quarta-feira, 8 de março de 2017

Porque negros seriam marionetes de brancos?

O Diário do Centro Mundo, do jornalista Paulo Nogueira, faz a chamada para o texto de Cidinha da Silva, anunciando "a nova marionete negra do MBL", uma missionária angolana, negra, que papagueia clichês de extrema-direita, usando sua negritude como local de fala para legitimar tais posições - afinal, se uma negra está falando...
Deixo de lado Ruth Catala, a missionária do ódio, e a estratégia manjada e eficiente do MBL, que se aproveita dessa legitimidade como ator político construído a duras pelas pelos movimentos de minorias para minar as próprias minorias, e me centro no texto de Cidinha.
Seu texto sofre de um péssimo cacoete dos movimentos de minorias com pé na academia, em que a política é substituída pela epistemologia, na (vã) esperança de alcançar uma verdade e com isso vencer o debate público, e ontologizam (ainda que pela esquerda) aspectos eminentemente políticos. Dizer que Ruth Catala, assim como Fernando "Holiday" Silva, são "marionetes do MBL" é de um preconceito equivalente de quando a classe média formada nos cursos mais disputados da USP fala que "nordestino" (esse ente genérico que mora do meio de Minas Gerais para cima) não sabe votar e vende seu voto pelo "Bolsa-Família do Lula".
Que sejam utilizados pelo MBL, não há dúvida; a questão é: também eles não se utilizam do MBL? Ruth Catala ainda é uma tentativa, mas Fernando Holiday Silva mostra que ele foi feliz no seu intento.
Se tivesse se unido ao movimento negro em busca de mais dignidade para todos, qual a possibilidade de Holiday estar ganhando hoje 15 mil reais por mês, de poder pedir que a GCM proteja suas "criancices" fascistas, ao invés de estar tomando geral da PM toda vez que resolvesse se divertir inocentemente à noite, de ser conhecido e reconhecido em todo o país como uma celebridade política do espetáculo? Ainda que preste um desserviço aos negros, às atuais e futuras gerações, ao Brasil, é preciso admitir que pessoalmente ele se deu bem, muito bem - e Ruth Catala percebeu e tenta vencer na vida pelo mesmo rumo. O fato de serem negros não os tornam menos responsáveis pelo caminho que decidiram tomar, não os tornam menos pulhas pelo discurso de ódio que proferem. 
Achar que negro que ataca negro é mera marionete de branco é recusar aos negros sua condição de sujeitos; e há sujeitos mau-caráter entre negros assim como há entre brancos, entre mulheres como há entre homens, entre gays como há entre heteros: somos todos do mesmo barro, a cor da pele não cria uma forma particular de pensar, a condição de oprimido não beatifica ninguém, pertencer a uma minoria não é automaticamente um despertar da consciência de sua condição e de seus próximos.
Paulo Freire mofa nas prateleiras da esquerda (talvez mais que nas da direita) à espera de ser relido. Não é a reforma do Ensino Médio proposta pelo golpista que gerou essa situação (muito menos que vai mudá-la): quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor. O conhecimento produzido por pesquisadores preocupados com seus índices de produtividade (condição para seu sucesso pessoal acadêmico), confinados em campus distantes da população, cercados, normatizados e vigiados, até agora pouco tem ajudado na libertação de uma massa que sobrevive com rebarbas da opressão escravocrata - por sorte, fora da universidade, por sua própria coragem e vontade, a população resiste e reage, ainda que a custo de sangue. Se Catala e Holiday são sujeitos e chegaram aonde chegaram, isso é graças às lutas do movimento negro. Mas enquanto o nosso foco estiver em epistemologizar questões sociais, em vencer pela episte o que é uma doxa, em achar que a ciência vai superar a política, esta seguirá com sua soneca tranquila, para deleite da direita. 

08 de março de 2017



Texto da Cidinha da Silva no DCM: http://bit.ly/2mlmQ7N


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Mãos ao alto: o imposto é um assalto!

Na Globo, em toda Grande Imprensa, comentaristas de economia e "especialistas" explicam que o Brasil não cresce e que um trabalhador brasileiro já ganha menos que um chinês por culpa da elevada carga tributária. Na internet, circulam correntes com dados falsos falando que o brasileiro trabalharia mais de 2 mil horas - o dobro de um boliviano - só para pagar impostos. No centro de São Paulo, a Associação Comercial tem um "impostômetro" a dizer quantos bilhões os brasileiros teriam pago até então em impostos. Curiosamente, os comerciários não têm um "sonegômetro", e é sabido que são poucas as lojas, os postos de gasolina, os prestadores de serviço que dão nota fiscal se você não pede (mas o valor do imposto está incluído no preço). Também é curioso que as listas de quanto se trabalha para pagar imposto nunca incluem Alemanha, França, Itália, China, Noruega, é sempre Mauritânia, Chade, Senegal, Vietnã, Bielorrússia, países com economia e IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) bem abaixo do Brasil - coincidência? E se imposto baixo fosse condição de crescimento de renda e emprego, Suriname (27%) e Paraguai (35%) seriam as maiores potências das Américas, e não os Estados Unidos (44%, segundo o Banco Mundial. bit.ly/vaivem11901).
Para que servem os impostos?
A função primeira dos impostos é simples: fazer o país funcionar. É dos impostos (e não da caridade dos homens ricos) que vem o dinheiro para o estado funcionar; são os impostos que pagam o salário dos políticos (dos corruptos e dos honestos), dos juízes (dos corruptos e dos honestos), dos policiais, dos professores, dos médicos, dos assistentes sociais, dos funcionários todos; é dos impostos que vem o dinheiro para construir estradas, escolas, hospitais; é dos impostos que vem a aposentadoria, o Bolsa-Família, a compra de remédios, de merenda escolar.
A segunda função é menos evidente, principalmente em países como o Brasil: os impostos servem para tornar a sociedade menos desigual, por isso quem ganha mais paga (deveria pagar) mais que quem ganha menos.
Há ainda outras funções. Por exemplo, a elevada carga tributária sobre bebidas alcoólicas e cigarros serve para tentar desestimular o consumo desses itens prejudiciais à saúde, além de ajudar a financiar a saúde pública. Nessa linha, a Organização Mundial da Saúde, da ONU, sugere a criação de impostos para alimentos industrializados pouco saudáveis (bit.ly/vaivem11902)
A carga tributária no Brasil é alta?
Na imprensa falam o tempo todo que o brasileiro paga muito imposto. Será mesmo? Realmente, não é baixa, mas se comparado com países desenvolvidos ou em situação semelhante, os impostos no Brasil estão dentro da média. Além do mais, vale lembrar que enquanto os países da Europa ocidental têm boa parte de seus problemas de infra-estrutura e bem-estar social bem encaminhados, o Brasil ainda figura no mapa da fome (obra do senhor Michel Temer e do PSDB) e carece de estradas, hospitais, postos de saúde, universidades, escolas, creches...
Quem paga os impostos?
Aqui é o grande prolema dos impostos no Brasil: ao contrário do que acontece nos EUA, na China, na Europa, no Brasil quem ganha menos paga mais impostos - proporcionalmente. Isto é, enquanto os ricos pagam pouco mais de 1/5 do que ganham por ano em impostos, classe média e os mais pobres entregam 1/3 dos seus rendimentos. Isso acontece porque a principal fonte de arrecadação é indireta, ou seja, imposto sobre consumo, e não direta, como imposto de renda, sobre herança, sobre propriedade ou sobre o lucro e dividendos de quem tem ações - inclusive, não há esse imposto no Brasil. Não por acaso, a ONU diz que o Brasil é o "paraíso tributário para os super-ricos" (bit.ly/vaivem11903), sendo que com isso o Brasil deixa de arrecadar R$ 43 bilhões por ano dos mais ricos (bit.ly/vaivem11904).
Outro problema brasileiro é onde se aplica o dinheiro dos impostos: em 2014, 45% do que foi arrecadado foi utilizado para pagar juros e amortizações da dívida, enquanto educação e saúde receberam juntas 7,71%, e a previdência social, 21,8% (bit.ly/vaivem11905). O que se gastou em um ano com juros dava para ter pago dez anos de Bolsa-Família (bit.ly/vaivem11911)!! E a tendência é aumentar esse número, com a aprovação da PEC do teto dos gastos públicos.
Para deixar claro que o problema do Brasil não é o quanto se paga de impostos, mas quem paga mais e onde esse dinheiro é aplicado, a tabela abaixo traz a comparação com alguns países.


Imposto sobre produtosImposto de Renda Pessoa FísicaImposto – empresasIDH (posição)Índice Gini - desigualdade (posição)

bit.ly/vaivem11906bit.ly/vaivem11907bit.ly/vaivem11908bit.ly/vaivem11909bit.ly/vaivem11910
Brasil19%27,5%34%0,755 (75)52,8 (13)
EUA0%40%39%0,915 (8)41,06 (63)
Alemanha19%47%30%0,916 (6)30,13 (133)
Japão8%56%31%0,891 (20)32,11 (120)
Dinamarca25%55%22%0,923 (4)29,08 (137)
Espanha21%45%25%0,876 (26)35,89 (88)
China17%45%25%0,727 (90)42,06 (60)
Índia15%35%35%0,609 (130)33,9 (104)
Mauritânia18%40%25%0,506 (156)37,48 (81)
Bolívia13%13%25%0,662 (119)48,06 (24)
Senegal18%40%30%0,466 (170)40,28 (67)


Texto para o Boletim Vai Vem e SPM Informa, do Serviço Pastoral dos Migrantes.

27 de fevereiro de 2017