sexta-feira, 4 de janeiro de 2002

Mutilações em nome de Deus

Eu apenas li a manchete da notícia: "Advogado de tesoureiro de Taniguchi é baleado". Não sei porque me veio à mente que o próprio advogado poderia estar por trás disso (por favor, não estou levantando suspeita alguma), isso ocorre corriqueiramente no mundo.
Esse pensamento trouxe a memória uma notícia antiga, creio que o fato se passou há uns três anos. Um homem – comerciante, acho – atolado em dívidas e de olho em um polpudo seguro, amputou a própria mão, sem anestesia, dizendo que um assaltante que o fizera. Para seu azar, descobriram o golpe. Além de ter ficado sem a mão, ficou sem o dinheiro que diziam que ela valia.
Não foi com o 11 de setembro que começaram, já vinham de longa data, mas com ele se intensificaram – e muito – as críticas aos costumes medievas dos povos islâmicos, como a circuncisão de mulheres. Correntes na internet, matérias na tv, entrevistas com modelos mutiladas, reportagens e mais reportagens na "Veja Digest Seleções" nos mostravam que a barbárie ainda imperava em vários pontos do planeta. Como eu me indignava com isso! Mutilações com o consentimento da família, da sociedade em plena era do computador!
Mas eis que em 2001 uma luz veio até mim. Não, não era Jesus entrando em minha alma durante um culto televisivo do pastor R. R. Soares. Era uma matéria da faculdade chamada "Antropologia Cultura". Mesmo não lendo os textos e assistindo apenas a metade das aulas (a outra metade eu dormia), é impressionante o quanto aumentou meu (ainda muito estreito) campo de visão (antropologia cultural como disciplina obrigatória no ensino médio!).
Todavia, passado seis meses de aula com o Geraldo e a Keila, minha indignação continuava a mesma: como pode, em plena era do computador, as mutilações serem tratadas como algo normal, corriqueiro, com o consentimento da família e da sociedade?
A explicação que nos é dada é simplista, mas verdadeira: "é assim mesmo, essas mutilações são a vontade de Deus". Mutilações em nome de Deus, em pleno século XXI!
Em nome de Deus o empregado tem os dedos, a mão, o braço mutilados pela máquina da indústria. Em nome de Deus a mulher – que vive num país recheado de diamantes – tem a perna mutilada por uma mina terrestre "made in USA". Em nome de Deus é mutilado o orgulho da mulher, para que esta sirva às necessidades sexuais de um homem qualquer. Em nome de Deus mutila-se um olho, uma mão, os pés, a infância, o futuro de uma criança, que trabalha dia sim, dia sim, nas carvoarias, nos cisais, nos sinais. Em nome de Deus mutilamos florestas e animais. Em nome de Deus mutilamos a verdade, mutilamos a amizade, mutilamos a lealdade. Em nome de Deus mutilamos milhares de vidas todos os dias.
Mutilações feitas em nome de Deus, Deus dinheiro, e que julgamos, na nossa fé cega, como algo normal. "Deus quis".

Pato Branco, 04 de janeiro de 2002

Entre a sinceridade e a amizade

Existe amigos e amigos. Há aqueles – a maioria – com quem conversamos, saímos para as baladas, trocamos segredos. E há aqueles que não necessariamente conversemos muito, que não nos acompanham quando saímos, mas que contamos nossos segredos sem medo do que ele vai pensar.
Os primeiros, quando se mudam, sentimos sua falta, mas logo achamos outro que o substitua. Os segundos, quando partem para outras terras, sentimos sua falta, também, mas muito raro – se não impossível – substituí-lo.
Quando nos encontramos, depois de um longo tempo, com o primeiro, não há como não parar para conversar, perguntar como vai a vida, o que tem feito, quais as novidades. Com o segundo, continuamos a discussão que da última vez que nos vimos, um ano atrás, não tivemos tempo de terminar – não precisamos ver pra que direção estão as suas idéias. (Que início brega este).
A diferença entre o primeiro e o segundo tipo de amigo não depende dele, se é uma pessoa legal ou não, mas principalmente de nós: até que ponto mostramos a ele nosso rosto, e não nossas máscaras; a liberdade que damos – a ele e a nós – de dizer o que realmente sentimos, o que realmente pensamos; o quão sinceros somos com ele.
Aqui entra a crônica anterior: se estamos imersos numa espessa neblina, que impede que vejamos a nós mesmos, como enxergar o próximo? como ele nos enxergará?
Resta-nos "vê-lo" por tentativas: imaginamos que a pessoa seja assim e assado, e nesse jogo de adivinho perdemos preciosos, surpreendente, maravilhosos detalhes, ao mesmo tempo que enxergamos fantasmas, monstros, aberrações.
A solução é uma palavra: sinceridade. Parece simples, mas não é.
Se não nos conhecemos suficientemente bem, como saber se aquele detalhezinho que você não conta a ninguém não é importante? Pode ser que ele faça com que seu amigo te compreenda muito melhor. Te compreenda (eu sei, há um erro aqui. É proposital) e te aceite melhor.
Aceitação. Eis nossa insegurança. Eis o pântano em que nossa sinceridade jaz. Eis o atoleiro que impede que nos aproximemos dos amigos.
Nos apresentamos através de estereótipos e, conforme nos aproximamos de uma pessoa, vamos sendo obrigados a destruí-los. Nos sentimos já nessa fase inseguros, o medo de que o outro não nos aceite como somos, de que ele conte a outrem. Vamos nos revelando devagarinho, estudando bem cada passo a ser dado.
Entretanto, chega um ponto em que os estereótipos sob os quais propositadamente nos apresentávamos (e muitos que seguíamos sem notar) foram postos abaixo (muitas pessoas não chegam sequer a este ponto, não sei se por medo ou por julgarem desnecessário um relacionamento mais profundo). É a hora, então, de contar nossas esquisitices – dizia Caetano, "de perto ninguém é normal" – e, além da nossa insegurança, soma-se nossos pudores – apesar de não haver motivos para isso. Na maioria das vezes, convencemos nós mesmos de que não há mais nada a ser dito, e pomos um ponto final no nosso "strip tease social". Uma pena. É a partir daí que os amigos passam a ser peça chave na busca por nós próprios. A partir daí deixamos de lado o que parecemos e passamos a conversar com o que realmente somos.
Não estou recomendando aqui que você se abra com todo mundo. Seria o ideal, mas é impraticável na sociedade atual. Mas não custa nada diminuir o número de máscaras no trato com as pessoas em geral, e ir "desarmado" ao encontro dos seus amigos mais próximos.

Pato Branco, 04 de janeiro de 2002