segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Limpar a cidade

Em minha última crônica [http://bit.ly/cG170103] falei da técnica oriental de limpar o chão, que aprendi com a Bia Sano, durante a residência artística que fiz com o dançarino Eduardo Fukushima, e que fez com que criasse uma outra relação com o local de ensaio, que me irmanasse dele. Do ato de limpar, arrisquei em minha crônica, seria possível estabelecer novas relações, com o espaço e com as pessoas - para muito além de não jogar lixo no chão.
Nada mais distante disso que as aparições populistas do lobbysta e grileiro de terras, atual prefeito de São Paulo, João Doria Junior. 
Se a técnica japonesa faz despertar uma atenção cuidadosa pelo local que freqüentamos, permitindo percebê-lo em outras dimensões - até mesmo afetivas -, e dando chance para que nos abramos ao novo, o gesto de Doria Junior vestido de gari, empunhando uma vassoura pela primeira vez na vida, para ser fotografado por publicitários travestidos de jornalistas, não desperta atenção, não desperta cuidado, não desperta abertura, não desperta valorização de nada que não da figura do prefeito e da sua concepção de "cidade linda" - limpa, higienista, sem pobres, sem discordantes ou dissonantes, sem povo, e ainda com Romero Brito e Bia Doria.
Vestido para o trabalho reificado - o de gari -, Doria Junior passa o recado de que agora ele vai comandar um exército de faxineiros, prontos para limpar a sujeira feita pelos cidadãos de mal - aqueles que emporcalham a cidade jogando lixo ou com sua simples presença. O horário de seu primeiro happening midiático também foi propício à mensagem a ser passada: seis da manhã. Deixa avisado: logo cedo, durante a madrugada, antes da maioria das pessoas saírem de casa, será feita a faxina da cidade daquilo que fere o bom gosto dos cidadãos de bem. Não por acaso, alguns outros atos de "embelezamento" da cidade consistiram em esconder moradores de rua e criticar pixadores - desconfio que se ele desse a cada pixador os valores que sua mulher ganhou do governo, via leis de incentivo, para fazer "arte", o pixo sucumbiria vertiginosamente.
Perguntas retóricas: que abertura teve o prefeito para a cidade? Que olhar teve para os moradores de rua que vivem sob viadutos - sem dúvida uma questão das mais complexas a ser lidada, já que muitos preferem morar na rua? Que relação afetiva é capaz de ele criar com a cidade que vê passar pela janela de seu Audi de 200 mil reais (novo, já que não está na sua declaração de bens da campanha)? Conseguiu minimamente entender algo da vida daqueles garis que ganham por mês menos do que ele gasta em um almoço, e que fizeram figuração no seu show? (Tenho medo de resposta afirmativa a essa pergunta, e por isso ele achar que o salário de um gari é o suficiente, até demais).
Ficássemos por aqui, e eu até diria que está tudo bem, o populista tacanho de antanho repaginado de playboy semi-collorido. Convém lembrar, entretanto, que Doria Junior não é apenas representante da direita, ele é o atual novo nome da extrema-direita brasileira deste início de século - junto com seu padrinho, o Santo Alckmin. Se em 1930 usava-se a retórica de "ratos", atualmente a palavra da moda da extrema-direita é "lixo", usada para desqualificar o diferente e negá-lo não apenas a humanidade como o direito a ser considerado um vivente. É para esse cidadão de bem (que defende chacinas e atrocidades e logo mais estará aplaudindo câmaras de gás) que Doria Junior se veste de gari - convém lembrar, mesmo depois de eleito, ele não abandonou o palanque e o discurso de ódio que foi um dos que embasou sua campanha -, mais que para os órfãos de Jânio, Adhemar de Barros e Paulo Maluf.
As imagens de Doria Junior de gari, fingindo que varre, me fizeram lembrar das suspeitas de que o Papa Francisco andava se disfarçando de padre anônimo, para dar acolhida a sem-tetos, nas madrugadas romanas. Propaganda é arma da direita. Não por acaso, mancheteia a Folha de São Paulo, um dos porta-vozes da extrema-direita brasileira, no dia seguinte à posse do prefeito: "Doria assume SP, promete conciliação e diz que recuará quando necessário". Fosse sincera, a manchete seria: "Doria assume SP, defende adesionismo irrestrito e diz que recuará quando isso afetar sua imagem". Quem sabe não possamos, finalmente, mudar o hino da cidade para aquela canção dos anos 80 que tão bem encarna o fascismo paulista: "Dentro de mim sai um monstro/ Não é o bem, nem o mal/ É apenas indiferença/ É apenas ódio mortal/ Não quero ver mais essa gente feia/ Não quero ver mais os ignorantes/ Eu quero ver gente da minha terra/ Eu quero ver gente do meu sangue". Em algo concordamos: "Pobre São Paulo/ Pobre paulista".

09 de janeiro de 2017


sábado, 7 de janeiro de 2017

Limpar o chão

Lembro das imagens de torcedores japoneses recolhendo seu lixo no estádio, durante a Copa de 2014. A imprensa corporativa destes Tristes Trópicos apregoou como prova da civilidade nipônica em contraposição ao atraso brasileiro, enquanto algumas pessoas mais críticas diziam que era reflexo de um país onde fora superada a separação arcaica Casa-Grande/Senzala, Senhor/Escravo, em que um suja e os outros limpam. Nenhuma das explicações me satisfazia, mas eu não sabia exatamente o porquê.
Sobre a pretensa civilidade japonesa. Que é um gesto de civilidade recolher o lixo, sem dúvida; mas daí dizer que um país com vagão rosa no metrô - por conta de violência sexual contra mulheres -, altas taxas de suicídio, e boa parte da economia controlada pelo crime organizado seja um país civilizado, eu teria um pouco de cautela. Nossa elite e sua porta-voz midiática, desde sempre colonial e colonizada, não esconde seu desprezo por tudo o que cheire a povo, assim como não consegue disfarçar seu deslumbramento ingênuo com aquilo que vêm dos países centrais. Como comenta Frantz Fanon, em Os Condenados da Terra: "A burguesia colonialista, quando registra a impossibilidade para ela de manter a sua dominação sobre os países coloniais, decide fazer um combate de retaguarda no terreno da cultura, dos valores, das técnicas, etc" (p. 61), reforçando com isso a idéia de que "a espécie dirigente é primeiro aquela que vem de fora, aquela que não se parece com os autóctones, 'os outros'" (p. 57). Para nossa elite e seus asseclas, a civilidade está sempre no exterior e este povo xucro dos trópicos dificilmente dará conta de aprender a se comportar decentemente.
A outra explicação corrente, de que o brasileiro jogaria lixo no chão por estar acostumado a ter quem limpe pra ele, é uma variação à esquerda, com leves toques sociológicos, do biologicismo das elites. Ainda que seja de grande auxílio, não há causalidade entre fazer a limpeza e não sujar. Fosse assim, todo profissional de limpeza seria muito asseado, mas sei de muitos que não são: o mero trabalho alienado de limpar não faz ninguém ter consciência de não sujar - até porque a lógica do "tem quem limpe" se mantém, e esses esperam o subalterno que possam humilhar [http://bit.ly/cG161230]. Ademais, sei de muitas pessoas que nunca fizeram uma faxina na vida e ainda assim se preocupam em não sujar, em recolher seu lixo dos locais públicos, etc. Posso estar enganado, porém não acredito que todo europeu faça a faxina de sua casa - idealmente seria lindo, mas me soa irreal. Fazer faxina ajuda muito a melhorar a percepção do que suja, o quanto suja, o quanto custa limpar algo. Ouso dizer que esse tipo de "civilidade" é uma questão de consciência, de reflexão e auto-reflexão, de empatia com o Outro que vai limpar, mais do que ter "sofrido" pessoalmente.
Entretanto, desconfio que o exemplo japonês está muito além desse utilitarismo rasteiro de que falei acima. Tal desconfiança me veio da residência em dança que fiz com o Eduardo Fukushima, assistido pela Beatriz Sano (já escrevi crônica sobre a experiência [http://bit.ly/cG161221]). Em certo momento, a Bia nos introduziu a uma técnica japonesa de limpar o chão: uma série de exercícios em que limpamos o chão sem rodo, apenas pano e as mãos. Contando, parece exercício banal, e cabe até mesmo perguntar por quê forçar pernas e costas se há rodo - e pessoal da faxina. A ligação com a cena que descrevi no início da crônica também parece óbvia: tal técnica nos ensina a ter consciência não só de não sujar como de manter limpo - no Japão, os próprios alunos fazem a faxina da escola [http://nao.usem.xyz/9tmd]. 
Não passou por aí o que aprendi com ela. Não sei por onde isso opera, mas limpar o chão conforme as regras dessa técnica, desde o preparo até as formas de esfregar o pano criaram uma outra de relação entre mim e a sala de ensaio - que seria também a de apresentação. Não por acaso, tive a impressão que a partir de então consegui me sentir muito mais à vontade para dançar e pude entrar com outro espírito (e outro corpo) na coreografia - foi como me irmanasse do espaço, rompendo com a lógica funcional que é o meu (nosso) natural. 
Empolgado com esse efeito, passei a limpar minha casa também conforte essa técnica, com algumas adaptações, claro, visto que não se trata de um amplo salão vazio e sim um apertado apartamento cheio de tranqueiras e móveis e dois gatos curiosos. Ainda que tenha sido menos drástica, por eu já possuir uma relação afetiva com meu lar, algo mudou na minha relação com meu espaço - dos pequenos mistérios que a razão não dá conta.
A partir dessa técnica ensinada pela Bia, também dos últimos tempos nestes Tristes Trópicos, tenho me posto a pensar na nossa relação não apenas com o Outro, com o que é público (aqui sinônimo de ninguém, Oudeis), mas com os espaços que nos cercam, com o que nos é familiar. Somos estrangeiros em nossa própria terra, ressentidos que ela não é a imagem idílica que a Suécia nos vende de si. Somos estranhos em nosso próprio lar, não criamos laços, não nos reconhecemos em nosso trabalho alienado, em nossas ações não menos alienadas, em nosso lazer desesperado, em nossas conversas sem profundidade, em nossos bibelôs e souvenirs sem história. E nos eximimos de qualquer responsabilidade atribuindo a culpa sempre ao outro.
Talvez uma alternativa para reverter esse quadro seja não apenas nos afetuarmos, mas nos irmanarmos dos lugares que freqüentamos - em especial os quotidianos. Uma das questões é como fazer isso num país ainda de espírito colonizado e mentalidade calcada na exploração do Outro, até sua aniquilação; de cada vez mais absolutização de valores parciais (como cristãos (sic), em especial evangélicos) e agudização da intolerância e da violência simbólica e bruta. Definitivamente, não sei. Tenho a impressão que nos irmanarmos dos locais freqüentados implica também em nos irmanarmos daqueles que o habitam e o freqüentam. Mas surgem novas questões: quantos de nós estão dispostos a sair do seu comodismo umbigocêntrico e se arriscar no desconhecido? Quantos ainda sabem o que é se irmanar, o que é se afetuar de algo ou de alguém e se deixar afetar por isso?
Nenhuma resposta me vêm, outras perguntas me surgem. Eu apenas sugiro experimentar limpar o chão da própria casa sem o rodo.


03 de janeiro de 2017