quarta-feira, 30 de março de 2016

O pedido de Moro pode ser um exemplo para o Brasil [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Desconfio que se Sérgio Porto ainda estivesse entre nós, estaria deprimido com as pérolas que o golpe atual nos presenteia em incessante e extenuante atualização. O humorista carioca veria que bons tempos os de Febeapá diante destes de Fakebook - perto de hoje, o nível dos golpistas e dos debatedores da década de 1960 era um primor. Quem dera que aqueles que hoje praticam diariamente para se tornarem os censores do amanhã - ou os dedo-duros, porque vai faltar vaga -, mandassem prender Eurípides por subversão e comunismo, a despeito de o dramaturgo grego ter conhecido a morte num tempo em que não lhe restava outra alternativa que o primeiro círculo do Inferno (por sinal, quando eu morrer me enviem para lá, por favor); ou então que nobres deputadores propusessem o "dia da avó", já que ninguém lembra dessa figura tão importante nas famílias - assim como o deputado não lembrava que pra ser avó é preciso antes ser mãe. Em 1960 ainda havia os Vietcongs, Cuba e a Rússia para chamar de comunistas, hoje até o presidente dos Estados Unidos vai para Cuba, e aqui só não recriaram o Comando de Caça aos Comunistas porque a Grande Imprensa assumiu o papel de comandante em chefe das proto-milícias brasileiras. 
Tem horas - e não são poucas - que se torna difícil, quase impossível fazer piada com o que temos hoje. Não dá pra fazer piada com policial militar de Geraldo Alckmin espirrar spray de pimenta nos olhos de crianças, em uma operação de reintegração de posse; ou quando um nobre deputado diz que sua colega deveria ser estuprada. Lacerda substituído por Serra, Carpeaux por Olavo de Carvalho (ou seus discípulos), Cony por Sardenberg (atenção para o nível do Cony: dá pra descer sempre!), Nelson Rodrigues por Suzana Vieira. Nessas horas me lembro da frase no final do filme Apocalipse Now, do Coppola: "o horror" - em minúsculas, sem destaque, porque banal.
O que teria alguma graça se mostra repetitivo. E eu mesmo, se não me repito aqui, repito sei lá quantas milhões de pessoas. Mas estou insone e quero escrever.
Pulo eventos já batidos, como os intelequituais do Ministério Público da SS, digo, de SP, que citam Nietzche, Marx e Hegel; pulo suborno feito com pedalinhos, patos de borracha protegidos pela Polícia Militar, ou o Estadão se perdendo da história e achando que o golpe já se consumou, defendendo punição para Boulos, do MTST, por ter cometido o crime de dizer que os movimentos sociais reagirão nas ruas se o golpe se consumar, enquanto eles e seus comparsas estimularem neofascistas a agredirem todo mundo que não babe e não não-pense como eles é democrático.
Por falar nisso, depois que neofascistas alimentados a FGV (Folha Globo e Veja) provaram ser tão democráticos quanto a PM em suas agressões aos inimigos da ordem, batendo em mulher, bicicleta, criança e cachorro, só por usarem vermelho, desconfio que muitos dos moradores dos Jardins tem evitado seus passeios pela rodovia Bandeirantes aos domingos, amedrontados em serem acusados de comunistas e apedrejados por estarem em um carro vermelho, pouco importa que seja uma Ferrari. Mesmo os fãs de Coca-Cola sabem que correm perigo - eu, se tomasse refrigerante, só tomaria guaraná por uns tempos.
Dom Odílio que o diga, agredido dentro da Catedral da Sé, durante uma missa, na semana de páscoa, por uma fiel católica, acusado de comunista. Ainda bem que João Paulo II morreu, ou era outro que corria o risco de ser agredido por ser comunista. Papa Francisco? E desde quando há papa em exercício?
Do outro lado, vejo no Fakebook do Xico Sá uma entrevista com o professor Vladimir Safatle, em que ele condena o golpe de Estado. Cometo o erro de ler alguns comentários. Não preciso ir longe para saber que eis aí outro petista - óbvio!
Na verdade, começo a elaborar uma teoria: a água do volume morto do Cantareira tinha algum alucinógeno e não foi avisado à população (ó, que novidade). Reparem: o pessoal que protesta é aquele que teve água durante todo o tempo de racionamento, digo, subtração hídrica, que só atingiu periferias pobres: foi água alucinógena demais para gente careta e medrosa além da conta, e agora estão vendo de tudo, de comunistas comedores de criancinhas a criancinhas comedoras de burgueses; alguns chegam a jurar que o pato de borracha da Fiesp é a forma pós-moderna do robô dos Changerman, que vieram para nos salvar das ciclovias assassians. Nesse grau de alucinação todo mundo é tudo: Aécio é esquerdista, Lula é ladrão, Serra é porta-voz do governo, Gilmar Mendes é juiz do STF, Boulos é terrorista, Jabor é formador de opinião, a Globo é democrática, Bonner é jornalista, e eu mesmo descobri ontem que sou filho legítimo do Mao Tse Tung com a Brigitte Bardot (sempre desconfiei que houvesse um puxado em meus olhos). Enfim, um verdadeiro festival de non-sense e absurdidades constrangedoras.
Avisei o Xico Sá, ele que se cuide, pois logo será acusado de ateísta evangélico petista de extrema direita careta e drogado que defende o aborto por ter amigo gay e usar camisa amarela num domingo de sol. Como resposta, um simpático usuário involuntário de LSD perguntou como eu classificaria quem ocupa o poder federal atualmente. Pois respondo (aqui, porque no Fake descobri as maravilhas do botão bloquear) usando de literatura: quem ocupa o Palácio do Planato pode ser chamado de: Coisa-Ruim, Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa Ruim, o Diá, o Dito Cujo, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-Sei-Que-Diga, O-Que-Nunca-Se-Ri, o Sem-Gracejos, o Muito-Sério, o Sempre-Sério, o  Austero (não, esse não, se fosse Austero de verdade seria enviado divino), o Severo-Mor, o Romãozinho, Dião, Dianho, o Pai-da-Mentira, o Pai-do-Mal, o Maligno, o Tendeiro, o Mafarro, o Manfarri, o Capeta, o Capiroto, o Das Trevas, o Bode-Preto, o Morcego, o Xu, o Dê, o Dado, o Danado, o Danador, o Diacho, o Rei-Diabo, Demonião, Barzabu, Lúcifer, Satanás, Satanazin, Satanão, o Dos-Fins, o Solto-Eu, o Outro, e por aí vai.
O mais novo absurdo non-sense vem do justiceiro Moro. Inspirado pela repercussão da cartinha do Temer pro Papai Noel, ele escreveu pros chefes do STF, pedindo "respeitosas escusas" por ter desrespeitado, escarrado e feito troça das leis e da Constituição Federal. Na verdade, está com medo de perder o palquinho na Globo e ser obrigado a ganhar seu salário sem trabalhar - o que lhe corta eventuais lucros adicionais de seus atos. Por falar em Globo, os Marinhos tiveram a indecência pornográfica de citar partes da carta em pleno Jornal Nacional, isto é, em horário com crianças na sala e tudo o mais. Até Maluf deve ter ficado constrangido com as "desculpas" do justiceiro da província paranaense, recitadas na hora da janta. Nela, o pueril Moro, dentre outras coisas, se diz surpreso que a revelação de conversas íntimas e irrelevantes de Lula em edições tendenciosas por seus chefes (e ele poderia falar também da prisão, na sexta, dia 04 de março), "possa ter trazido polêmicas e constrangimentos desnecessários", e que "jamais foi a intenção desse julgador (...) provocar tais efeitos", assim como negou que tivesse o intuito de “gerar fato político-partidário, polêmicas ou conflitos”. Isso desde sempre foi óbvio. Assim como a vez que dei uns socos no meu colega de sexta série e fui pra diretoria, também disse que nunca imaginei que iria causar tais efeitos, e que não era minha intenção gerar qualquer conflito, eu apenas liberava ATP de uma maneira intensa e sem querer tinha a cara do amiguinho Rafael na frente - tia Iria, claro, aceitou e me deu até um chocolate como desculpas pelo se mal entendido. 
Prossigo. Tento ver o gesto do juiz Moro pelo lado positivo, pelo exemplo que ele pode dar ao país. Por esse ângulo, noto que pode ser uma forma muito bonita de resolver os conflitos que enfrentamos - e até mesmo os conflitos mundiais.
Diante das desculpas sinceras do magistrado, cabe à presidenta da República pedir desculpa pelas pedaladas fiscais e, pronto, fim de impeachment. Lula pede desculpas por ter um amigo que tem um sítio, e fim das investigações sobre seus pedalinhos. Com isso, estaria resolvida a crise existencial, digo, crise política no executivo. Podemos ir além: o Aécio pode pedir desculpa por não aceitar perder, por bater em mulher, por gostar do Rio de Janeiro mais que de BH e por dirigir bêbado; Alckmin pode se desculpar por transformar a PM paulista em milícia tucana e pelo dinheiro pra educação ter se tornado farta fonte de renda para amigos; o cunha se desculpa por ter roubado, ou melhor, por ser usufrutário de dinheiro de origem ilícita que tropeçou e caiu em sua conta; Mirian Leitão pede desculpas por agir de má-fé e por falar de economia sendo que ela não entende nem uma planilha de Excel; Sardenberg se desculpa por ser quem é, a Globo por ser golpista, o Bolsonaro e o Jabor por serem fascista (o Lobão, sempre ligado para onde o vento sopra, já se desculpou). O Serra pede desculpa por tudo, os que protestam no domingo por sonegarem impostos e humilharem os ppp (preto-pobre-periférico), os ppp por serem ppp, os fazendeiros por desmatarem e por terem escravos em suas fazendas. A Samarco pede desculpas por Mariana e resolvemos a maior tragédia ambiental do Brasil (em termos de intensidade no tempo), não seria lindo?
Em suma: é só os criminosos - dos mais variados matizes e crimes - seguirem o belo exemplo do juiz Moro e se desculparem por terem cometidos crimes, pronto! Todos são filhos de deus, estão todos perdoados. Para melhorar ainda mais: os suspeitos se desculpam por serem suspeitos, os mal-afamados por terem má-fama, e pronto, resolvemos todos - absolutamente TODOS - os problemas do Brasil! Vai ser melhor que tirar o PT do governo federal! 
Moro é mesmo um exemplo pra nação!

30 de março de 2016



sexta-feira, 25 de março de 2016

Breve pausa para novo ataque golpista [O Brasil em tempo de cólera e golpe]

O refluxo golpista desta semana, antes de comemoração inspira atenção. Não que seja uma retirada planejada - parece antes que foram realmente surpreendidos e tiveram que recuar momentaneamente -, mas certamente algo planejam, pois a aposta que fizeram foi alta demais e é difícil - se não impossível - voltar atrás.
Insisto na minha tese de que a entrada de Lula no governo, ainda que passado o momento ideal, foi um contra-golpe genial num golpe que já era considerado como certo por tucanos e marinhos [http://j.mp/cG160316]. Noto pela cobertura da imprensa internacional: até a entrada de Lula no governo, a narrativa estrangeira seguia muito próxima da linha da Grande Imprensa brasileira, tratando a crise brasileira como uma conjunção de crise econômica com crise política causada por um escândalo de corrupção. Desde a semana passada a imprensa internacional vem se descolando da narrativa golpista e buscado entender melhor o que se passa. Ainda falam da crise financeira e da Petrobrás - elas existem, a despeito de qual seja a causa -, porém não tardam a notar que há um quarto poder extra-legal e extra-constitucional no Brasil, que derrotado na vitória tida como certa em 2014, decidiu fazer valer sua vontade, democraticamente apresentada ao país em horário nobre. A desfaçatez é grande demais, a ponto de muitas vezes virar piada: na linha sucessória de uma presidenta chamada de corrupta apesar de não ter nenhuma acusação contra si, notórios corruptos; na oposição, o partido que criou as práticas perpetuadas pelo PT e seus satélites extremistas e limpos como a água do rio Tietê depois de vinte anos e mais de um bilhão de dólares em despoluição. Em tom de sarcasmo ou de denúncia, ficou difícil justificar o golpe ao mundo "civilizado", ou mesmo aos nossos vizinhos argentinos. No plano interno, o PMDB segue discutindo o novo governo, como forma de abastecer o noticiário de fofocas, e tucanos já até prepararam uma festa de inauguração do Novo Governo em Portugal, num pretenso congresso de direito. As ameaças de Temer e Cunha já não causam o mesmo frisson de quinze dias atrás - Lula articula com os principais caciques da sigla, e o silêncio destes tem sido suficiente para não permitir sorrisos largos de Bonner e congêneres na cobertura da crise política. Dilma, por seu turno, saiu finalmente para o combate, e denuncia dia sim, outro também, o golpe em curso, tentando acuar os golpistas. Entretanto, o principal trunfo no plano interno do contra-golpe foi a força demonstrada nas manifestações contra o golpe e pela democracia organizada pelo PT, dia 18: ali ficou claro aos golpistas que haveria enfrentamento sério, e por mais que eles queiram dizer que mobilizaram mais pessoas no domingo, sentiram no moral o desmoronar da crença global de que eram praticamente unânimes.
O alerta de que vêm mais golpe baixo por me despertou uma mensagem no Fakebook de Eduardo Kawamura, que desconheço quem é e o que faz:
"Spoiler: O novo governo já está planejado. Ele até será defendido em Portugal no final de março (aliás, com o nosso dinheiro). Há quem tenha ficado feliz com os editoriais dos grandes jornais afirmando o caráter 'perigoso' da atuação do Moro para o estado democrático de direito. É apenas a terraplanagem do golpe. O governo Dilma cai, a Lava Jato será duramente questionada pela imprensa, a Lava Jato acaba... Ninguém contava, porém, que alguém iria divulgar a lista da Odebrecht que inclui TODO o 'Novo governo'. A imprensa terá muito trabalho para fazer a lista desaparecer da memória dos brasileiros (ou não)."
Realmente faz muito sentido: as manifestações de domingo, dia 13, seriam a comprovação da vontade popular de fim do ciclo petista - e praticamente do PT - e a volta dos homens direitos e probos e da meritocracia (ganha mais quem pode mais). O juiz/justiceiro/jagunço Moro já havia alcançado seu objetivo e era hora de fingir distanciamento e denunciar exageros pouco antes do golpe, para quando consumado, dar um fim a qualquer perigo a quem não fosse petista, e atestar que não era de ocasião a crítica à Lava Jato. As ruas dia 18 contradisseram os donos da voz, Odebrecht denunciou mais do que a Lava Jato queria saber (ainda não se sabe se as doações são legais ou ilegais, vale ressaltar), o vazamento seletivo vazou errado, Janot deu uma prensa em seus subordinados e Teori Zavascki decidiu pôr um freio ao coronel Gilmar Mendes (eu ainda me pergunto o que falta para tirar esse criminoso do STF e julgá-lo como ele merece) e seu pupilo paranaense. O pior para os golpistas não é isso: como disse, a aposta na queda de Dilma foi alta, e está difícil dar o passo atrás: a manutenção da ordem democrática pode significar não o fim do PT, mas o fim do PSDB (com possível crescimento de uma extrema-direita puro sangue, como o PSC); o corte de vez de verba federal para a imprensa que tentou derrubar Dilma (a tentativa da presidenta, ao assumir, de fazer as pazes com essa imprensa através de publicidade oficial merecia ser destacado ao fim desse imbróglio todo), além do acirramento de cobranças pela cassação da concessão pública da rede Globo.
PSDB, coronel Mendes, Rede Globo e demais patrocinadores do golpe têm muito a perder com a manutenção da democracia e não vão, portanto, se entregar tão fácil. Não consigo imaginar os próximos passos, gostaria de estar errado, mas penso que logo vem mais chumbo grosso contra o PT, a esquerda e a democracia.


25 de março de 2016.