sábado, 24 de outubro de 2015

O horror

O horror. Se meus gatos falassem, muito provavelmente teriam usado essa palavra para descrever o que passaram com a utilidade doméstica que recém comprei. Sentimento bastante contrastante com a curiosidade que enfiavam seus focinhos enquanto eu abria a caixa e montava o aparelho - estavam tão interessados que nem notaram que havia o fio da tomada para eles brincarem. Aparelho montado, ligado na tomada, firme em punho, ligo o aspirador de pó. Meu irmão havia avisado que o modelo era barulhento. Eu, contudo, impregnado pela lembrança ensurdecedora do antigo aspirador de pó da casa de meus pais, achei-o barulhento pero no mucho. Não foi o que acharam Mafalda e Guile. Ao ligar, se assustaram - melhor: se atemorizaram. Mafalda foi para baixo da mesa e começou com seu miado curto - quase um latido; Guile correu para debaixo da cama (na minha última temporada na casa dos meus pais, eles aproveitaram minha ausência para abrir um buraco no forro da cama e fizeram ali uma cabaninha, na qual passam madrugadas brincando, quase sem dar trancos que balançam a cama toda). Comecei a limpeza pelo quarto, e Guile tratou de fugir de seu precário esconderijo, achando um local seguro sobre a cama: embaixo da colcha. Mafalda eu não vi até desligar o aparelho - o que não levou muito tempo, dez minutos, se muito, visto que minha casa tem trinta metros quadrados. 
Limpo o filtro, enrolo o cabo, e guardo o aspirador num dos poucos lugares ainda vagos na minha casa: embaixo da pia da cozinha. Vou em busca dos gatos, e tenho certa dificuldade em fazer as pazes - tenho que agarrar o Guile, que foge de mim como se eu fosse o próprio aspirador de pó. Já acalmados, notam o monstro guardado. Mafalda tão logo vê, tão logo sai da cozinha. Guile várias vezes inspeciona - sempre a prudente distância e cheio de cuidados. Dois dias depois, quando vou utilizar o aspirador de pó pela segunda vez, ao me verem com o monstro em mãos, ficam alerta. Ao soar do estrondo, fogem ambos para um lugar escondido e seguro - embaixo da colcha -, e só saem de lá depois do som ter cessado há um tempo. O horror, dá pra perceber em seus corpos.

24 de outubro de 2015
Os irmãos muito bem escondidos em lugar seguro

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A perversidade do discurso da impunidade do menor de idade

Doze de outubro, dia das crianças. A depender de uma parcela considerável da população (considerável não por ser maioria, mas por ser poderosa), em breve estaremos discutindo se as crianças merecem saidão nessa data, ou apenas no natal. Enquanto nossas crianças-soldado morrem sem saber o que é infância e sem a garantia do paraíso por Alá - executados por criminosos com e sem farda -, religiosos, políticos, empresários (quando não os três na mesma figura) lavam uns as mãos dos outros com o dinheiro que toda essa indústria do medo e da punição gera. Na linha de frente, policiais militares apedeutas que executam e repetem o que o governador manda, e criminosos televisivos que durante a tarde e a noite defendem execuções sumárias e destilam discursos de ódio, encampados pelo direito de "liberdade de opinião", que não são opinativos (são criminoso), nem são livres (porque passam longe de ser democráticos). Datena, serviçal de uma das famílias midiáticas brasileiras que rasgam as leis sem pudores, certa feita já nos ensinou que a causa da criminalidade é não acreditar em deus - de onde pode-se deduzir que crianças mortas nas favelas são ateus, enquano Eduardo Cunha não é criminoso. Sargento Fahur, da PM do Paraná, em qualquer país em que o Estado Democrático de Direito é sério, já teria sido afastado de suas funções - ou ao menos de dar entrevistas.
Que não seja para um ano ou dois a redução da minoridade penal, o discurso desses sacripantas televisos, religiosos e políticos é de uma perversidade pouco notada, mas de efeitos reais. Uma professia auto-realizável, dada a força dos setores que a defendem. A justificativa pelo encarceramento de crianças e jovens tem dois argumentos: eles seriam conscientes de seus atos e, conforme a lei atual, eles poderiam praticar crimes impunemente. Quanto ao argumento da consciência, esses senhores ilustrados são de uma desfaçatez vergonhosa; ou então falta eles serem conscientes da realidade social, saber que uma pessoa não se faz sozinha, mas a partir das suas relações - o que não implica em concordar com certa esquerda-Peter-Pan, para quem a condição social é habeas corpus suficiente para crimes. Já no argumento da impunidade eles demonstram sua perversidade.
Ao dizer em rede nacional, em horário nobre, que menor de idade pode cometer o crime que quiser que não é punido, além de ser mentira - por mais que o menor não seja escalado para ingressar o PCC, ele sofre punições, inclusive de privação de liberdade -, esse discurso, repetido diuturnamente faz com que muitas crianças - sem plena consciência de seus atos - acreditem nele e passem a cometer crimes, crentes de que "não serão punidos". Ao repetir o discurso da impunidade, Datena, Cunha, Sgto. Fahur e afins estão, na verdade, chamando jovens e crianças para o crime: "você, jovem que ainda não completou dezoito anos, que sabe que nunca será nada na vida, aproveite agora e tente ganhar dinheiro rápido pra ser alguém. Mas venha logo, antes que você cresça e a polícia te prenda!". Não é difícil jovens de formação muito precária, sem perspectivas, sob o bombardeio da publicidade e do consumismo, se deixarem encantar por esse canto da sereia. Como não são Ulisses atados ao poste, se afogarão.
Ouvi dizer que nas UPPs do Rio de Janeiro, a exemplo do que ocorre nas periferias das grandes cidades brasileiras, o governo distribui balas para crianças - quareta milímetros. "Quem não reagiu está vivo", explica o governador Alckmin.


12 de outubro de 2015.


Bandido bom é bandido morto. Mas só quando o bandido é o Outro.