sábado, 14 de fevereiro de 2015

Da vez que acordei morto

Isso nunca tinha me acontecido antes. É verdade. Foi neste carnaval, e o fato de ser em meio a essa festa é apenas uma coincidência sem qualquer significado. Eu ia de São Paulo a Pato Branco. Eram seis e meia da manhã, o ônibus chegara na garagem, em Ponta Grossa, para reabastecer e trocar de motorista. Eu não sei com o que sonhava; sei que dormia gostoso, na profundidade que o excesso de estímulos me permitia: a música em meus fones de ouvido, tentando abafar a música que vazava potente dos fones de ouvido de meu vizinho de viagem - uma versão tampinha do Cássio, goleiro do Corinthians -, com quem eu tivera uma pequena disputa pela demarcação de território antes da viagem começar de fato; o ruído do motor, o barulho do ar-condicionado, a luz que entra de fora pela cortina escancarada; o foco de luz de meu vizinho, o Cássio baixinho, que parece ter medo de escuro; o pra esquerda e pra direita das curvas da estrada, e o próprio "balancinho do ônibus", como diz minha mãe - que me faz perguntar por que alguém paga para usar aquelas cadeiras massageadoras na rodoviária. Pois era esse o ambiente que me rodeava quando (soube disso depois, é claro) o ônibus adentrou a garagem, foi até um canto escuro, onde fica a bomba de combustível e o motorista desligou motor e tudo o mais. De repente me vejo privado de estímulos: há tempos a música havia acabado em meus fones e do meu vizinho, sem motor ou ar-condicionado, sem esquerda-direita nem balancinho, sem luzes de fora e de dentro, diante dessa escuridão silenciosa, desse silêncio escuro, acordo assutado: Putaqueopariu, morri! Ainda grogue de sono, abro os olhos, vejo onde estou e me certifico que, apesar de por um instante achar que não, sigo vivo, sim. Mesmo com todo o alívio, uma sensação desagradável perdura.   

14 de fevereiro de 2015

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Eleições 2014, ainda - ao menos na Grande Imprensa.

Dois mil e quatorze acabou, as eleições, não. É o que dá para deduzir do artigo da diretora adjunta de redação do Valor Econômico, Claudia Safatle, em uma análise carente de lastro na realidade publicado na edição desta sexta-feira, que vocaliza como única verdade os desejos dos donos dos poderes - apresentados na Grande Imprensa como "opinião pública", "opinião de especialista" ou singelamente como "o país".
Diz ela que "Dilma não pode, ao final de dezesseis anos de governo do PT, entregar a economia pior do que Lula a recebeu em 2003, sob pena de condenar o partido à inanição e à morte". O fim do PT é o que canta a oposição desde o chamado Mensalão, mas o que se viu foi o desaparecimento do DEM e o enfraquecimento do PSDB. Achar que o Partido dos Trabalhadores corra perigo de desaparecer é desconhecer sua história e ignorar o presente. Ainda que perca as eleições, o PT conta com uma base forte, ainda que menos coesa e engajada do que na década de oitenta, e por ora nada no horizonte ameaça sua hegemonia dentro do espectro "progressista" da política tupiniquim (por favor, entender esse "progressista" em termos relativos frente as demais forças políticas do país). A explicação para os reiterados erros de previsão é simples: o Brasil, apesar de seus milionários e novos ricos com casa em Miami, de seus coronéis religiosos e midiáticos, segue um país feito de trabalhadores e trabalhadoras que labutam muito e ganham pouco, cuja preocupação maior é de suas contas fecharem no fim do mês, e não as do país. Os "desajustes macroeconômicos" - cuja idéia assume implicitamente que os modelos neoclássicos correspondem à realidade, apesar de cada vez mais desacreditados pelos grandes economistas do mundo -, apresentados como desastrosos, porque dificultam a transferência de renda aos donos dos poderes, são secundários, ao brasileiro médio, diante do emprego recorde e do aumento real dos salários - isso ajuda a explicar a vitória petista, ano passado. Além disso, os porta-vozes dos poderosos são incapazes de compreender a diferença que as políticas sociais petistas fazem, preferindo acreditar na grosseira tese do bolsa-família como curral eleitoral, enquanto os verdadeiros novos coronéis da política - os pastores evangélicos e os barões midiáticos - passam incólume, apenas aumentando seu rebanho de almas-votantes e zumbis-raivosos.
Quem corre mais risco com o segundo governo dilmista é a própria: ao adotar o receituário conservador-reacionário, depois de ter ganho as eleições com um discurso à esquerda, Dilma corre o risco de ser abandonada, no fim de seu governo, pelo partido e pelos movimentos sociais - dizia Maria Inês Nassif, no mesmo jornal, ainda antes da primeira eleição de Dilma, que ela seria a primeira presidente menor que o partido desde o início da Nova República. Sob fogo cerrado da Grande Imprensa, da direita hidrófoba, dos movimentos sociais e das esquerdas, não será surpreendente se o partido da situação apresentar um candidato de oposição, tal como o PSDB e José Serra, em dois mil e dois. O ministério de Dilma dá algumas pistas nessa direção.
Enquanto isso, âncoras, colunistas e formadores de opinião da Grande Imprensa seguem noticiando o que não passa de desejo de seus patrões, na esperança que uma alucinação coletiva traga de volta os bons tempos em que eles não eram incomodados pela malta que serve seus canapés.

01 de fevereiro de 2014.