sábado, 29 de abril de 2017

Fetichizar o pobre para esconder a própria pobreza.

Em artigo na Carta Capital, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, comenta as repercussões da pesquisa da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, sobre a "periferia liberal". Não retomo o texto, recomendo sua leitura integral [http://bit.ly/2oFsIvg]. 
Contudo, uma frase dela me pareceu lapidar e emblemática: "nosso fetiche mesmo são os pobres". 
Do porquê desse fetiche, ela levanta algumas possibilidades, como o desejo de poder: delimitar o que o pobre é (seria), o que ele gosta e precisa, e conseguir convencê-lo dessa narrativa - ao menos em parte - ajuda a garanti-lo como massa de manobra para interesses outros - à esquerda e à direita. Foi a tática de dominação colonialista denunciada por Franz Fanon, e ainda hoje a pleno vapor - apenas em versões um pouco menos explícitas. Eu arrisco outra: afim à mentalidade da casa-grande e da academia tupiniquim (seu braço intelectual), faltam aos pesquisadores de boa índole o interesse (e talvez a capacidade) de realizar auto-reflexão e auto-crítica: daí a escassez de pesquisas quando o objeto é a classe média ou alta: presa a um eu ideal, nossa elite intelectual tem medo de se deparar com o vazio que a habita e a mediocridade que produz - viver na ilusão é mais gostoso. Pinço dois exemplos que presenciei em meus longos (e ainda incompletos) anos nos bancos acadêmicos.
O primeiro foi em uma atividade de greve, se não me engano em 2004. Uma professora de história da Unicamp solta que ela é uma proletária como todos os trabalhadores do Brasil, a exploração que ela sofre é a mesma que o terceirizado da limpeza. Soa absurda, mas a comparação foi exatamente essa: um professor universitário concursado, com estabilidade e autonomia, salário inicial de dez mil reais (hoje), que faz parte do 2% mais rico do país, estaria em situação igual à de alguém nos 40% mais pobre, um trabalhador terceirizado, precarizado, instável, com direito a uma folga semanal, e olhe lá, usando uniforme quase igual aos dos presidiários que trabalhavam na universidade, com rendimentos que ao fim de um ano serão equivalentes a um mês dos da professora. Alguns alunos esboçaram indignação, mas a autoridade de seus títulos e o respeito de seus pares (ainda que boa parte marxista que adora falar da classe proletária) calaram esses incautos (dentre os quais este escriba). Talvez por acharem que estão em pé de igualdade com os faxineiros que professores universitários possam afirmar qualquer aura superior aos dos reles trabalhadores, explícito na recusa de participar do sindicato dos trabalhadores. Só falta afirmar - talvez o segure pudores esquerdistas - que sua posição seria fruto exclusivo de seu esforço, de seu mérito.
O segundo exemplo é de um antropólogo com quem morei. Seu objeto de estudo do mestrado era narrativa de moradores de rua. Foi em 2012. A rua Augusta ainda começava seu processo de "gourmetização": predominava ainda botecos baratos, inferninhos mambembes, casas de show descoladas e diversificada fauna social. Esse colega de casa certa feita me perguntou como eu suportava freqüentar a Augusta, ao invés de ir para os bares da Vila Madalena ou Pinheiros. Imaginei que sua preferência fosse pelo fato do público freqüentador da zona oeste ser mais homogêneo: universitários classe média-alta e jovens adultos bem-sucedidos, geralmente brancos, meio intelectuais, meio de esquerda, como nós dois. Nada disso, antes da minha resposta, emendou sua incompreensão: a Augusta era cheia de mendigos enchendo o saco pedindo dinheiro. Então era assim: ele encher o saco dos pobres e ganhar dinheiro com isso, tudo bem, é ciência, é para o bem da nação e dos pobres, por mais que eles não saibam - mas nem por isso não devem deixar de atender o pesquisador branco com diligência e prestatividade. Ele ser incomodado por esses mesmos pobres, pedindo dinheiro, um cigarro ou atenção, aí é encheção de saco (reconheço que boa parte das vezes incomoda, mas já tive ótimas conversas com essas pessoas). Entendi ali sua objetividade cientifica: não apenas distanciamento com seu objeto de pesquisa, mas desdém, mesmo - um meio para alcançar um fim particular, e que se joga fora depois de usado, como um objeto descartável qualquer, copo plástico, hashi de madeira ou pessoa pobre. Achei apenas incompleto seu raciocínio: faltou defender áreas de confinamento para mendigos e moradores de rua não incomodarem os cidadãos de bem. 
Me empolgo e dou um terceiro exemplo, esse mais breve. Muitos dos colegas de IFCH idolatravam Criolo, quase choravam ao cantar Não existe amor em SP, mas ficavam indignados, diziam que ele tinha pisado na bola em Sucrilhos, quando diz "Cientista social, Casas Bahia e tragédia/ Gosta de favelado mais que Nutella". Desde sempre me perguntava dessa decepção que a música acarretava: pisado na bola ou no calo? Sempre calei, para não perder a amizade - ego de acadêmico é algo grande e frágil.
Sem negar relativa importância dessas pesquisas acadêmicas sobre pobre e pobreza em geral, raros são os intelectuais egressos da academia que conseguem chegar perto das análises de Mano Brown. Ele não tem instrumental teórico fundamentado, não tem pressupostos epistemológicos claros, falha fragorosamente no distanciamento científico; tem apenas vivência, empatia, conhecimento prático e sem se achar melhor que seus manos das quebradas, apesar de sua percepção arguta e da sua inteligência afiada, ele não fetichiza o pobre. E mais que isso: Mano Brown sabe como se comunicar com parte dessa população. Daí a necessidade de estigmatizar o rap e tudo a ele relacionado, a excluí-lo da grande imprensa, salvo em versões pasteurizadas classe média - como Gabriel O Pensador, na década de 90, contraponto branco e elitista aos versos que se fazia nos guetos. É nessa lógica que se insere a cruzada de Doria Jr. contra o graffiti e o pixo, dito explicitamente em seu preconceito e ódio ao pobre pelo seu secretário de cultura (sic), André Sturm: "Quero que o artista do Capão Redondo possa viver do que ele faz, mas não limitá-lo ao Capão Redondo. Por que eu não posso levá-lo para São Miguel, Santana ou Pirituba? E até para o Teatro Municipal? Claro, se ele for um rapper, não, mas de repente ele é um músico, um artista que posso levar ao CCSP". Sem maiores comentários.
À elite intelectual branca, de esquerda, classe média, média-alta, talvez junto com a coragem de se olhar no espelho sem idealismos narcísicos venha a necessidade de rever os princípios que seu garantem relativo capital simbólico: o conhecimento produzido pela universidade e pelas regras científicas é mais um, importante, porém longe, muito longe de prescindir de uma fala de Brown, Ferréz ou outros, anônimos, mas dotados de uma capacidade de observação aguçada - pobres ou ricos. Reconhecer que seu objeto de estudo possa ser sujeito - sem ninguém a tutelá-lo ou a legitimar sua "autonomia" -, assim como compreender a si próprio - pretenso sujeito produtor de conhecimento imparcial e universalmente válido - como tão objeto quanto aqueles que fetichizam. Até lá, pelo visto, seguiremos discutindo esses exóticos seres chamados pobres, enquanto tomamos nosso bom vinho apreciando o abismo para o qual nossas elites econômicas empurram o país.

29 de abril de 2017


quarta-feira, 29 de março de 2017

A barbárie Doriana contra a cultura de SP

Dia 27 de março estive no início do protesto da classe artística paulistana, em frente o Teatro Municipal de São Paulo. Protestavam contra o corte absurdo de verbas da cultura (apesar dos R$ 6 bilhões em caixa deixados pelo Haddad), da interrupção dos programas se introdução e estímulo artístico a crianças e jovens, o PIÁ e o Vocacional, e ao atropelo da lei ao alterar o edital de fomento à dança, um verdadeiro descalabro (para usar o termo que a mídia publicitária adora) com a cultura paulistana em meros três meses, perpetrado pelo grileiro de terras gourmet, lobbysta e garoto propaganda full-time, João Doria Júnior, e seu secretário de cultura, o dono de cinema que vive às custas do Estado (o Cine Caixa Belas Artes, R$ 40 reais pra entrar), André Sturm.
Um primeiro ponto que chama a atenção nesse imbróglio é a forma como o tucano se apoderou da máquina pública: motivado pelo golpe de 2016, que implementou uma ditadura no Brasil que queremos crer provisória; por uma imprensa que atua como agência de propaganda, e por uma concepção de que vencedor de eleição ganha carta branca para fazer o que bem entender, à revelia da população, Doria Jr age como se fosse o dono da prefeitura, e não seu ocupante, e sendo boss, espera de todos - funcionários e população - a aceitação passiva e submissa de suas ordens. O gestor que não é político mas vive da política tem sofrido em descobrir que política não se faz só nos conchavos partidários, e sim no dia a dia.
No protesto, o que me saltou aos olhos foi o discurso proferido pelas grades e policiais que cercaram o Teatro Municipal, para proteger o patrimônio artístico dos artistas.
Há primeiro um discurso de provocação: os sete mil artistas presentes no ato não são "artistas de verdade", que mereçam acesso ao mais tradicional teatro da cidade. Em mais de uma situação Doria Jr deixou claro que arte, para ele, não pode trazer qualquer contestação a sua figura ou dos seus companheiros: isso seria propaganda política, petismo, isto é, crime - a mesma lógica seguida por Sérgio Moro para definir o que é jornalista, o que é notícia, o que panfleto partidário petista, portanto, criminoso. Uma cidade que barra o teatro aos seus próprios artistas é uma cidade que abdicou da arte em favor da propaganda (e não é de se surpreender se em breve não abrirá suas bibliotecas para a queima de livros de autores degenerados/petistas/esquerdistas).
O segundo discurso é para o público exterior, aquele que nunca freqüenta o Municipal ou qualquer teatro, porque não se acha inteligente o suficiente (disfarçado sob o argumento de que teatro é chato), ou porque não tem dinheiro, ou por se sentir inibido de frequentar um lugar onde só há negros e periféricos como serviçais. Nesse discurso, Doria Jr tenta reforçar seu mantra de ódio e violência, ao insistir na retórica do medo do "caos": os artistas, esses esquerdistas que mamam na teta do Estado em troca de ações gratuitas na periferia, são perigosos, são violentos, são "fascistas" (como disse o próprio Sturm, indignado de não ser obedecido bovinamente, como fazem seus funcionários temerosos de perder o emprego), e estão dispostos a destruir o patrimônio público se o prefeito e a polícia não intervierem.
Doria acha que por ter a grande imprensa publicitária fechada com ele, pode tratorar autoritariamente as leis e a sociedade civil. Não percebe que o fôlego da pós-verdade que o elegeu lentamente se esvai - como comprovaram as manifestações de 26 de março dos seus partidários, que juntaram, em São Paulo, menos gente que o samba de Santa Cecília ou do Bixiga. Ao mexer com a classe artística e classe média, o grileiro de terras gourmet queima pontes do seu partido com setores importantes da sociedade, e ingenuamente crê ser capaz de domesticar ou aniquilar a arte - pois ele sabe do seu perigo, como comentei em minha última crônica.
A falta de tato do prefeito conseguiu a proeza de unir uma classe afeita a disputas mil em torno de picuinhas mínimas (motivadas, não raro, por egos máximos). A questão é se a classe artística conseguirá manter a mobilização e angariar apoio da população, e se, a partir disso, é capaz de ir além de uma postura reativa e conseguir se impôr e impôr avanços na forma como a arte e a cultura são tratados pelo Estado e pela "opinião pública" (leia-se Grande Imprensa publicitária). Vivemos tempos sombrios, mas a mobilização dos artistas de São Paulo dá alguma esperança de não apenas reverter a marcha em curso do nazi-fascista tupiniquim (o "finanfascismo" do século XXI) no curto prazo, como trazer avanços democráticos no médio prazo.

29 de março de 2017
PS: ainda não entendo o porquê de não haver um movimento de boicote ao estabelecimento do senhor Sturrm, ou ao menos panfletagem intensiva na porta do seu cinema. Esses gestores que não são políticos (ainda que lucrem muito com a política) costumam se condoer de qualquer causa quando lhes cutucam o bolso.