quarta-feira, 8 de junho de 2016

Mariana Pineda deveria Temer o futuro? [O Brasil em tempo de cólera e golpe]

Me assusto com a velocidade com que o tempo passa ultimamente - não digo do tempo das horas, mas o tempo da história. Um ano e meio atrás, em novembro de 2014, eu escrevia sobre a peça Cantata para um bastidor de utopias, da Cia do Tijolo, como sendo uma peça sobre nosso passado - cujas marcas em nossa sociedade ainda são presentes [http://bit.ly/cG14119]. Decido ouvir as músicas do espetáculo, que em 2015 teve o lançamento de livro e cedê, quando em cartaz no TUSP - faço isso às vezes, mas em geral me centro na segunda e na última faixa, "Dia triste em Granada" e "Ainda cabe sonhar", respectivamente. Desta feita deixo o disco avançar. As músicas da peça transcorrem na Espanha que poderia ser o Brasil pós-64 - nada de novo. No terceiro ato, na cena entre o investigador-juiz Pedrosa e a conspiradora pela república, Mariana Pineda, começo a notar que a peça, de 2013, hoje fala mais do presente que do passado:
"PEDROSA - Mariana! [pausa. Corta mais um fio] Uma bela mulher como a senhora não sente medo de viver só?
MARIANA - Medo? Nenhum, senhor Pedrosa!
PEDROSA - Há tantos liberais e tantos anarquistas em Granada, que o povo não vive seguro. A senhora sabe!
MARIANA - Senhor Pedrosa! Sou uma mulher de meu lar e nada mais!
PEDROSA - E eu sou o juiz. É por isso que me preocupo com estas questões. Desculpai, Mariana, porém já faz três meses que ando louco sem poder capturar um dos cabeças..."

Pedrosa, o juiz, à caça de um dos cabeças dos que conspiram contra o rei e querem implementar a república na Espanha (apenas pra lembrar, do latim: res=coisa publica=do povo). Mantenho a rubrica de "corta mais um fio": nessa hora, fios cruzam todo o palco, num emaranhado que remete a ruas, mas também a relações. Leio agora, três anos depois da estréia, o golpe de Estado dado no Brasil e uma ditadura se desenhando num horizonte próximo: remetem também aos direitos: um fio a menos, um direito a menos, uma chance a menos de escapar disso que se auto-denomina justiça. Os fios que limitam nossos movimentos em sociedade, acabam por ser também os fios que nos protegem dessa mesma sociedade. Mariana deve temer viver só não apenas por causa de liberais e anarquistas, como também por dever temer o Estado, o rei, o juiz.
Presa, Mariana é condenada à morte, mas pode se safar, se colaborar com a justiça:
"PEDROSA - Senhora, já é hora. Sabe qual é a sentença?
MARIANA - Sim, sei, mas imagino ser mentira. Tenho o pescoço curto para ser justiçada. E para que eu morra toda Granada teria de morrer?
PEDROSA - Eu não quero que morras, mas com a minha assinatura posso apagar o lume de seus olhos. Com uma penada e um pouco de tinta, fazer que adormeça um longo sono. Fale logo, que o rei daria indulto. Quais são, diga seus nomes. Vamos, fale! Com a justiça não se joga assim.
MARIANA - Não falarei. Quem é que manda dentro da Espanha vilanias destas? Que crime cometi? Por que me matam? Nessa bandeira de liberdade bordei o amor maior da minha vida e hei de permanecer aqui trancada? Hei de morrer?
PEDROSA - Mariana, pela força há de dizer, os ferros doem muito e uma mulher é sempre uma mulher.
MARIANA - Não falarei, já estou morta. Que sono mais longo sem sonhos nem sombras. Pedro, eu desejo morrer pelo que tu não morres, morrer pelo puro ideal que iluminou teus olhos, a liberdade.
PEDROSA - Queres morrer!
MARIANA - Não falarei, não quero que meus filhos me desprezem! Eu quero que meus filhos tenham um nome claro como a lua cheia! Eu quero que meus filhos tenham um respledor no rosto que nem anos nem rosto poderão apagar. E se eu delatasse, pelas ruas de Granada, este meu nome seria dito com temor."

Os tempos são outros, é certo. Não vivemos mais uma época de heroísmos ou idealismos: os perseguidos pela nossa ditadura-em-construção-via-judiciário não são presos por lutarem por nobres ideais - talvez o líder tenha alguns ideais a mais, certa vaga e tímida noção de coisa pública para todos, e é por isso que têm tanta gana e tanta dificuldade para agarrá-lo -, e antes da forca, preferem, sim, delatar (e eu, homem do século XXI, não os critico por isso). Forca, aqui, apenas como força de expressão: no século XXI não cabe bem a quem usa toga sair matando a torto e a direito (para isso existe polícia militar ou grupos de extermínio). E essa talvez seja uma diferença importante nas formas de torturas praticadas por forças do estado: quando a vida está em jogo, o jogo dura pouco: Mariana Pineda delata ou morre. Vladimir Herzog delata ou morre. Às vezes o torturador falha: Dilma não delatou e não morreu - pelo contrário, virou a algoz de seus próprios carrascos, impotentes diante do "sexo frágil" fragilizado e exposto que eles não conseguiram vergar (o voto de impeachment de Bolsomico foi mostra desse ressentimento dos sádicos impotentes). Nas delações atuais, ninguém teve a vida (biológica) ameaçada, ninguém foi posto sob a aporia "delate ou morra".
No século XX, os ferros contra o corpo são importantes: eles marcam a vida da vítima até a morte, que pode ser logo, se preciso for. No século XXI, os ferros estão presentes, mas ficam à distância, restringem a liberdade sem tocar a vítima: o corpo se mantém são, mas confinado: o preso é culpado por ser suspeito - nada de novo diante dos regimes totalitários do século passado. As delações premiadas que o senhor Moro consegue colher acontecem na mais estrita liberdade, em tudo o que há de ambíguo na palavra "estrita". O corpo, esse não sofre de fora: Odebrecht, Machado, Cerveró, ninguém levou um soco, um choque, nada: seus corpos seguem inviolados: no século XXI descobriu-se ser mais efetivo violar a humanidade (claro, isso não vale para quem já tem sua humanidade violada desde o nascimento, essas "quase-pessoas" que o Estado considera sem valor e sem direitos, torturados e assassinados pela Polícia Militar por serem sobras humanas, numa reedição pós-moderna dos infiéis da idade Média e Moderna, a se crer no beneplácito que o papa-óstia-mor de São Paulo dá às execuções extra-judiciais praticadas pelos seus subordinados). Violar a reputação, violar os direitos, violar a humanidade - não o corpo, marca visível do Antigo Regime e dos regimes totalitários e ditatorias do século XX. Se este sucumbe, é por fraqueza do suspeito-por-conseqüência-culpado, não por ação dos carrascos - minha mãe me lembrou, quando ficou escancarada a esbórnia judiciária em cima da Constituição federal, com a divulgação de áudios ilegais da presidenta da república (de bananas), que Dilma e Lula padeceram de câncer recentemente, e situações de estresse podem desencadear o retorno (agressivo) da doença. Por ora, essa tática ainda não surtiu o efeito desejado pelos manifestantes da camisa canarinho.
Outra marca de pós-modernidade no nosso golpe atual, que torna uma fala de Pedrosa démodé: quem é o rei que nos rege, ou que esta esperando ser içado ao trono? Quem é o rei que dará o indulto aos delatores? Temos os juízes do rei, Coronel Mendes e justiceiro Moro à frente, mas a serviço de quem eles agem? Das leis - e, conseqüentemente do povo, da democracia, do Estado de Direito -, é pornograficamente explícito que não se trata. Do presidente golpista, o pusilânime Micher Temer (por sinal, sua pusilanimidade é um prato cheio à extrema-direita golpista), ou dos social-democratas-defensores-do-golpe, tampouco. Os irmãos Marinho e a rede Globo, apesar de posarem de majestade, não têm cabeça para sustentar a coroa. Estaria no estrangeiro? Não creio - não apenas no estrangeiro. E ainda que se ache um grupo a quem toda esta nossa farsa seja encenada, não há um rei, não há o rei. No lugar do rei, entidades, forças sempre faladas (e efetivas), mas ocultadas na sua concretude nas palavras dos ideólogos desses mesmos ídolos, como bem definiu o teólogo Jung Mo Sung: os mercados, os investidores (sic), os empresários (rubrica na qual são incluídos rentistas e especuladores).
Ao cabo, fica difícil não atribuir a realeza ao monsenhor Capital - já desvendado em sua teologias desde Marx. Atribuir ao capital (nacional e internacional, financeiro e "produtivo") o atual golpe e ditadura-em-construção é simplista, admito, e pouco explica. Contudo, enxergar a situação atual - em que o golpe não possui (ao que se percebe) uma coordenação centralizada - como uma confluência de interesses determinados em última instância pelo capital (que não é só riqueza, é também - e principalmente - poder), ajuda a entender quem tem e terá direito ao indulto do rei (ou seria de deus?), quem não - é por isso, por exemplo, que Temer pode ser presidente (golpista) da República Bananeira do Brasil. E quem acha que querer discutir o capitalismo e suas "externalidades" em pleno século XXI é ter parado no tempo, bem vindo ao século XIX: convém rever a foto do gabinete do presidente golpista - homens brancos heterossexuais ricos escravocratas fazendo uso do Estado para interesses oligárquicos e particulares - e, mais, ler algumas das propostas futuristas desses aliados sobre papel da mulher (incluído aí direito ao corpo e a questão do aborto), trabalho escravo, educação, saúde, pena de morte...
Mas não falemos em crise, que só o trabalho liberta.


08 de junho de 2016

Democracia e representatividade do Brasil no século XIX, versão século XXI

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Setes mergulhos [diálogos com a dança]

Acostumado a ver os intérpretes se porem à prova no meio da rua ou com o público no palco, Abissal, vai na direção oposta das últimas obras da iN SaiO Cia. de Arte, de Claudia Palma. Desta feita os artistas não estão na rua, em campo aberto para descobrir até onde vai a arte; tampouco o público não está junto, imiscuído aos artistas, mas é posto muito próximo do que foi delimitado como palco - e os artistas, quando não no palco, se tornam eles também público (visível para o grande público). "Delimitado como palco" porque, apresentado no Espaço Missão, do Centro Cultural São Paulo, o grupo teve liberdade para decidir por onde seus intérpretes circulariam. A escolha do Espaço Missão foi interessante, por ser um ambiente imerso, que deixa explícito o tempo todo que estamos abaixo do chão - e estamos todos, artistas e público, no mesmo nível. Sensação geográfica que coaduna com proposta de Abissal: o mergulho de cada intérprete-criador em suas paisagens internas. E esse mergulho está realmente presente, tão presente que, admito, vi não um, mas sete abismos próprios: talvez eu não tenha sido capaz de perceber o fio que percorre todos os artistas e dá alguma unidade a suas danças: com cada um mergulhado em seu abismo não consegui ver o estabelecimento de interação ou diálogo entre eles - realçado pela falta de contato físico. Danças individuais, duos de isolados. O abismo-palco todo iluminado do início ao fim não consegue tornar os intérpretes habitantes de um mesmo momento, apenas corpos ocupantes de um mesmo espaço, e tampouco dá impressão de distanciamento entre eles. É apenas um palco iluminado, que causa um estranhamento e uma expectativa ao se chegar: que abismo é esse, feito de claridade? Ainda mais que chão e a parede de fundo são claros - um prato cheio para se trabalhar com sombras. E foi pelas sombras que criei enorme expectativa - frustrada, o que influenciou na minha percepção geral da obra, admito. Aparecem poucas vezes, sem dar a impressão de terem sido pensadas, nem mesmo notadas positivamente: notei possibilidade de algo a la De Chirico nas sombras do chão, ou da multiplicação dos intérpretes em sombras-fantasmas na parede do fundo; mas foram espasmos de possibilidades. A nudez do espaço aumenta a responsabilidade dos intérpretes e seus abismos, único foco de atenção, passado o momento inicial de aclimação ao abismo-palco. Não decepcionam, tampouco arrebatam. Mergulham, mas não (me) abismam.

03 de junho de 2016


PS: não tem qualquer relação com a dança ou com a companhia, mas como cito o CCSP, apenas reitero meu desacordo com o processo de higienização social (a la Sesc) empreendido pelo Centro Cultural São Paulo durante a gestão Haddad [http://bit.ly/cG140528].

PS2: trocando impressões com uma das artistas do grupo - a partir deste texto, e além -, descobri que entendi errado o folder (e, creio eu, que nem tanto a apresentação): o que assisti foi a uma abertura de processo e não ao espetáculo dado por concluído - daí, creio eu, algumas das lacunas que levantei.