sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Não vá ao Caminito, vá à Califórnia

Devia ser por causa do sono, saí do albergue com a idéia de ir até La Boca, ver se achava uma lembrança do tipo que minha mãe gosta. Idéia fraca: poderia até achar, mas seria a um preço abusivo. Sem contar que o Caminito não me empolga: da primeira vez achei lindo: eu tinha dezesseis anos, era um ingênuo de mundo, de cidades, de leituras. A segunda, com meu irmão, saí com a sensação de tudo ali ser muito falso, montado para turista fotografar e consumir (ou então, pra que turista?). Desta vez, nem passei por lá: depois de entrar em algumas lojas dos arredores (descobri que a moda lá, agora, é show de tango nos restaurantes), só para confirmar o que eu já sabia, acabei me enveredando por ruas que não interessam aos turistas - até uma forma de não perder a viagem. E fiz bem! Segui pela beira do rio, na direção contrária a Puerto Madero - caminhões, pavilhões, guindastes, quase ninguém, a água cheia de lixo. Não adentrei muito, cansado estava e torrando sob o sol do meio dia. Sem escolher a rua pelo nome, entrei na California - havia "centro de integração comunitária" na esquina. Mais à frente, me deparia com uma grande propaganda da eleição no time do Racing, e numa praça, além de dois carros velhos, veria um adesivo de time outro que o Boca Juniors, no posto policial: do Barcelona - só no caminito parece que o Boca Juniors é uma total unanimidade na Boca. Mas, por via das dúvidas, melhor não aparecer por lá com camisa do River, ainda mais depois de uma derrota.
La Boca tem um cheiro diferente dos demais bairros da cidade por qual passei - não sei defini-lo bem. Na ida, virei na rua Brasil, e não sei se por meta-crítica, meta-citação, meta-coincidência, as calçadas começaram a se parecer com as brasileiras. Interessante que mesmo sendo um bairro popular, de calçadas estreitas, as ruas são arborizadas. Ainda sobre as calçadas do bairro, lembro de terem me chamado a atenção em 2006, por possuírem um enorme desnível para a rua, ou mesmo para a calçada da construção ao lado, coisa de um metro. Uma antiga fábrica de "bizcochos y talleres" teve mais que sua fachada preservada (a exemplo do esqueleto do pátio dos bondes, em São Paulo), toda a parte da frente e de trás permanecem, ao que tudo indica, utilizadas, enquanto no meio levanta um prédio moderno, envidraçado. 
Na rua Califórnia, enfim, encontrei casas como a do Caminito, as placas de metal fazendo as vezes de parede. Em geral são amareladas ou esverdeadas, porém estão muito longe das cores vivas da rua pros turistas. Quando conseguem, os proprietários dessas casas as substituem por alvenaria - há algumas em que apenas o térreo foi modificado, a parte de cima segue antiga. Sem mudar a casa, instala-se ao menos um ar-condicionado. Consegui espiar dentro de algumas. Há as que são casas normais, há também as que escondem pequenas vilas, com uma ou duas casas ao fundo. Numa casa de alvenaria, estilo antigo, colada à calçada, uma família está à mesa, almoçando. Pouco depois, uma comedoria escura com mesas e cadeiras muito antigas - lembram da cadeira que creio ser a mais velha da casa dos meus pais, atualmente elevada ao posto de elevação para colher frutas, quando a senhora minha mãe não se inventa de pegar escada ou trepar nas árvores. Meu passeio pela Boca termina na praça Almirante Brown, dos dois carros muito antigos, um deles com teias de aranha crescendo nas janelas. Próximo a eles, grupos de trabalhadores em horário de descanso jogam futebol, seus capacetes como demarcações do gol.

Buenos Aires, 28 de novembro de 2014

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Fotografo com palavras

Da primeira vez que vim a Buenos Aires, o posto de informações turísticas da cidade me entregou um mapa com uns duzentos pontos de interesse - principalmente construções e monumentos. Circulei pela cidade na ânsia de ver o máximo que o mapa apontava - e tirava foto de boa parte desses pontos. Em 2006, quando vim com meu irmão para cá, íamos aos pontos turísticos, tirávamos fotos (menos do que em minha viagem anterior), e eu arriscava algumas crônicas. Além dos pontos específicos (Caminito, Recoleta, Casa Rosada, etc), já me despertava interesse o caminho - eu seguia bastante preso à arquitetura. Um casal argentino que conhecemos nos Bosques Petrificados até tirou sarro da nossa cara, dizendo que fazíamos trekking urbano, quando contamos que fomos da Boca a Palermo à pé (por sinal, foi esse casal que nos sugeriu El Chaltén, parte mais legal da nossa viagem). 
Nesta minha viagem atual, pontos específicos são poucos, um ou dois por dia, e a parte mais importante é o caminho. Me prendo à arquitetura, mas também às questões urbanas, às pessoas, aos personagens anônimos do dia-a-dia. Quanto a monumentos, me tocou o monumento a Roca (que eu achei ser a Bolívar), que me surgiu com ares de De Chirico, mas não por ele, e sim pela evocação do pintor que ele e a cidade ao redor, na solidão de um fim de tarde de domingo, me trouxeram. Vendas, mercados, transeuntes me interessam mais. E volto quase a ser o turista desesperado por fotos de quinze anos atrás - a diferença é que agora fotografo com palavras, minha caderneta sempre à mão. Dizia Dominique Wolton que a fotografia está no olhar, não no dedo. Já eu dizia que toda escrita (escrita para além de palavras no papel ou no computador) começa pelo olhar. Agora penso o quanto do olhar não começa na escrita, em alguma narrativa que queremos contar - para nós e para os outros. Tiramos fotos como lembrança (pelo menos na época do filme se dizia isso), porém quantas vezes pegamos os albuns para rever as fotos, sem a companhia de alguém? Acontece, sim, mas vale perder todo esse tempo para guardar algo que poucas vezes vamos nos interessar em relembrar? Será que o mesmo vale para esta série de crônicas, ou ela serve para contar aos outros que estou viajando - assim como quem tira selfie de si em todo lugar? As crônicas de 2006, pensei em relê-las antes de vir. Não o fiz. A única vez que reli algumas foi quando mostrei para uma futura-ex-namorada. Mas me parece que a viagem perde algo se não tenho com quem compartilhar - não sei se a materialidade, o sentido, ou o quê. Na viagem com meu irmão a urgência de fotos e textos era menor, talvez porque o comentário soltávamos na hora. Ou talvez todas estas crônicas sejam força do hábito, uma forma de apreender o que se passa ao meu redor, de dar conta da lógica do choque imposta pelas metrópoles, o olhar ávidospor entender dinâmicas estranhas, reparar em detalhes insignificantes num primeiro momento, e a palavra para não me perder em meio a tantas informações. Enfim termino estes meus questionamentos com o óbvio: escrevo porque gosto, ainda mais diante desse deslumbramento que me causa Buenos Aires.

Buenos Aires, 26 de novembro de 2014