sexta-feira, 17 de julho de 2015

Tudo o que é leve se desfaz no chão [Diálogos com a dança]

"Dançar na selva de pedra" - foi a leitura feita pela amiga que me acompanhou ao espetáculo Sim, da KeyZetta&Cia, na Galeria Olido. De minha parte, não saí com leitura alguma, e mesmo depois, pouca coisa consegui captar do que o espetáculo pretendia comunicar. Não, isso não é uma crítica ao espetáculo: não quer dizer que não aproveitei ou não gostei, apenas não entendi, não consegui decifrá-los em códigos que me são familiares - e como o estranho, o estrangeiro, me atrai, estar em território desconhecido, me deparar com signos alienígenas pode ser algo prazeroso, ainda que um prazer diferente de quando me deparo com algo que me é familiar.
Este blablablá sobre mim mesmo pode soar egocêntrico e sem muita relação com o espetáculo que me propus comentar, contudo mostra ou uma severa limitação deste escriba ou algo sobre a companhia. Sem negar limitações razoáveis de minha parte, prefiro atribuir o estranhamento ao mérito de Key Sawao, Ricardo Iazetta e demais integrantes. Sim foi o quarto ou quinto espetáculo da companhia a que assisti - já deveria estar, portanto, mais familiarizado com sua linguagem. Sem contar que há um ano e meio sou aluno da Key Sawao.
A KeyZetta&Cia parece sempre disposta a pesquisar e experimentar elementos exógenos ou pouco usuais à sala de espetáculos e a apresentações de dança: sua veia é claramente na performativa, em jogos - questionadores - com o logos ou com o espaço. Sim dialoga com o espaço - e com a própria dança. Logo de cara, causa estranhamento a paisagem de um bosque pintada ao fundo, como cenário - não parece ornar com dança contemporânea. O chão, coberto de pedras brita, também desloca o espectador da sua zona de conforto - inclusive olfativa (daí haver máscaras cirúrgicas para o público se proteger da poeira) e sonora. A união entre esses dois elementos, admito, eu não consegui concatenar, diferentemente da minha amiga - talvez pelas pedras me remeterem imediatamente a estacionamento (não sou da cidade grande, onde shoppings oferecem estacionamentos asfaltados).
E são as pedras, em especial seu barulho, o que mais me chama a atenção: elas dão um grande peso aos gestos, a toda a dança. Me fazem lembrar de um dos meus trechos favoritos de Em busca do tempo perdido, no qual Proust comenta da importância da audição para dar corpo ao que é visto: “quanto ao surdo integral, visto que a perda de um sentido acrescenta tanta beleza ao mundo como o não faria a sua aquisição, é com delícia que passeia agora por uma Terra quase edênica onde o som ainda não foi criado. As mais altas cascatas se desenrolam, para os seus olhos apenas, mais calmas que o mar imóvel, como cataratas do Paraíso. Como o ruído era para ele, antes da surdez; a forma perceptível sob a qual jazia a causa de um movimento, os objetos movidos sem rumor parecem movidos sem causa”
Pode não ser agradável, mas Sim está intimamente ligado à audição, ao barulho das pedras sob os corpos que dançam sobre elas. Assim, todo gesto do espetáculo ganha corpo, esse corpo pesado que o balé clássico tenta fazer esquecer em seus saltos, que muito da dança - ao menos para o senso comum - tenta ocultar com seu ideal de leveza e superação da gravidade. Foi nos solos de Beatriz que essa condição e contradição me saltou aos olhos: seus gestos são leves, o movimento de seus braços me soam aquosos, mas o som desfaz a impressão de leveza que os olhos captam. Não querendo acreditar que aqueles gestos fossem capaz de tamanho peso, desconfio que o chão seja microfonado - minha amiga diz que não, e ela tem razão, uma vez que não há variação na altura do som, esperado conforme se aproxima ou se distancia do microfone.
Saio da Olido sem fazer ligação entre os movimentos dos intérpretes com o cenário e a trilha sonora de bosque com os sutis movimentos de luz com o chão cheio de pedras. A única ligação que consegui fazer foi entre a leveza e o peso - e para tanto, alguma coisa, algum preconceito, algum conceito há muito arraigado, se rompeu.

17 de julho de 2015


quarta-feira, 15 de julho de 2015

1964 e 2015: algumas comparações

É evidente e explícito que parte do Establishment tupiniquim se organiza com vistas ao poder. Há um golpe em curso - que ora parece almejar a destituição da presidenta da República, ora parece se conformar em agir como a Rede Globo, Veja, Fiesp e congêneres, agiram na eleição de 1989, com manipulação, mentiras, terrorismo e tudo aquilo que é de conhecimento público (a quem tem interesse por conhecer algo da história recente do país). Porém, entre desejar e organizar um golpe (e mesmo aplicar um golpe midiático) e achar que a tomada do poder está em marcha, como parte da esquerda vê desde o fim do ano passado, vai uma certa distância. Contudo, mesmo deixando de lado casos folclóricos (como Paulo Henrique Amorim, que vê golpe em cada esquina, parecendo a versão à esquerda de Dennis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia que no início dos governos petistas via comunista em cada poste e ganhava amplo espaço na Grande Mídia, quando a direita ainda buscava um ideólogo com algum estofo intelectual), tanto se fala em golpe que soa conveniente traçar alguns paralelos entre a situação atual e a que antecedeu o golpe civil-militar de 1964 - não por achar que a história se repita, mas porque parte das forças sociais atuantes continuam as mesmas, e seguem agindo de modo semelhante à de cinqüenta anos atrás.
Conforme Caio Navarro de Toledo, em "A democracia populista golpeada", as características principais do país no momento anterior ao golpe de 64 são: "uma intensa e prolongada crise econômico-financeira (recessão e uma inflação com taxas jamais conhecidas); constantes crises político-institucionais; ampla mobilização política das classes populares (as classes médias, a partir de meados de 1963, também entram em cena); fortalecimento do movimento operário e dos trabalhadores do campo; crise do sistema partidário e um inédito acirramento da luta ideológica de classes". Enquanto isso, no sub-continente americano vários governos popularmente eleitos foram, estavam ou seriam desestabilizados e derrubados por golpes de Estado: Colômbia, 1957; Venezuela, 1958; Cuba, 1959 (vale lembrar que Fidel e companhia foram inicialmente saudados pelos EUA, que patrocinou tentativa de golpe contra o regime em 1961); Argentina, 1962 e 1966; Peru, 1962; Guatemala, Equador, República Dominicana e Honduras, 1963; Bolívia e Brasil, 1964 - para ficarmos só em uma década. Atualmente, acompanhamos tensões políticas na Argentina, Venezuela, Chile, Peru, Colômbia, Honduras e México - além da crise no Brasil.
Para além do que foi levantado acima, Dilma, assim como Jango, é herdeira política de um estadista com apuradíssimo faro político, está diante de um congresso conservador e sua base de sustentação nele é limitada. Recentemente, os movimentos sociais - cujos ânimos arrefeceram após a ascenção de Lula - retomaram parte da pauta da sociedade, via Movimento Passe Livre e Movimento de Trabalhadores Sem Teto; enquanto os panelaço anti-PT, assim como a Marcha da família com Deus pela liberdade, são marcadamente manifestações de uma elite (branca) e aspirantes a. Na economia, observa-se uma guinada à direita na economia - então com o Plano Trienal, adesão à ortodoxia proposta pelos EUA para ajuda externa, agora via (Anti-)Plano Levy. A semelhança mais importante a se levantar talvez seja o conluio feito pelas elites locais com apoio do capital internacional, capitaneada por uma direita pouco comprometida com a democracia e seus valores e defendida, justificada e estimulada pela Grande Imprensa - essa descaradamente anti-democrática.
Há, contudo, diferenças, e muitas soam bastante fortes para inibir um golpe de fato - restando a alternativa de golpe via mídia para influenciar as urnas. A primeira e mais visível é que os militares - no Brasil e nas vizinhanças - não têm intervindo diretamente na dinâmica política. Diante das manifestações de março, por exemplo, eu apostaria antes no exército atuando conforme ordens da presidenta Dilma a debandar para o lado golpista - poderiam, com isso, cobrar o fim de investigações sobre a ditadura. Outra diferença: conforme Toledo, no governo Jango, a partir do segundo semestre de 1963, "uma pergunta passou a dominar a cena política: Quem dará o golpe?". Atualmente, amplo espectro da esquerda defende a democracia - inclusive prega seu aprofundamento -, e tanto o governo Dilma quanto o PT já deram reiteradas mostras de respeitarem as regras do jogo democrático, diferentemente do PSDB, que aprovou a ementa da reeleição em benefício próprio e agora fala em destituir a presidenta sem qualquer base legal (não apareceu qualquer escuta em que o principal ministro do chefe do executivo combinava com um subordinado, "no limite da irresponsabilidade", quem seriam os vencedores das privatizações da telefonia, por exemplo). Por fim, outra diferença marcante é que, enquanto o prógono de Goulart havia dado um tiro no peito uma década antes, o de Dilma segue vivo, ativo e forte - mesmo com a campanha cerrada da Grande Imprensa contra Lula há mais de uma década. Inclusive, seu nome é reiteradamente ventilado, tanto pela direita quanto pela esquerda, como candidato a ser batido em 2018 - e seria parte do golpe midiático mudar esse panorama até lá.
Não vejo, portanto, condições para um golpe de Estado neste momento, como apregoam muitos analistas de esquerda - e apologistas de direita. O que não quer dizer que esteja tudo tranqüilo: há um intenso movimento para enfraquecer a presidenta e tirar o PT do comando do executivo federal, se aproveitando do poder desproporcional que a direita possui, graças ao oligopólio da mídia - com o qual tenta reviver a questão de 1964, sobre quem dará o golpe -, e aos aliados na presidência das casas legislativas federais, dois personagens sem qualquer pudor nem respeito pela democracia. Com esse panorama, o PSDB, o Cunhistão e os barões da mídia não deixariam passar a oportunidade de um golpe "dentro das regras democráticas", como foi feito para a aprovação da reforma política ou da maioridade penal. Esperar a tentativa de golpe para então reagir é um modus operandi típico de nossa esquerda super-intelectual. A esquerda está numa situação bastante delicada: precisa defender a democracia sem defender as atuais regras de eleição, que geram esse parlamento abjeto, e sem defender o atual governo - ao menos enquanto enquanto Dilma não decidir dar uma guinada à esquerda e se aproximar dos movimentos sociais, como defende Boulos. É preciso nos anteciparmos: cerrar fileiras pela democracia e pelo seu aprofundamento, defender políticas sociais e principalmente, neste momento, combater a direita dentro do seu próprio campo.


15 de julho de 2015