quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Grupo Corpo, 40 anos: que venham logo os próximos! [diálogos com a dança]

Conheci o Grupo Corpo há cerca de quinze anos, e me tornei fã de imediato. Mais do que isso: foi com o Grupo Corpo que me tornei apreciador de dança contemporânea - a que muito assisto, quase nada entendo (mas mesmo assim palpito) e há pouco pratico. A companhia de Belo Horizonte tem um nível técnico que salta aos olhos - mesmo leigos -, e não se contenta em seguir caminhos fáceis, de garantida aprovação do público - ainda que seja perceptível a linguagem de Rodrigo Pederneiras, coreógrafo do grupo (certa feita assisti a uma apresentação da São Paulo Companhia de Dança, sem saber que uma das coreografias era dele, e ao verificar no programa, ao fim do espetáculo, me surpreendi em ter reconhecido o que achei que era somente "influência" dele). Me pergunto se, alcançado esse nível, e com toda essa história, algum dia o Grupo Corpo produzirá um espetáculo de qualidade questionável - como grupo que se arrisca, há altos e baixos nas suas obras, mas os pontos baixos ainda são de um nível excepcional. Esse prolegômeno todo para relativizar minha afirmação de que saí um tanto decepcionado da apresentação das comemorações pelos quarenta anos da companhia, Suíte Branca e Dança Sinfônica. As duas coreografias - inéditas - apresentadas no programa são boas, bonitas, mas eu esperava mais - reconheço uma expectativa excessiva pela comemoração da data redonda. Me pareceu faltar a elas certa dose de tensão que pusesse o coreógrafo - e o público - em um ponto incômodo, um quê de estranhamento, de conflito. São espetáculos comemorativos e são fiéis à acepção positiva que domina o termo ultimamente: alegres, leves, festivos, harmônicos - isso não deveria ser ruim, eu sei, e talvez não seja, mas a mim decepciona um pouco.
Adeptos de uma estética que tenta trabalhar com pouco e disso extrair muito - a luz simples e de recortes precisos em cenários e figurinos elaborados mas reduzidos ao necessário -, tanto Suíte Branca quanto Dança Sinfônica radicalizam no pouco, mas não logram chegar no muito. Na verdade, invertem certo padrão do grupo, e recorrem a desenhos de luz que parecem tentar preencher o que figurinos e cenários mínimos não dão conta de transmitir.
Suíte Branca inova por não ser uma coreografia de Rodrigo Pederneiras - pelo que pude verificar, a quarta apresentada pelo grupo, sendo a última, de Suzanne Linke, em 1989. Assina-a Cassi Abranches, cria da casa, bailarina do grupo por doze anos. É praticamente uma coreografia-homenagem a Pederneiras, tão evidente é a influência deste. Bailarinos de branco, sobre chão branco, diante de um fundo branco - que remete a papel amassado - e sob luzes brancas. Ao leigo que aqui escreve pareceu um espetáculo com alta dose de exigência técnica, dançada com maestria pelos bailarinos. O excesso de técnica, contudo, não oculta o que parece ser uma falta de propósito - de "alma", como comentou a amiga que me acompanhava. Dançam bem, são muito técnicos e causam impacto sem maiores firulas, mas a que dançam? E por falar em impacto, mais que a técnica, o que me impressionou foi o belo efeito produzido pelas luzes laterais incidindo sobre os bailarinos, que dão a eles algo como luz própria, ao provocarem reflexos sob seus corpos (quando estava apenas um bailarino no palco, cheguei a achar que estivessem usando canhão a baixa intensidade, mas quando entraram os demais, vi que tecnicamente não fazia sentido dois canhões por dançarino). Ou, então, quando os dançarinos, enfileirados lado a lado diante do público, sutilmente vão e vem com seus corpos, produzindo diferentes luminescências do "cenário" ao fundo.
Menos homogêneo nos elementos de palco, Dança Sinfônica - essa, sim, de Pederneiras -, causa impacto de cara, mas parece perder vigor no correr da coreografia. Entram dançarinos de preto, caminhando de costas, sustentando dançarinas de vermelho - em pé. No palco, as pernas da caixa preta substituídas por tecido vermelho e luz quente sob intensidade baixa. Apesar da alta verticalidade, há um peso no gesto. Esse peso, contudo, vai se desfazendo no correr do espetáculo, que, diante de Suíte Branca, abusa de movimentos do balé - pode ser fruto de minha ignorância em dança, mas Cassi me soou mais Pederneiras que o próprio. Dança Sinfônica também é menos harmônico: um elemento branco - frio - surge em meio ao quente vermelho e negro. A bailarina destoante no figurino permite mais facilmente uma leitura ao público mais simples (no caso, eu) - numa chave de diferença-tentativa de assimilação-reafirmação e aceitação do diferente, por exemplo -, mas ainda assim, o clima geral é de harmonia, de diferenças que se entendem sem conflito.
Quanto às trilhas sonoras, elas também quebraram minhas expectativas. De Samuel Rosa, da banda Skank, que compôs para Suíte Branca, eu pouco esperava, mas o som que lembra Explosion In The Sky com toques Beatles foi do meu agrado e criou algo de uma leve tensão com todo o resto do espetáculo - não foi outro elemento de virtuosismo branco sobre branco. Já da obra de Marco Antônio Guimarães, do Uakti, teve um diálogo muito sincrônico com a coreografia, o que reforça minha crítica - sem contar que esperava mais por ser do Uakti.
Talvez minha impressão sobre as coreografias seja fruto de certo amargor que me acompanha e busco encontrar também na arte - ou então de querer achar discursos racionais em tudo, sei lá. Talvez tenha mesmo faltado uma faca no pescoço do coreógrafo, como em Triz. Ou talvez eu simplesmente não tenha entendido nada. O certo é que, dado meus precários predicados em dança, a "análise" acima é descaradamente apoiada em questão de gosto (se alguém quiser ter alguma referência, achei as duas coreografias do nível de Ímã, a que menos gostei até agora; sendo Breu Bach minhas favoritas). E, como digo no título, não deixo de esperar que venham logo novos espetáculo do grupo. De qualquer forma, apesar de tudo o que recém disse, são duas obras de grande beleza estética e que valem ser vistas!


13 de agosto de 2015

ps: para quem chegou ao fim desta crônica, sugiro a leitura de uma boa crítica das danças, dizendo o contrário do que falei acima. Por Helena Katz, "Os códigos sutis dos movimentos sempre renovados".

ps2: nas fotos, dois exemplos (pontuais) da beleza plástica das coreografias



quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Convenção de tatuagem

Convenção de tatuagem: eis um programa que nunca me passou pela cabeça, de modo que achei inusitado o convite. Na verdade, não fora bem um convite: perguntei o que ela faria à tarde, e respondeu que iria a essa convenção e, a seguir, ao show do Tetine. Fui ouvir Tetine, já que a tal convenção pareceu por demais longe do meu universo. Gostei do som, já me preparava para perguntar que horas nos encontraríamos, quando ela perguntou se eu a acompanhava nesse evento heterodoxo para meus padrões. Hesitei. Desde o início uma dúvida que me assomava: o que é uma convenção de tatuagem? Preferi conferir in loco, na esperança de uma crônica - e também pela companhia. Não sei por que cargas d'água eu imaginava algo meio feirinha - com venda de acessórios para a arte, pois minha amiga ia justo para comprar alguns instrumentos de perfuração e piercings -meio acadêmico - com mesas-redondas sobre o tema - , por mais que não me fizesse muito sentido colóquios sobre tatuagens. Também imaginava um sem número de pessoas cobertas o corpo todo por desenhos, e que o branquelo aqui, sem qualquer marca que não cicatrizes de tombos, seria um total estrangeiro no ambiente, identificável à distância. Difícil saber onde errei mais nos meus pré-conceitos. A começar que não havia mesa-redonda nenhuma - me precipitei em concluir. Minha amiga me explicou, depois, que havia, sim, uma série de palestras e workshops, freqüentados pelos profissionais da área, sobre técnicas de tatuagem e piercing, legislação e biosegurança - que o passeio só para ver tatuagens e estilos era coisa mais para o público em geral. De qualquer forma, como grande público, a tal convenção me lembrou muito as Expopato da minha pré-adolescência, com vários expositores de acessórios para modificação corporal e outro tanto de tatuadores em plena ação. Minha amiga - ela própria com umas quinze tattoos - tentava me mostrar os diferentes estilos e escolas de tatuagem, que eu pouco conseguia distingüir, salvo a de pontinhos e a hiper realista, como um cristo que levantava a sobrancelha quando o rapaz encolhia um dos ombros - o que me fez notar, já na convenção, que mesas-redondas sobre o tema são concebíveis, sim. Havia expositores que tinham seu trabalho filmado e reproduzido em telão, tantos eram os interessados. Outros, sem toda essa preocupação com os espectadores, deixavam o povo se amontoar em frente do estande (separado por vidro) para ver seu trabalho - num desses minha amiga explicou que era um bãbãbã, que usava vara de bambu e não o habitual aparelho com barulho de broca de dentista. E se o som de dentista imperava, apesar do batuque de uma escola de samba - outro dos meus preconceitos, eu imaginava punk rock, hardcore ou industrial de trilha sonora, não samba -, um dos estúdios que expunha montou o que parecia uma enfermaria de campanha, com várias macas nas quais pessoas ficavam imóveis enquanto mascarados se debruçavam sobre uma parte do corpo do paciente - tentei pensar uma crônica a partir dessa cena, de que guerra seriam aquelas pessoas vítimas, obrigadas a dupla tortura de dor e barulho de dentista, mas da qual saíam renovadas e felizes. No quesito visual, meu choque também foi grande. Havia, claro, pessoas muito tatuadas - da cabeça aos pés, literalmente -, outras com modificações corporais drásticas - como chifres implantados e brancos dos olhos tatuados -, mas eram exceções, a ponto de vários desses merecerem fotos dos muitos freqüentadores. A maioria que estava lá, se tivesse tatuagens, eram discretas ou sequer apareciam. Pessoas com piercings e alargadores, havia - inclusive um rapaz com dois alargadores no nariz, com quem trombamos tão logo eu havia comentado, estupefato, da foto que eu vira de um guarapuavano que tinha, bem dizer, quatro narinas, duas em cima, duas embaixo -, mas nada que destoasse da rua Augusta num sábado. E lá se foi outro pré-conceito meu quando minha amiga cumprimentou o tatuador do local onde ela trabalha: um homem na faixa dos quarenta anos, sem tatuagem aparente, com um ar de pacato funcionário administrativo (mas tinha algo de satisfeito nesse ar, se não de realizado, com seu trabalho). Outro amigo de minha amiga era um desses personagens com transformações corporais radicais - chifres, branco dos olhos tornados pretos, muitos piercings e tatuagens -, resultando num visual muito agressivo, e uma delicadeza no trato e na voz que eram ressaltados pelas contradições frente os pré-conceitos que este escriba, apesar de tudo, insistia - inconscientemente - em alimentar. No meio da convenção ainda tive tempo de ver a amiga que me passara o Fakebook da Nova Ruth. Lembrei da Misson, que seguidamente me dizia: "Dalmoro, no futuro você vai provar aos seus netos sua porra-loquice da  juventude ao mostrar não ter nenhuma tatuagem ou piercing". Do jeito que vai, parece que a Misson estava certa - ainda que eu critique minha mãe por ter tolhido meus desejos avant-garde de modificação corporal, quando eu tinha onze anos: queria eu pintar o cabelo e pôr um piercing no septo nasal, tal qual cruzei aos borbotões na convenção.

05 de agosto de 2015