quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O espelho - a pequena farsa entre policiais militares e ambulantes

Vejo algo de um patético respeitoso na forma como se dão as relações entre ambulantes e policiais militares no centro de São Paulo. Parecem entrar no mesmo registro do médico que desfila de branco (quando não com estetoscópio no pescoço) no shopping, exalando divindade, ou do crente evangélico no vagão do metrô, arrogante em seu terno de corte e tecido vagabundos. (Parênteses: sem dúvida esse patético respeitoso é mais saudável para ambos os lados do que na gestão Kassab, em que guardas-civis municipais prendiam tocadores de violão (apesar que tem uns que bem mereceriam) e corriam com arma em punho atrás de perigosos vendedores de capas para celular e bichinhos de pelúcia). Aos que não são de São Paulo ou nunca presenciaram a cena: estão os ambulantes com seus devedês, capas para celular, massageadores e o que mais tiver expostos na rua; policiais militares, em geral em dupla, vêm caminhando lentamente pela calçada. Há um corre-corre entre os ambulantes, que recolhem atabalhoados os produtos, como se corressem grande perigo. Alguns caminham até a próxima esquina, outros se escondem da visão dos policiais atrás de bancas de revistas ou de ambulantes regularizados. Mal passam os homens da lei, os vendedores voltam aos seus antigos postos. É óbvio que os militares em questão não estão fazendo o papel de rapa, não querem prender ninguém por comércio irregular. Mas me perguntei hoje, quando vi a cena no calçadão da Barão de Itapetininga, na República: e se os ambulantes ficassem quando os policiais passassem, seriam presos, teriam suas mercadorias confiscadas? Creio que sim. Não para mostrar serviço, nada disso. Oficialmente seria por comércio irregular, mas o motivador de fato seria o desrespeito pelos mantenedores da ordem: estamos cá passando, na autoridade de nossas fardas, e vocês acham que não valemos nada, nem dois minutos de interrupção dos seus negócios? O que resta, afinal, é uma pequena farsa do nosso processo civilizatório estancado a meio caminho: ambulantes se escondem fingindo preocupação autêntica, os militares desfilam como se sua autoridade fosse respeitada plenamente, os transeuntes assistem sem maior comoção. Me lembrei do conto do Machado de Assis "O espelho - esboço de uma nova teoria da alma humana", publicado em 1882 - antes da república, antes da abolição. Não acredito que Machado tenha sido um visionário, antes, nós que ainda não superamos aquela condição por ele retratada há mais de cem anos: um país que nunca viveu como uma comunidade (após a chegada européia) e cuja sociedade até hoje é constituída por castas e corporações, disfarçada numa pretensa mobilidade social - cujos exemplos máximos e quase únicos são o ex-metalúrgico que ascendeu à presidência e o ambulante que virou dono de emissora de tevê (semelhanças com espetacular concentrado e difuso é coincidência). O cidadão só tem direito a ser sujeito a partir do momento em que veste algum insígnia: médico, juiz, advogado, policial, fazendeiro, pastor, novo-rico ou, na ausência de um cargo com valor social, a ostentação da graça dos eleitos para o reino de deus (e congêneres). O fato de ser uma pessoa, sem maiores adjetivos, não dá valor nenhum ao indivíduo - seja padre, empresário ou pobre. E enquanto nossa sociedade admira exemplos burlescos de homens de sucessos, policiais militares desfilam o pouco de valor que suas fardas os imbuem para os desvalidos de tamanha sorte.


São Paulo, 06 de agosto de 2014

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Frida K. [retratos feitos de memórias]

Quando penso em sons da minha infância, há dois que me marcaram muito. Um deles é o de uma serraria que ficava a uns sessenta metros da minha casa (ao lado dela havia um terreno baldio com pínus, onde eu pegava pinhas para brincar de jogar embaixo dos carros). Aquela serraria, na minha memória, barulhava o dia todo, só dava um intervalo na hora do almoço (assim como os mercados, fechados do meio-dia às duas). O outro som é o de algazarra de crianças no meio da manhã, no recreio da escola que ficava na esquina da minha casa. Frida K. era sua dona. Ela imigrara da Áustria para o Brasil no entreguerras, quando jovem. Migrara para Pato Branco com seu marido quando jovem era a cidade. Mais do que simplesmente uma das pioneiras da cidade, foi organista da igreja matriz, professora de piano e fundadora da segunda escola da cidade, em 1954, que funcionava nos porões da sua casa. Casa na qual entrei poucas vezes, geralmente com minha mãe - numa delas até dedilhei qualquer coisa no piano. Recordo de uma vez ter ido sem minha mãe, se bem lembro, foi também a única vez que fui até a varanda, que dava para os fundos do terreno - o pátio da escola abaixo. Ela havia ido passear em sua terra natal, Viena, e na volta trouxera um presente: uma bola de assoprar, tipo bóia de piscina infantil. Brinquei bastante com ela, mas uma coisa me deixara intrigado: se ela havia ido para a Áustria, por que havia um "Made in China" na bola? (Eu era pequeno e o mundo era outro). Às vezes, de casa, ouvia ela tocar órgão. Mais comum era escutar seus alunos tocando piano quando passava em frente da sua casa. Mais comum ainda era encontrá-la na janela, olhando o movimento da rua. Com o tempo ela foi ficando com a memória recente prejudicada. Encontrei-a uma vez na janela, como de costume. Aquela vez parecia pensativa, olhava para longe, como se tentasse enxergar algo faltante. A cumprimentei, ela encetou conversa. Falou de como Pato Branco havia crescido, brevemente comentou como era antigamente, concluiu com um reticente "é... Pato Branco cresceu...", suspirou, olhou em direção ao centro, aquele olhar distante, e recomeçou a mesma história, exatamente igual. Se repetiu ainda outra vez, antes de eu me despedir e seguir para casa. Ainda não estava assim quando sua escola foi vendida pelo filho e mudou de endereço. Assim estava quando a casa foi vendida a um desses "homens do progresso" da cidade (que encheu as burras com especulação a imobiliária agressiva contra a urbe), no início deste século, que no lugar construiu um prédio - batizado de Residencial Dona Frida, veja que homenagem! Pato Branco deixou de existir para mim nesse momento - e Frida K. ainda viveria quase dez anos mais, se aproximando do centenário. Hoje sonhei que carregava tábuas da madereira da serraria para a casa dos meus pais - era para construir uma estante pros meus livros, e eu era o eu de hoje. Ao atravessar a rua que dava na casa da dona Frida, vi que ela estava numa janela da lateral da casa - que, na vida real, ela pouco freqüentava, por ser alta e numa rua de menos movimento de pedestres -, o olhar melancólico em direção ao centro da cidade (melancólico é um termo que não lembro de poder empregar para ela). A casa já estava pintada de verde, os novos moradores terminavam de arrumar sua mudança, já não havia nada da dona Frida lá, a não ser a própria, esquecida, contemplando uma última vez a cidade do seu canto, como fizera por cinqüenta anos. Ao acordar, lembrei da cena de Frida K., presa ao passado pelo Alzheimer, a repetir "é... Pato Branco cresceu..."


São Paulo, 01 de agosto de 2014.