domingo, 29 de maio de 2016

Temeridades - notas sobre o governo golpista (1)

Michel Temer. A imprensa chama Temer de "presidente interino" ou "presidente em exercício", forma de dar a impressão de legalidade ao golpe de Estado que ele encabeça. Eu prefiro não usar eufemismos nesse caso, e chamo logo de "presidente golpista" ou "presidente em exercício do golpe de Estado". Enfim, Temer, nosso presidente golpista, parece ser mesmo a pessoa certa pro momento, um político síntese dos golpistas: eleitoralmente fraco, sem apelo popular mas com apelo junto aos donos da grana e da Grande Imprensa, politicamente forte; apreço zero pela democracia e tudo o que ela representa (povo, pobres, direitos humanos, liberdade, cultura) e dez pelo poder.
Nas últimas eleições que disputou, para deputado federal, em 2006, Temer foi o último dos políticos eleitos pelo PMDB, com cem mil votos. Isso, a princípio, não quer dizer muito: em geral políticos que encampam bandeiras de minorias - como direito dos negros, das mulheres, dos homossexuais, dos quilombolas, dos sem-terra, dos sem-teto, dos que perderam parentes assassinados pela polícia militar, etc - não conseguem votações expressivas, como artistas de tevê, jogadores e cartolas de futebol, ou políticos apoiados por igrejas evangélicas ou coronéis rurais dos sertões brasileiros, e chegam à câmara pelo quociente eleitoral. Ocorre que Temer não encampa qualquer bandeira de minoria. Minto: encampa a bandeira do 1% mais rico, aquele que controla as finanças e o país - o que ele não admite publicamente, claro, diz que age em prol dos "interesses da nação". Temer pode não ter qualquer base social, penar para ganhar eleição, mas sabe se mover no ambiente político, onde tem força desde os anos FHC: em 1997 chantageou o então presidente: ou era eleito presidente do congresso ou não haveria aprovação da emenda da reeleição, que tanto interessava a FHC. Nos anos Lula, se tornou importante aliado do PT - as chantagens, no caso, não foram públicas -, a ponto de ser alçado a vice na chapa com Dilma Rousseff.

Depois de ter conspirado contra a presidenta, fazendo ser aprovado um impeachment que ele mesmo dizia que não havia qualquer base; rejeitado pela maioria da população em pesquisas de opinião, com 1% de intenções de voto em simulações de eleições, Temer assumiu o poder prometendo união e salvação nacional. Não explicou que nação ele quer unir e salvar: seu slogan de governo usa a bandeira da época dos militares e o site WikiLeaks divulgou documentos secretos dos EUA que dizem que o presidente golpista foi informante dos EUA. Extinguiu o principal órgão de combate à corrupção, a Controladoria Geral da União, e aprovou uma lei que proíbe qualquer manifestação onde ele esteja ou "possa ir", sob justificativa e "segurança nacional" (ou seja, qualquer manifestação pode ser enquadrada como perigosa à segurança nacional, ajudada pela lei anti-terrorismo sancionada por Dilma). Foi além: montou um ministério que fica "ombro a hombre" com qualquer gabinete conservador do segundo reinado: homens, brancos, proprietários, heterossexuais (mas, para provar que não são escravocratas, apenas racistas, demitiu o garçom negro que trabalhava para a presidência da República); nenhuma mulher, nenhum negro, nenhum mulato ou pardo, nenhum gay: chamaram isso de "meritocracia" (imagine o bafafá se Dilma tivesse montado um governo só de mulheres, ou só de negros, ou só de homossexuais, ou, pior, só de mulheres negras e homossexuais: nunca admitiram que era um ministério baseado no mérito, ainda que fosse tanto quanto o de Temer). No seu ministério "de notáveis", segundo ele, nove são investigados por algum crime de corrupção; seu ministro mais forte, Romero Jucá (PMDB), não durou dez dias e caiu depois de divulgado áudio em que ele articulava, em março, o impeachment de Dilma para estancar as investigações Lava Jato (ó!, que novidade); o Ministro das Relações Exteriores, José Serra (PSDB), é outro informante dos EUA, conforme papéis dos Estados Unidos divulgados pelo WikiLeaks; o da saúde, Ricardo Barros (PP) defende o fim da saúde universal e o fim do controle dos planos de saúde; o da educação e cultura, agora só educação, Mendonça Barros (DEM), foi contra Fies, Prouni, cotas e grande parte das propostas que ajudaram a incluir milhares de jovens no ensino superior brasileiro; o ministro da justiça e dos direitos humanos, Alexandre de Moraes (PSDB) conseguiu na justiça, quando secretário de Geraldo Alckmin, o direito da polícia militar usar armas letais (isso, pode ir armado de pistolas que criminosos usam pra matar) contra estudantes que protestavam contra o governador; o de desenvolvimento social e agrário, Osmar Terra (PMDB), já falou em cortar o Bolsa-Família; o das cidades, Bruno Araújo (PSDB), já suspendeu 11 mil casas do Minha Casa Minha Vida; e do da economia, Henrique Meirelles (ex-PSDB e egresso do sistema bancário), vimos "medidas necessárias", segundo os especialistas: corte de verbas para programas sociais e aumento de recursos para pagar os especuladores e os bancos (aqueles, que nunca se corrompem, apesar de toda o dinheiro de corrupção passar pelo sistema bancário, o suíço, que seja). E isso que só foram 15 dias de governo!

29 de maio de 2016

PS: este texto é parte do artigo "Breve apresentação de personagens para a compreensão do golpe de Estado no Brasil em 2016.", a ser publicado no Boletim SPM Informa, do Serviço Pastoral dos Migrantes, de junho de 2016 (www.casuistica.net/spminforma)

O presidente com o apoio "de todos os brasileiros" sai assim de casa

sábado, 28 de maio de 2016

A cultura do estupro somos nós no nosso dia-a-dia.

"And we love the abuse because it makes us feel like we were needed". (E nós amamos o abuso, porque ele nos faz sentir como se fôssemos necessários)
A música de Marilyn Manson me veio à mente diante da notícia do crime contra a garota no Rio de Janeiro, e da sua repercursão. Gosto das músicas e das letras do rockeiro, cutucam feridas que não queremos reconhecer, e essa é uma das que considero mais precisa - mais ainda nesta semana em que tanto se fala em "cultura do estupro". Trinta homens violentando uma garota não é mostra de cultura de estupro, é uma aberração. A cultura do estupro somos nós no nosso dia-a-dia.
Ouso dizer que antes de ser um "crime bárbaro", como classificou o presidente em exercício do golpe ou a grande imprensa, foi um crime banal. Ganhou notoriedade por terem sido muitos, mas desconfio que a dor da garota seria a mesma se tivesse sido apenas um o estuprador. Ou até pior, porque para boa parte da sociedade ela seria só uma fria estatística, enquanto a outra parte - forças de segurança e líderes espirituais incluídos - a acusaria de ter provocado o criminoso. Ninguém teria trocado sua foto no Fakebook e o presidente golpista ou ministro da justiça (de conveniência) e dos direitos humanos (para os humanos direitos) não teriam soltado uma linha de pesar - seria um avanço se soltassem um malufismo. Talvez sequer seus parentes soubessem do acontecido - quem sabe uma hora não suportasse a dor na alma e preferisse resolvê-la atacando a própria carne, como a estudante de direito da PUC-SP violentada que se suicidou. Sejamos sinceros: nossa reação ao caso não é ao estupro, é a um número que nos assustou. Segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio, são três casos diários de estupro no estado - e é sabido que esse número é absurdamente sub notificado. A cultura do estupro é não apenas nossa indiferença quotidiana à violência simbólica que desemboca, enfim, na violência física e sexual do estupro, como nosso ignorar a real dimensão do problema e apontar o dedo sempre para o Outro - o que nos alivia de qualquer responsabilidade.
Vi postagens acusando a "objetificação da mulher na publicidade", como se só a mulher fosse objetificada na publicidade, e não a vida toda; como se estupro fosse uma violência exclusiva de homens (seres do mal?) contra mulheres. Ainda que seja esse o caso habitual (ou talvez o que conseguiu ganhar notoriedade, graças à luta das mulheres), o estupro é a violência de uma pessoa contra outra, mais fraca: crianças são estupradas, homens são estuprados (a maior causa de suicídio e tentativas de no exército estadunidense não é por traumas de combate, mas por trauma decorrente de estupro), transexuais são estuprados e estupradas; e os estupradores são na maioria das vezes homens, mas não raro mulheres também cometem estupros. A cultura do estupro não é conseqüência do machismo - o machismo antes marca o algoz e a vítima preferenciais -, é conseqüência de uma sociedade toda ela falida.
A cultura do estupro está na objetificação de toda pessoa: vejo a cultura do estupro na faxineira negra que ganha oitocentos reais pra limpar a merda alheia e me pede desculpas por ter me tratado por "amigo" e não por "senhor" ao perguntar as horas. É a cultura do estupro manifesta em estado puro e hipócrita na elegia à "bela recatada e do lar" da primeira-dama do golpe (não tenho absolutamente nada contra uma mulher querer ser recatada e do lar, o problema é isso ser um modelo). É a cultura do estupro que nega à prostituta (de luxo) a autonomia e a liberdade de decidir o que fazer com seu corpo - inclusive vendê-lo para prazer alheio. É cultura do estupro a meritocracia do governo golpista Temer, feito de homens brancos ricos heterossexuais escravocratas. É a cultura do estupro manifesta todo início de ano nos trotes universitários, que subjugam novatos por esses estarem acuados e indefesos diante da turba sedenta de afirmar seu poder (nem entro no machismo, homofobia, misoginia, racismo e outros elementos sempre presentes nos trotes). É a cultura do estupro defender violência para combater violência (neste furor logo me lembro de tantas amigas que elogiam o código das prisões contra estupradores), sexismo para combater sexismo, preconceito para combater preconceito (por favor, sem essa pataquada de preconceito reverso). É cultura do estupro uma pessoa homossexual se ver forçada a se comportar como hetero - casada, com filhos e sorrindo o sorriso da frustração nas fotos de família. É da cultura do estupro achar que o Outro é culpado e nós (espectadores passivos e passionais de toda violência quotidiana) somos inocentes, quando não as verdadeiras vítimas, no lugar de quem sofreu a violência. E nós amamos o abuso (do outro), porque nos faz sentir como se fôssemos necessários. É cultura do estupro a "dilapidação do corpo do outro", como marcou Joel Birman, que vê no Outro um objeto-corpo para sua satisfação. É cultura do estupro nos oferecermos como esse objeto-corpo para um Outro que tampouco vemos como sujeito. E nós amamos o abuso (o nosso), porque nos faz sentir como se fôssemos necessários. É a cultura do estupro a repressão sexual e impedir que o assunto seja tratado em sala de aula e na sala de jantar, e que força jovens a se educarem e formarem seu repertório de fantasias via vídeos pornô. É a cultura do estupro colocar negro pobre preso a poste e louvar pau-de-arara e torturador. É a cultura do estupro achar normal a polícia cometer assassinatos extra-judiciais referendados pelo governador do estado. É a cultura do estupro estar antes preocupado em punir o criminoso do que garantir o bem-estar da vítima. É a cultura do estupro querer impôr padrões de comportamento sexuais - e não falo aqui do heteronormativo. É a cultura do estupro o aluno da rede privada mandar o professor calar a boca porque está pagando, ou o diretor da escola pública forçar o aluno a receber a palavra de Deus - depois isso será replicado na garota de programa que tem que aceitar tudo porque está recebendo. É a cultura do estupro a Polícia Militar "conversar" com quem faz protesto político. É a cultura do estupro essa frustração com nossa vida que levamos sem pensar (para não sofrer) e que nos faz desejar o abuso, porque nos faz sentir como se fôssemos (minimamente) necessários.
Corto para alguns exemplos banais. Uma garota me contava que estava "carente de um amor", queria um namorado, mas ele teria que estar preparado para ter gastos: "uma namorada custa dinheiro", e pouco depois marcava sua contabilidade: "sai bem mais caro que comer puta de vez em quando". A cultura do estupro: somos mercadorias expostas à espera do próximo comprador. No metrô ouço algumas pessoas conversando de suas tretas com atendentes de fast-food, uma delas reage ao dizerem que ela pega pesado: "isso é nada, precisava ver Fulana, que já cuspiu na cara da caixa, que não tem problemas em pegar o catchup e jogar no atendente". A cultura do estupro: o Outro não é sujeito e não tem direito a dignidade (e nem fui para exemplos mais pesados, como a higienização social). Na Unicamp, anos atrás, ouço no Bandejão rapazes condenarem (de leve) um amigo por ter embebedado uma colega de sala para que transasse com ele: "fazer isso com puta tudo bem, com amiga é sacanagem" [http://bit.ly/cG13414]. Também na Unicamp, quase saio no braço com uma feminista-acadêmica quando ela comemora que atentado violento ao pudor passe a ser tipificado pela lei como estupro: "você não sabe o que é uma passada de mão na bunda, estraga a noite!", justifica sem argumentos: eu não apenas sei o que é tomar uma passada de mão, até mesmo uma encoxada na noite (e não foi evento isolado), como também imagino que isso, ainda que seja uma violência, seja muito mais leve que um pênis te penetrando à força. A cultura do estupro: a falta de medida, em que estuprar uma amiga é "sacanagem" (uma puta é absolutamente nada, elas estão ali para isso, não?) e em que passar a mão e ser violentada é visto como uma mesma violência. O Metrô de São Paulo (controlado pelo partido do ministro da justiça (de conveniência) e dos direitos humanos (para os humanos direitos) do governo golpista), não vê problema em mulheres serem encoxadas, acha que é até motivo para peça publicitária jocosa; ou então assume que ou homens são carentes de controle racional da sua libido ou mulheres são perigosas sedutoras incontroladas ao proporem o vagão rosa. Voltam atrás por conta da pressão de algumas pessoas que, essas, sim, não coadunam com a cultura do estupro - a cultura do estupro autorizada pelos políticos no poder ou que o aspiram, por Geraldo Alckmin, Alexandre de Moraes, Micher Temer, Luciano Huck, Jair Bolsonaro, Paulo Maluf e tantos outros, que ocuparam ocupam e pretendem ocupar o poder (via eleição ou via golpe, tanto faz).
Aos que acharam esse um crime bárbaro, sinto dizer: eram trinta homens armados com armas de fogo e celulares, que doparam uma garota para abusar sexualmente dela. Não há nada de barbárie nisso: é parte do retrato da civilização que conseguimos construir até o momento nestes Tristes Trópicos.

28 de maio de 2016.

PS: queria ter escrito sobre, ainda ano passado, não consegui. Faço breve menção aqui: as campanhas mais interessantes e efetivas que vi contra a cultura do estupro vieram do #MeuPrimeiroAssédio e #MeuAmigoSecreto: para desmantelar a cultura do estupro é preciso, antes de tudo, mostrar onde ela se encontra.