aula, me dei conta de que me equivocara: qual não foi minha surpresa ao ouvi-lo dizer sobre o quanto gostava de dar aula para calouros - e não era só uma forma de tentar ganhar os alunos, era perceptível seu ânimo, durante o curso todo. Mais: chegou a propôr uma excursão para Paris: aulas de história da arte sem slides, direto na fonte: nas ruas, nos museus da capital francesa (não aconteceu, por desorganização nossa, dos alunos). Apesar de eu não ter mais dezoito anos, sabia tanto ou menos que meus colegas, e aprendi bastante (esqueci boa parte, mas isso é outra história) sobre arquitetura greco-romana e um pouco mais. Mas o que mais aprendi foi ver como aquele homem que poderia se pôr no alto de um pedestal e só dar aula para pós-graduação, assumia que aula para primeiro-anistas não era nenhum rebaixamento, e que a possibilidade de erro, típico da ousadia jovem que ainda não tem o traquejo de mundo, traz junto a possibilidade de descobertas inusitadas e que, como os versos de Pessoa que tanto gosto, "é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,/Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,/E nada que se pareça com isso devia ser o sentido da vida...". Dias atrás li um artigo seu sobre um concerto. Seus cabelos eram brancos e não desbranquearam nesse ínterim, como não mudou seu espírito jovem: não rejeita um programa confortável e sem surpresas, conduzido por um regente escolado, porém não deixa de prestigiar jovens orquestras e jovens maestros, em uma récita sujeita a erros - parece, inclusive, preferir estas.


São Paulo, 29 de julho de 2014