domingo, 14 de janeiro de 2018

O feminismo instrumentalizado para ilusionismo da dominação

Acompanho a celeuma feminista a partir do manifesto das artistas e intelectuais francesas (http://bit.ly/2r5mMgI). Em minha leitura, o texto possui dois momentos bem específicos: um de proposição de debate e outro de denúncia do movimento feminista hegemônico (que, creio, tem sua hegemonia pelo capital simbólico de suas defensoras, não por ser majoritário). 
O debate proposto não é novo. Na mesma França, há pelo menos quinze anos a feminista Elisabeth Badinter o faz, criticando o puritanismo do feminismo (dito) radical estadunidense - que desde a década de 1980 fecha fileiras com a ala conservadora do partido Republicano -, a limitação à liberdade de escolha da mulher (na desqualificação da opção pela profissão de prostituta, por exemplo), o essencialismo feminino e a acusação genérica contra o homem, a mulher posta na condição permanente de criança e vítima (quase um AA de gênero)... Questões velhas, mas nunca discutidas a sério. Nem serão agora - pois não é do interesse das estruturas de poder (machista) da sociedade nem do feminismo estridente que pretende se opor a ele. 
O feminismo hegemônico - que costumo identificar como academicista, branco, endinheirado, de inspiração estadunidense (com Dwokin e MacKinnon como mães fundadoras) - tem seus mandamentos inquestionáveis (divinos?) e, dentro da tradição acadêmica, se recusa a fazer uma auto-crítica. Pior, baliza sua ação política dentro campo da verdade científica (sabemos o que resulta quando verdade e política se encontram); se tornou uma espécie de religião laica - com muitos elementos de uma teologia rasteira, por sinal -, que preza pelo purismo (jamais fomos modernos?) e cala agressivamente dissonâncias. Tentei algumas vezes levantar essa problematização da Badinter com amigas e conhecidas feministas, as respostas foram sempre duas: sou homem, não tenho direito a opinar (assim como um muçulmano não tem direito a falar de Cristo, por mais que Cristo esteja na doutrina muçulmana, ainda que em outro papel), ou então, se lembro que só estou repetindo o que diz uma mulher feminista, argumentam que Badinter está superada e ultrapassada faz tempo - sem explicar quem teria dado esse veridicto de superação da pensadora. Poucas vezes consegui debater a sério sobre o assunto com uma mulher que se declare feminista - já consegui várias com mulheres que se dizem não feministas ou contra as feministas, apesar das posturas feministas (se se exclui a ala sectária).
O outro aspecto do texto, a provocação sobre a cantada, pode ser lido como uma denuncia do feminismo quanto à interdição do debate, a qualquer questionamento de suas posições e táticas. Seria o ponto para chamar a atenção para o debate propriamente dito, apresentado no início do texto, romper com a desqualificação a priori dos argumentos: construímos um breve silogismo e chegamos a esta conclusão, aparentemente lógica: onde estão as falhas das premissas? Mas a interdição é tamanha que o debate ficou completamente centrado se o homem teria o direito à cantada ou não - sem questionar, sequer, se não deveria a mulher ter direito também, se é que ela não faz; de qualquer forma, essa é uma questão menor no manifesto. 
Na minha linha do tempo do Fakebook, nosso zeitgeist, o espírito do nosso tempo, este de Temer, Moro, MBL, Bolsonaro, Trump e que tais, se mostrou nas mulheres que comentaram o manifesto ou sobre os homens que o divulgaram. É estreito o foco de leitura, fica no sentido mais restrito das palavras, nas frases mais polêmicas que ali estavam - que, concordo, são escrotas, esfregada no metrô não é agradável nem defensável, mas também não é estupro, nem próximo de, e não é preciso ter sido violentada para notar que há diferenças sensíveis. A possibilidade de ver ali um chamado para o diálogo (e não para a doutrinação), um grito contra o que muitas consideram um rumo equivocado do movimento, que cala as vozes e interdita os desejos das mulheres em nome (dizem) delas próprias, que muitas vezes não se mostra acolhedor para mulheres quando elas mais precisam, foi rejeitada com a violência de um desejo perigoso que não pode sequer ser pensado - o de autonomia plena e dissolução das estruturas de poder (e não sua troca de comando)? 
No El País, a resposta de Nuria Varela foi a legitimação do manifesto: põe as mulheres que o assinaram como marionetes dos homens, que seriam os únicos (e não os principais) ganhadores do machismo e do patriarcado - mulher só pensa se pensar como ela. Que o topo seja basicamente formado por homens, não discuto, mas que há homens na base da exploração, isso é algo que esse ramo feminista se nega a aceitar, porque seria quebrar o essencialismo que o baseia, e desmontar todo seu edifício teológico-político. 
Bourdieu mostra, por exemplo, como o machismo mata homens também. Num exemplo (infelizmente) banal: no Brasil, em 2017, 53% dos assassinatos (cerca de 32 mil pessoas) foram de homens entre 15 e 19 anos. Podemos atribuir isso à natureza eminentemente violenta do homem (em contraposição à natureza pacífica da mulher), ou podemos achar que é fruto de uma sociedade machista e patriarcal, que defende a honra do macho e afirmação da masculinidade baseada na violência como valor positivo. Badinter relata que até 10% das agressões domésticas na Alemanha são causadas por mulheres; uma amiga trans quando sofreu um ataque transfóbico que lhe custou um rim apanhou de homens e mulheres, democraticamente (já ouvi feminista dizer que trans é um homem de peruca querendo roubar o lugar da mulher); mulheres participam de violência sexual contra outras mulheres: são exemplos minoritários, porém, se a violência ainda é majoritariamente masculina, o é por educação, não por biologia, e não precisamos de duas gerações para nivelar todo mundo nessa lógica da força bruta. A questão: queremos uma sociedade mais violenta?
Erick Gandini, no filme Videocracy, mostra o ressentimento de homens expropriados das maiores benesses sociais, e que se vêem em condição de inferioridade em relação às mulheres na disputa pelas migalhas, sem questionar a estrutura que perpetua certos homens no topo: seria corporativismo de macho ou seria incapacidade de leitura minimamente crítica da realidade, de notar que ele quer migalhas e que nunca vai ter a chance de estar no topo, mesmo sendo homem? Não se trata de mulheres brigarem também pelos homens, mas de assumirem que é uma luta conjunta, sem subordinação, pois junto com patriarcado e machismo há uma estrutura social e econômica que afeta a todos (homens e mulheres) que não estão nas esferas de poder - homens e mulheres.
Uma vez uma amiga feminista disse, nunca lógica cristalina pela tautologia, que "mulher não pode ser machista, porque ela é mulher; mulher feminista é um contrassenso". Tive que discordar: pode ser machista, como pode ganhar com o machismo, e é por isso que o machismo e o patriarcado se sustentam, porque mulheres também o legitimam e ganham com ele. Uma professora feminista da Unicamp, numa assembléia da greve de 2004, afirmou que a exploração que ela sofria era a mesma de uma terceirizada da limpeza: a ontologia de mulher (cis) garantiria a equalização de todas as diferenças sociais - sua estabilidade no emprego e seu salário 20 vezes maior são detalhes menores: certamente essa ideia favorece quem está no topo pirâmide social, que pode escrever e discutir manifestos, cantadas e violências, sem se preocupar se vai fechar as contas do mês, do trajeto do ponto de ônibus até a casa, ou por quanto tempo terá uma família estruturada, até o marido ser morto pelo Estado ou com a conivência dele - questão reiteradamente trazidas por Djamila Ribeiro, formada antes na luta real que na academia, e que tem uma estratégia retórica muito inteligente para não ser rechaçada de antemão pelo feminismo hegemônico do "somos todas iguais".
Mais um exemplo pessoal, o caso de um casal feminista com quem tive o desprazer de conviver. Ela, branca, academicista, classe média-alta, feminista radical, militante ativa, de não perder uma reunião; ele, branco, classe alta, academicista, feministo que dizia amém pra tudo do feminismo e estava em todas as manifestações. Cansei de ser chamado de porco machista por questionar táticas de ação do feminismo hegemônico. Uma vez aconteceu do estuprador ser amigo deles... o que fazer numa situação dessas? Veja bem, não é bem assim, a palavra é forte, há uma série de atenuantes que não podem ser ignorados, ele é branco, mora no Morumbi, egresso da PUC e da USP, uma boa pessoa, sempre a favor da causa feminista também, não fez por mal, estava bêbado e, no final, convenhamos, não conseguiu consumar o ato (curiosamente, a tentativa foi na França). Resultado: tudo bem, acontece, passa uma borracha e segue a vida normal, ela militante feminista ativa, eles, feministos de confiança. Isso para dizer que aqueles que tentam desqualificar as francesas do manifesto dizendo que é fácil dizer aquilo sem pegar metrô e ser encoxada - ou que vão me desqualificar por ser homem - tem razão, mas vale também o argumento que é fácil manter o purismo até que você se vê frente a frente com a realidade, aí se é obrigado ou obrigada a largar mão do purismo teórico e assumir a complexidade da vida real, ou manter o purismo teórico, mesmo que ao preço de negação da realidade e mesmo dos princípios desses purismo.
Encerro com a historiadora portuguesa Raquel Varela, certeira no ponto sobre o debate acerca do assédio e da instrumentalização do feminismo, iniciado com o #metoo: 
"Uma operária violada, como conheci centenas de casos relatados no estudos que fiz sobre o final do salazarismo, porque dependia do trabalho para alimentar os filhos, não pode - não pode jamais - ser equipada a uma estrela que está 20 anos calada para ganhar milhões e nesses 20 anos é fotografada sorridente ao lado daquele que hoje diz que a agrediu sexualmente durante esses 20 anos. Estas mulheres são em primeiro lugar vítimas da sua ambição e é acintoso, imoral comparar operárias ou trabalhadoras que sofreram na pele o terror sexual em nome da sobrevivência, a estrelas à procura de um lugar de topo na carreira mais competitiva do mundo. Eu não sorrio ao lado de homens que me ameaçaram, sexual ou moralmente, sejam eles directores, reis, presidentes ou operários. E não é porque eu sou uma mulher forte que teve a sorte de nascer num lugar confortável, é porque eu tenho balizas morais e princípios claros na vida. Conheci muitas mulheres, por razões de trabalho sobre a revolução dos cravos, como eu, aprendi muito com elas. Com a diferença que que eram pobres, miseráveis algumas, e mesmo assim colocaram uma linha a partir da qual não passavam. E conheci o contrário, muitas que nasceram em berço de ouro dispostas a tudo. Lamento, mas como mulher, não acho que todas as mulheres estão no papel de vítimas. Há muitas mulheres no mundo que fazem parte do jogo de dominação e desigualdade da sociedade actual e que estão a cavalgar uma situação real - a desigualdade de género - para disputar espaço nas carreiras pondo assim em causa uma das mais nobres causas que temos, a luta pela igualdade social." (texto completo em http://bit.ly/2EH0Uu2).


14 de janeiro de 2018

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Assassinatos de natal - os das pessoas de bem e os dos criminosos

Em confraternização de natal, dia 23, o dono de uma revenda Mercedes-Benz, Matteo Petriccione Júnior, depois de agredir a tia, assassinou o irmão com três tiros. A notícia me trouxe a memória o evento de um ano antes, quando os primos Ricardo Nascimento Martins e Alípio Rogério Belo dos Santos - dois cristãos, como fica evidente nos crucifixos e nas camisetas com Jesus que ostentavam - assassinaram a socos e pontapés, na noite de natal, o ambulante Luiz Carlos Ruas, quando ele tentou proteger uma travesti da agressão. Três dias depois, quando o primeiro assassino foi pego, disse às câmeras de tevê (as mesmas emissoras que pagam e dão voz a personalidades públicas que, ainda que veladamente, defendem o assassinato de transexuais) que não era "uma má pessoa", era antes um "cidadão de bem", como a pessoa que assassinara (nenhuma referência a Raíssa, a transexual que tentara matar antes, que pela sua condição de semi-humana sequer merece nome na grande imprensa); atrás de um cordão de isolamento da polícia, uma malta de pessoas - cristãs a maioria, se não todas -, poucos dias depois de falar de amor ao próximo e paz, no exemplo de Cristo, brandiam, adestradas e estimuladas por essa mesma mídia, palavras de ódio e pedidos de justiçamento (que tal a crucificação dos assassinos?) [http://bit.ly/2Cxc07p].
Os primos Ricardo e Alípio eram dois Joões Ninguém; o primeiro, auxiliar de pedreiro, o segundo, segurança particular (ah, como nós, classe média, estamos bem protegidos!). Precisaram declarar por sua conta e risco que eram "pessoas de bem", trabalhadores, para descrença da mídia e da polícia - "trabalha e está na favela?", deve ter pensado algum cidadão de bem ao ver o noticiário. Seu principal crime foi terem matado a pessoa errada, ou melhor, terem matado alguém considerado pessoa pelas "pessoas de bem": tivesse Raíssa sido a vítima, e o máximo que haveria seria alguma movimentação nas redes sociais da comunidade trans e simpatizantes, uma notícia no Ponte Jornalismo, e uma nota de rodapé em algum site da grande imprensa, como nos casos de Laura Vermont [http://bit.ly/2CtGyoa] ou Verônica Bolina [http://bit.ly/2zTQTqG], agredidas pela própria polícia, ou sob a tutela dela, que se mostrou tão solícita diante das câmeras no caso do ambulante.
Matteo é um caso diferente. Começa que ele tem um atenuante: matou o irmão. É curioso, mas aqui no Brasil (não sei como é em outros lugares) agressões dentro da família são vistas como assuntos privados, em que pessoas de fora não devem se envolver nem ser envolvidas - se não tivesse a arma e tudo não fosse além de uma "lesão corporal grave", como disse o policial, é possível que sequer houvesse boletim de ocorrência do caso. Além desse atenuante, mais atenuante ainda é o fato do assassino ter nome e sobrenome italiano, ter (muito) dinheiro e por isso pode se afirmar um trabalhador - ainda que possa efetivamente não trabalhar. Na verdade, ele não precisa fazer isso, a polícia já o faz. Ela sabe disso e trata o caso com a atenção devida: não cabe tanto o que diz a lei, mas como se veste o criminoso, em que carro anda, quanto possui na conta bancária. Conforme reportagem de um jornalecão local, a polícia (sem identificação de qual policial) lamentou o criminoso [http://bit.ly/2lNB00E]:
"É legal quando você fala da prisão de ladrão, mas um caso assim a gente fica triste, por ser uma grande tragédia. Pessoas de bem, trabalhadoras, e numa fração de segundos ocorre a desgraça. É até triste para nós, mas é um trabalho que precisa ser feito."
Matteo Petriccione Júnior matou o irmão por motivo fútil, mas segue uma "pessoa de bem", nunca um criminoso (bandido, nunca!), segundo a própria polícia, que trata o caso com tristeza. Quando um ano atrás falava dos primos pé-rapados, trabalhadores também, falava com sangue nos olhos, "não vamos descansar", e nenhum momento cogitaram dizer que eram "pessoas de bem", e que a culpa era do álcool, como no caso do assassino rico.
Mais que isso, a polícia deixa claro que trata com alegria o crime quando cometido por pobres - afinal, sua função é controlar e confinar a (maior) parte da população, rejeitada no baile dos bacanas -, e que hesita quando um crime grave é cometido por um dos bacanas - afinal, pessoas erram, vide Thor Batista, que nunca quis fazer mal a ninguém, mas sem querer matou; que cidadão de bem não tem o direito de matar um fulano qualquer uma vez na vida? Não que isso não seja do conhecimento geral, a novidade é como a polícia (ao menos a paulista) tem tido cada vez menos desfaçatez em se afirmar como um corpo de segurança dos ricos contra os pobres, neste caso como na entrevista do comandante da Rota, que afirmou que morador dos Jardins merece tratamento especial, no mínimo dentro da lei, enquanto morador de Capão, merece nada, na melhor das hipóteses [http://bit.ly/2E27o6x]. Talvez esse descaramento seja fruto da autorização e legitimação do governador do Estado de assassinatos extra-judiciais por seus subordinados ("quem não reagiu está vivo").
E nestes tempos de Estado de exceção e ditadura disfarçada, o judiciário assume também ativa e ostensivamente o papel que antes era dos capitães do mato e da polícia, expulsando do baile dos bacanas os que não são bacanas puro sangue. A lei? Ora, a lei primeira nestes Tristes Trópicos é cada vez mais, a exemplo do que foi por quatrocentos anos, de quem você é filho, quanto de bens você possui. A partir disso é que se julga, quando não se inventa ou se oculta o crime.

03 de janeiro de 2018

PS: cabe notar a diferença de abordagem nas fotos da Folha aos dois crimes. No cometido pelos pobretões, seus rostos são expostos, nenhum respeito. Na do riquinho, a fachada da loja do pai, onde mal se consegue ler o nome da loja. Mas a imprensa é imparcial e equitativa e não estimula ódio e coisas do tipo.