terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Literatura, publicidade e queijo

Todo mundo sabe que uma das funções da publicidade - imprescindível para a sobrevivência do sistema capitalista de produção de lixo sob o qual vivemos - é a criação de pseudo-necessidades, falsos desejos nos cidadãos do espetáculo. O "todo mundo" do início é forma de dizer: na verdade poucos sabem e entendem tal mecanismo, e mesmo entre os conhecedores, não raro esquecemos e vamos na onda da propaganda. Pois digo que a literatura também é criadora de necessidades e desejos alienígenas em seus leitores - e não me refiro à necessidade de mais literatura que as boas obras ensejam. Não que isso me seja novidade: quando entrei em filosofia, no início do século, obrigado a cursar uma língua clássica, optei por latim e não por grego, apesar de meu maior interesse por Atenas frente a Roma: é que latim era a língua falada por um dos Buendía, em Cem Anos de Solidão, do García Marquez, por isso a escolha (e só não me tornei um latinista por obra do destino que me pôs, logo no segundo semestre, nas mãos de um professor claramente perverso, que tinha como objetivo de vida desestimular qualquer aluno que se destacasse).
Nas últimas duas semanas o livro que esteve a mexer com meus desejos foi Queijo, de Willem Elsschot. Nunca tinha ouvido falar do livro, muito menos do autor: comprei-o numa dessas feiras de dois reais. O que me levou à aquisição, além do preço irrisório, foi a apresentação do Marcelino Freire - esse, sim, eu conheço. Por ser de bolso e de capítulos pequenos, escolhi pra ser minha literatura no metrô. Trata-se da história de um escriturário de um estaleiro, Franz Laarmans, que de repente se torna empresário, ao ter a oportunidade - arranjada por um amigo influente - de ser o representante de queijo holandês para a Bélgica e o Grão-Ducado de Luxemburgo. Boa parte do livro é Laarmans a abrir sua firma e tentar comercializar os cremosos queijos edam, vindos diretos da Holanda. Várias cenas Elsschot descreve o cremoso edam sendo cortado e oferecido a amigos, aos filhos, a clientes. E eu, apesar de não ter idéia do que seja um queijo edam, adoro queijo e fiquei a salivar diante de várias páginas. Me vinha à mente um queijo que eu vira com minha mãe, fim do ano passado, quando a levei para conhecer a zona. Era uma embalagem bonita, em que se via um queijo mais amarelo e firme por fora, e cremoso por dentro. Hesitamos em levá-lo, e preferimos um garantido emmental. Esta semana, tentado pelos cremosos edam da Grapfa, fui à zona (cerealista, se é que alguém ainda não havia entendido) comprar o maldito queijo, que não era um cremoso edam holandês - na verdade, nem edam, nem holandês, mas era cremoso. Por sorte, também não era dos mais caros.
Mal chego em casa, abro a embalagem. Estou salivante, desejoso. A embalagem não é de metal, como aparentava com o rótulo, mas de plástico. O queijo está envolvido em outro plástico. Ao tirá-lo, o cheiro não é ruim, tampouco dos melhores - tudo bem, os edam da Grapfa fediam muito, segundo o narrador de Queijo. Corto uma fatia, o queijo é cremoso por dentro e firme por fora, como mostrava a embalagem. Mas a tal fatia não mata minha vontade: por fora, um queijo mussarela de qualidade ordinária; por dentro, um composto de prato e mussarela e sei lá o que mais que lembra um requeijão. Não é que seja ruim, só não é bom. Quer dizer, é ruinzinho, ainda que não incomestível - eu devia ter desconfiado pelo preço. Olho para o queijo que resta: é uma peça de novecentos gramas - calculo que vai ser difícil dar conta dele. Para piorar: falta apenas um capítulo para eu terminar o livro, vou ter eu mesmo inventar ou lembrar de alguma historieta com queijo cremoso que me desperte vontade de encarar esse frustrante que comprei.

PS: ao buscar foto para esta crônica, descubro o que é um edam: parece um emmental.

24 de janeiro de 2017


domingo, 22 de janeiro de 2017

Teorias conspiratórias

A morte do ministro Teori Zavascki em momento tão oportuno aos golpistas (ainda que o ministro não fosse nenhum grande homem dentro do STF), num país de reiterados acidentes oportunos aos detentores do poder, não deixou de levantar uma série de teorias da conspiração. Nada mais natural,. Algumas, porém, soam um tanto excessivas.
Me contou uma amiga que faz um curso de férias: sexta, já meio pro final da aula, tendo vencido o conteúdo antes do tempo, sobrando minutos para assuntos diversos, a professora resolveu tocar no tema quente do momento, a morte do relator da Lava-Jato. Perguntou se achavam se era mero acidente, ou havia sido planejado. Uma das alunas de pronto defendeu a tese de assassinato. Conhecedores de suas posições políticas, todos olharam para ela intrigados: será que teria, não pensado, que é demais, mas saído da bolha? E se até ela estava admitindo a tese de morte planejada, sinal que a coisa estava descarada e o golpe começa a perder seus apoiadores ingênuos. Ainda descrente, a professora reiterou a pergunta, se ela achava mesmo que havia sido assassinato, e ela, convicta: "É óbvio! Está claro que foi a mando do Lula!". 
Tão claro como a luz que a lua emite. Inteligência manda lembranças.

22 de janeiro de 2017