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quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Tempo de campanha e a despolitização das eleições

O assunto é tratado apenas marginalmente nas análises das eleições, porém julgo ser de grande importância para compreender os resultados dos últimos três pleitos, com o crescimento da direita, em especial da extrema: o tempo de campanha eleitoral. Não falo da divisão do tempo da propaganda entre os partidos - ainda que isso também influencie -, e sim do tempo da campanha na rua e nas mídias.

Com 17 segundos, Boulos conseguiu ir ao segundo turno em São Paulo e em duas semanas com dez minutos diários, conseguiu dobrar seus votos, angariando 94% dos votos dos candidatos cujo partidos podem ser postos à esquerda do espectro político (aí incluído, mesmo que a fórceps, os eleitores do Márcio França). Pode ser otimismo irrealista meu, mas julgo que esse resultado teria sido muito melhor se não fossem as reformas políticas operadas desde 2015.

A minirreforma eleitoral de 2015, a pretexto de diminuir os custos das campanhas - proibidas de financiamento empresarial -, reduziu de 90 para 45 dias o tempo da campanha política - e de 45 para 35 o tempo de propaganda no rádio e na tevê. Ademais, para a eleição de 2018, o tempo do horário eleitoral (erroneamente chamado de) gratuito nas concessões públicas de radiodifusão diminuiu de dois blocos diários de 30 minutos para dois de 10 minutos, além de inserções breves ao longo da programação. (Se eu fosse tentar encaixar na terminologia do autor que sou especialista, o francês Guy Debord, diria que tais alterações levaram à reedição da Lei Falcão dentro do modelo do “espetacular difuso”, com o detalhe de que já superamos a dicotomia “espetacular difuso” x “espetacular concentrado”, estaríamos em tempos de “espetacular integrado”, e as regras anteriores se encaixariam nesse recorte).

Faço aqui um exercício de pura especulação: não fosse essa limitação de tempo, os resultados das eleições que levaram Doria Jr à prefeitura, em 2016; Bolsonaro ao Planalto, em 2018, e Covas, à prefeitura de São Paulo, este ano, teriam sido diferentes. Talvez acabassem eleitos, contudo as disputas tenderiam a ser mais acirradas - e, por consequência, muito mais sujas.

A diminuição de tempo do horário eleitoral gratuito de uma hora para vinte minutos diários fez crescer a importância das inserções breves durante a programação, feitos de slogan publicitários imediatos, sem tempo para desenvolver uma ideia - seja proposta ou desconstrução do adversário -, mesmo que altamente ideologizada. É a adestração a la Pavlov: puro ato reflexo, nada de reflexão - algo muito afim aos tempos de internet, caixas de comentários, WhatsApp, fake news e afins. Saem as propostas vazias entram os slogans vazios. É também forçar a política a uma pretensa irrelevância: para não atrapalhar a novela, o futebol, o jornal direcionado, diminui-se a voz dada diretamente aos candidatos: que percam todos, mas que tirem a voz daqueles que podem contradizer William Bonner ou a corrente de WhatsApp (importante em tempos de criminalização das esquerdas e dos movimentos sociais).

O grande momento da despolitização extrema, entretanto, é a diminuição do período eleitoral. A redução de três meses para um mês e meio de campanha nas ruas dificulta o debate e a elaboração de propostas (mesmo que gerais), dificulta o trabalho de desfazer mentiras divulgadas pela internet, de fazer militância na rua, e facilita que candidatos sem qualquer conteúdo vençam. Russomano talvez seja um exemplo do quanto a campanha - e em especial os debates -, por mais precária que seja, é capaz de evidenciar políticos e diferenciá-los dos sabonetes travestidos de políticos: tivéssemos uma semana de campanha e nenhum debate, possível que tivesse sido eleito prefeito da capital; como não é esse o caso, o tempo o força a abrir a boca, e cada vez que faz isso perde apoiadores.

Volto à especulação levantada acima (que pode ser chamada de metafísica, já que impossível de ser posta à prova). Em 2016, Haddad disputava a reeleição. Depois de quatro anos com pouquíssima publicidade - não sei se por estratégia um tanto heterodoxa e arriscada ou se por ingenuidade política arrasadora, em acreditar que haveria, durante seu mandato, “engajamento orgânico”, como se diz na linguagem das redes sociais, enquanto sua gestão e seu partido era massacrados pela mídia -, o então prefeito passa a breve campanha a elencar suas realizações - conforme as pesquisas, sua rejeição cai de 52% para 41%, e sua intenção de votos parte dos 9% para os 16% das urnas, numa onda que começava a crescer, tal qual ocorrera em 2012. Tivesse mais tempo de campanha, Haddad poderia mostrar melhor o que havia feito e pouco publicizado, e talvez fosse para o segundo turno contra o tucano, o que poderia evidenciar o despreparo deste - se suficiente para desbancá-la, é outra história, mas Doria Jr acabaria comprometendo em parte sua imagem. Campanha curta, venceu o candidato do slogan vazio e das fake news (no caso, sobre si próprio, a tal do “João trabalhador”).

Em 2018 a eleição presidencial foi marcada pela facada em Bolsonaro (que muitos preferem chamar de “fakeada”). Até o evento, haviam ocorrido dois debates. Neles o desempenho de Bolsonaro foi pífio, ombro a ombro com Álvaro Dias e Henrique Meirelles, sendo “papado” até pelo Cabo Daciolo. A facada vem em momento mais que oportuno: permite que fuja dos demais debates sob a alegação de estar em recuperação, sem ficar com a pecha de covarde; pode então centrar a campanha nas redes sociais e redes de fake news, ambiente que domina. A se imaginar se tivéssemos um mês e meio a mais de campanha: ou Bolsonaro desidrataria a la Russomano nos debates, ou precisaria de uma facada muito cedo a ponto de poder ser posto em dúvida sua ausência nos últimos debates do turno. Se seria suficiente para que não fosse eleito, impossível até especular, mas é de se acreditar que a dinâmica da eleição seria muito diferente, ou com denúncias de fake news despontando antes, ou com investimentos ainda mais altos nesses meios (para desespero do Véio sonegador da Havan), ou com ataques mais diretos ao seu fascismo por parte, por exemplo, de Alckmin, se notasse que ele não estava garantido no segundo turno.

Do exemplo de 2020, basta lembrar que Covas é um candidato fraquíssimo, não possuía  nada da sua administração para mostrar e sem o antipetismo radical em seu ápice para animar as bases, como ocorrera com seu padrinho: mais tempo de exposição sem as verbas do passado para banhos diários de marketing o obrigaria a se expôr de modo comprometedor. Novamente: não sei se isso alteraria o resultado da eleição, certamente alteraria a dinâmica da disputa. E tão importante nessa desidratação do candidato da direita: as campanhas de Boulos e Tatto retomaram muito da política e da politização há tempos deixado de lado pelas esquerdas com chances de vitória, que preferiam aderir ao discurso centrista do que a ciência política chama de “catch all party” (partido cata-tudo, em tradução livre).

Em resumo, o que quero levantar é que se as esquerdas querem não apenas voltar a ter chances nas disputas eleitorais como, principalmente, ter chances de politizar o debate, vai ser preciso fazer uma contraminirreforma eleitoral, que reestabeleça um tempo razoável para a discussão de programas, propostas, problemas e ideias. Claro, só disputa eleitoral não garante a politização, contudo esses movimentos de redução das campanhas - assim como propostas de eleição geral integrada, cada quatro anos - beneficiam principalmente as candidaturas de direita (muito mais do que as candidaturas dos ocupantes dos cargos, como interpretam alguns analistas). E mais importante que isso: campanha eleitoral serve para aprofundar e exacerbar a discussão sobre política, sobre os rumos da cidade, do estado, do país*, o trabalho político efetivo deve ser feito o tempo todo, todos os anos - aqui, o pós-eleição de Boulos, chamando para discutir os próximos passos e como colaborar na construção de um movimento de massas, mostra que o líder do MTST compreendeu esse ponto e, mais importante, não se furtou da responsabilidade, como fez Haddad e o PT, em 2018. São boas sementes que começam a ser plantadas, ainda que tardiamente; nos cabe agora persistência para semeá-las e paciência para esperar o momento em que esse trabalho render seus frutos.


09 de dezembro de 2020.


* É curioso notar o temor das elites frente às eleições, mesmo numa democracia de baixíssima intensidade como a Brasileira - isso enquanto não derem um golpe ditatorial explícito.


domingo, 29 de novembro de 2020

Análise geral das eleições de 2020: derrota das esquerdas, mas com sinais de alento

Terminado de contar os votos, é a vez das análises sobre os resultados, tentativa de definir quem ganhou, quem perdeu, quais as tendências, que lições tirar.

Para começar esta análise, parto de um fato objetivo: vivemos em democracia liberal burguesa, marcada por eleições periódicas livres (teoricamente, bem teoricamente), onde sai vencedor quem tem o maior número de votos e leva o executivo (e consegue garantir o legislativo, mas isso dá para resolver depois das eleições). 

Assim, em 2020, ganharam os partidos ultra-fisiológicos, do (mal) chamado "centrão", partidos que são sempre aliados do governo de turno: mais uma vez mostraram que sabem se apropriar das verbas federais para fazer valer seus interesses em suas praças, desta vez com a novidade de fazerem-no sem se atrelar ao governo; e que sabem utilizar a máquina estadual para tratorar dissidências, como é o caso do Paraná, governado pelo filho do apresentador Ratinho.

A extrema-direita só pode ser considerada como uma das perdedoras do pleito municipal se entrarmos na velha ladainha dos analistas da grande mídia (em especial durante os anos petistas), de querer comparar as eleições municipais às eleições legislativas de meio de mandato nos EUA. Nada mais equivocado: ainda que tenham influência da política federal e estadual - e seja de grande influência nas eleições legislativas de dali dois anos -, o pleito municipal tem sua dinâmica própria. Não cabe comparar 2020 com 2018, e sim com 2016. PSL, PSC, PRTB, Republicanos e Novo elegeram 467 prefeitos em 2020, sendo Vitória a única capital, contra 234 em 2016. Se formos comparar ao PT do início do século, o Partido de Lula tinha elegido 200 prefeitos em 2000 (é certo que dentre eles estava São Paulo e outras 5 capitais) e foi para 411 em 2004 (sendo 9 capitais). O tal fogo de palha que muitos vêem no resultado fraco da extrema direita parece ser uma tendência porém não pode ser comprovado com os resultados de 2020: a extrema direita não tem força e penetração como o PT com o qual comparei, o discurso de ódio e as fake news tem encontrado seus limites, mas isso não quer dizer que não possam reencontrar o caminho.

O PSDB, transformado em Partido à Serviço de Dória e seu Balcão de negócios, em aliança com o DEM, garante força no tabuleiro para 2022. Preparando o discurso para daqui 2 anos, o atual governador engole seu discurso fascistóide e agora fala contra o ódio. A estratégia do detentores do capital já se mostra clara e será a mesma de 2018: apresentar seu candidato como o centro moderado, contra extremismos - e agora contra aventureiros também, como foi o discurso de campanha de Covas contra Boulos. (Tenho realmente dúvidas se o prefeito disputará o governo do estado daqui dois anos: não por qualquer coerência à sua promessa de campanha, mas porque se mostrou fraco demais para uma disputa majoritária - que o diga o apelo à máquina do município, conforme denúncia registrada em vídeo -, e além da rejeição que pode adquirir ao deixar a prefeitura, pode acrescentar pouco com seu estilo). É um discurso que deu certo por um tempo, mas tenho dúvidas se vai vingar novamente: ainda que a tendência seja essa volta ao centro, a crise econômica-social que se avizinha pode embaralhar novamente o cenário, como foi a crise econômica-política em 2018.

As esquerdas, por seu turno, são as grandes perdedoras. Não adianta retomar o discurso de Freixo em 2016 e falar em vitória moral: o que conta acima de tudo numa eleição, aos partidos que entram em disputas visando a vitória e não candidaturas de denúncia, é vencer nas urnas. Há outros elementos a serem considerados, mas em termos factuais, o ponto é o quanto ganhou.

O PCdoB bem que tentou em Porto Alegre, mas no fim, se tornou um partido maranhense e baiano (respectivamente 22 e 16 prefeitos, de um total de 46). O PDT se manteve com seus trezentos e poucos, com destaque aos 68 do Ceará, mostrando que o partido não tem projeção nacional para os anseios de Ciro. O PSB também perdeu prefeitos: é um partido sem base e sem grande projeção, tentou em São Paulo manter o discurso ambíguo que vinha da época de Eduardo Campos e não teve sucesso; mancha sua reputação quando João Campos abandona qualquer pudor e adere às piores práticas consagradas pelo gabinete do ódio, na disputa por Recife.

O PT segue caindo, fruto de anos de perseguição midiática-judiciária, que fez com que muitos de seus quadros mudassem para siglas do mesmo campo, como forma de contornar o macarthismo que perseguiu o partido. Ainda é um partido com considerável base militante, espalhada pelo país e que ao menos em São Paulo mostrou vontade de voltar a atuar - a escolha de Tatto, volto a dizer, foi acertadíssima. As três grandes questões para o PT são: se livrar da Luladependência, algo por ora fora do horizonte, conseguir atualizar seus quadros e suas formas de mobilização, aceitar que mesmo sendo o principal e mais bem estruturado partido de esquerda, pode ser mais sensato ceder o protagonismo nas próximas eleições (algo como fez Cristina Kirchner na Argentina). O PSOL é um dos exemplos em quem o PT deve se inspirar: abrindo o partido para movimentos sociais, sabendo usar as redes sociais, e garantindo militância nas ruas e não de gabinete, o partido de Boulos e Erundina retoma a velha forma do PT de fazer política, baseado em trabalho de base, com outros objetivos que não o mero resultado eleitoral (comentarei de Boulos em outro texto). É um alento, porém tem limitações graves, e é nesse ponto talvez por onde o PT possa utilizar da sua experiência e sua capilaridade para avançar: conforme apontou Alceu Castilho, editor do site De Olho nos Ruralistas, em comentário nas redes sociais, essa renovação política nas câmaras municipais é um fenômeno urbano dos grandes centros: no Brasil profundo, a tendência é manutenção daquela política que nada deixa a desejar à república velha: conservadora, violenta, sem espaço para qualquer respiro (não que as mesmas práticas não sejam encontradas nos grandes centros, vide os eleitos para as câmaras de São Paulo e Rio de Janeiro).

Diante desse quadro, pode-se dizer que a tendência não é das piores para a esquerda e para o campo progressista como um todo. A questão essencial é não se limitar à política parlamentar, disputar o discurso com o que a mídia chama de 'centro' (uma extrema direita que bebe água Perrier e segue a cartilha Globo News de análise), o que implica se reapropriar das ruas, se apropriar das redes sociais e da internet, recomeçar e reconstruir o trabalho de base - em suma, religitimar a política e os partidos. É trabalhoso, mas é como se faz política para além dos conchavos de gabinete - Boulos é prova disso.


29 de novembro de 2020

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Análise do primeiro turno da eleição para a prefeitura de São Paulo

Há cerca de 15 anos, na sua coluna no jornal Valor Econômico, Maria Inês Nassif (com cuja leitura dos textos aprendi a manejar o instrumental aprendido no curso de ciências sociais para fazer análise política de fato e não fanfic ou paper acadêmico estéril, só não aprendi a ser sucinto e preciso no que escrevo, sigo prolixo) comentava que a vitória de Lula com suas concessões ao capital deixara a oposição sem plataforma e sem discurso, com a grande mídia assumindo a partir de então o papel de partido de oposição. Se nas democracias europeias são os partidos que dão as diretrizes para a imprensa com eles afinada, nestes Tristes Trópicos quem passou a ditar a pauta, desde o mensalão, foi a mídia corporativa, com PSDB e DEM (então PFL) indo a reboque: mensalão, petrolão, antipetismo, Lava Jato, discurso de ódio de extrema-direita, todos surgiram na mídia para depois serem encorpados por políticos e partidos. Bolsonaro foi apenas um acidente de percurso, um oportunista que soube melhor se utilizar da plataforma política da mídia para chegar ao poder.

Essa introdução é necessária para fazer uma análise do estado da obra da eleição à prefeitura de São Paulo, mesmo que breve. Ainda que as pesquisas apontassem, não deixa de ser surpreendente a ida de Guilherme Boulos ao segundo turno, não apenas por ser do PSOL, mas principalmente pela ligação (presente e muito atuante) com movimento social de contestação. Seu segundo lugar já mostra uma primeira falha da estratégia midiática-tucana: ao cancelar os debates sob o estapafúrdio argumento de coronavírus, o esperado era tentar garantir ou vitória em primeiro turno de Covas ou um segundo turno contra Russomano - os dois são péssimos oradores e ocos de propostas -, em que a esquerda não veria nenhuma “escolha muito difícil”, e sim “um voto muito muito indigesto”, e garantiria mais quatro anos de tucanato na capital. Jogando na retranca, sem o ápice do lavajatismo e perseguição macarthista às esquerdas e à política como um todo, e sem a máquina de Doria Jr, foi impossível repetir o padrinho (vale lembrar que a votação de 2016 do hoje governador foi aquém da de Haddad em 2012, apesar da base maior de eleitores, e correspondeu a pouco mais de 1/3 do eleitorado). Para este segundo turno, começou a campanha do “racional contra o radical”, mas Boulos, ao invés de se justificar, dizer “não é bem assim”, tem reiterado sua posição e colocado o caráter ideológico dessa posição da mídia e do atual prefeito. Antes de chegar ao embate do segundo turno, uma breve análise de quem ficou pelo caminho.

Joice Hasselman entrou como uma das concorrentes da extrema-direita puro sangue, e teve o dissabor de saber que num país machista como o Brasil, seu fascismo é igualmente machista - isso de mulher liderar extrema-direita é pra lugar onde direitos humanos e igualdade de gênero são (até o momento, ao menos) tratados seriamente, como Alemanha; para uma república bananeira, o neofascismo mantém muitas das cores do fascismo tradicional, acrescido de bizarros tons antinacionalistas (mas patrióticos). Talvez tenha sido a perdedora da eleição.

O outro concorrente da extrema-direita puro sangue mostrou que as classes abastadas paulistanas estão sedentas de um Auschwitz para chamar de seu. Os quase 10% do Mamãe Falei não me surpreenderam: há vinte anos o filhote dileto da ditadura, Paulo Maluf, disputava o segundo turno da eleição para a prefeitura; o candidato do Patriotas acolhe um considerável contingente desses viúvos, viúvas, órfãos e órfãs dos “bons” tempos dos generais, além de parte dos pupilos do Messias que nos conduz ao deserto desde o planalto central. É no sul rico que ele conseguiu suas melhores votações: Santo Amaro, Pinheiros, Butantã (o bairro onde está a USP, o que acho bastante emblemático), Indianópolis e o indefectível Jardim Paulista. Por ora, não é um nome que parece poder ir além desse nicho, portanto, restrito a disputas proporcionais; sua presença apenas escancara aquilo que o Vox na Espanha também trouxe à luz: os filhotes da ditadura apenas fingiram civilidade e se disfarçaram em partidos com verniz democrático, esperando o momento de mostrar todo seu ódio, suas pulsões reprimidas e sua sede de sangue.

Os 630 mil votos dessa extrema-direita ideológica podem ser em parte desaguados em Covas, se ele souber nutrir o sentimento anticomunista - um passo arriscado ao tucano -, ou se abusar de fake news (algo que, por ora, não parece ser da índole dos partidos tradicionais); do contrário, boa parte deles deve anular, para não votar em um “esquerdista” - Boulos pode dá-los por perdido.

O outro concorrente da direita/extrema-direita é Celso Russomano, o cavalo paraguaio de São Paulo (com todo respeito aos cavalos e aos paraguaios). Não o ponho como extrema-direita pura porque seu eleitorado é menos ideológico, mais movimentado pelo populismo midiático de direita, pelo apoio do presidente (com certa popularidade, graças ao auxílio emergencial posto pela oposição para o governo pagar durante a pandemia) e pelo voto de cabresto do neocoronelismo das igrejas neopentecostais (não sejamos preconceituosos e simplistas, em achar que quem vai a uma dessas igrejas seja seguidor fanático do pastor, mas não ignoremos que esses pastores possuem muito poder e capacidade de influenciar seus rebanhos). Teve melhor votação nos extremos norte e leste da cidade, ou seja, as regiões mais pobres que não na esfera da Tattolândia; e seus piores índices nos bairros abastados - não é um candidato das elites, ainda que não possa ser adotado por elas, se for para “uma escolha muito difícil”. Não acrescentou nada, fez o que era esperado (abriu a boca e caiu, não abriu e caiu também), e pode ter queimado parte de seu capital político, graças à desconstrução de sua imagem feita pelas campanhas adversárias. Seus 560 mil votos estão em disputa aberta pelos dois candidatos, ambos com argumentos igualmente “sedutores”: Boulos falando em mudança - afinal, foi um voto pela mudança da direção da cidade -, Covas falando em conservar - pois se trata de um voto conservador. A parte de cabresto desse voto vai depender muito das negociações de bastidores, quanto o PSDB está disposto a ceder já e no futuro para os líderes religiosos, que por ora estão fechados com Bolsonaro - a vitória de Covas seria trampolim para Doria Jr disputar o Planalto, e tendo a acreditar que o atual presidente vai preferir um esquerdista a alguém que vai disputar seu nicho do eleitorado; inclusive, daria munição ao seu discurso: o PSDB foi incapaz de derrotar o comunismo mais radical, algo que só ele conseguiu (vejo, na revisão do texto, que o Republicanos declarou apoio a Covas. Não deixa de ser uma surpresa, não deve ter saído um apoio barato, e resta ver qual vai ser o engajamento na campanha tucana, em especial dos pastores).

Márcio França fez 60% dos votos que havia feito no município na disputa pelo Estado, em 2018. É um candidato sem base bem definida, de um partido sem base. Admito dificuldade em entender o voto nele. Imaginava que atrairia eleitores classe média branca que se pretendem mais racionais, menos ideológicos e que buscam uma imaginária terceira via entre tucanos e petistas, sem cair nos “extremos” e nos extremos que se apresentam como alternativa, porém teve seus melhores números nas periferias - não que as periferias não possam ser racionais, só não são classe média. Por oscilar entre um discurso progressista e um discurso conservador, criticando tucanos e petistas (e psolistas), seus 730 mil votos também estão em disputa aberta.

Tatto foi-me uma surpresa positiva. Preciso admitir que, contrariamente ao que disse no início da disputa, a escolha não foi equivocada. Teve poucos votos, porém mais do que eu imaginava. E se ficou atrás de Russomano e Mamãe Falei, vale lembrar que houve voto útil em Boulos no primeiro turno - não fosse assim, provavelmente estaria no mesmo patamar que eles. Tatto perdeu os para Boulos votos da classe média descolada (e um tanto desconectada da realidade das periferias), que teria abraçado empolgada Haddad (Fernando ou Ana Estela) ou aderido sem tanto entusiasmo a Bonduki ou Padilha, mas reforçou a presença no partido na periferia e junto à militância. Por conta disso, foi um acerto: evitou que o PT invertesse de papel com o PSOL e se tornasse um partido academicista classe média e pouco conectado com a realidade, enquanto sua dissidência abandona seu ethos inicial e se torna uma versão atualizada do que o PT foi antigamente: um partido ônibus (conforme Luis Nassif), que incorpora movimentos sociais, inclusive nas suas novas formas de atuação. De volta ao PT. A questão é que o partido está envelhecido, burocratizado, engessado, desatualizado. Tatto é uma mostra disso. Difere por mostrar que ao menos tem noção de contexto e conjuntura - daí não atacar Boulos e não hesitar em apoiá-lo tão logo foram divulgados os resultados, e mesmo sua atuação junto à militância. A questão ao PT é descobrir como atualizar essa militância, como fazer trabalho de base no século XXI, como conseguir aliar experiência administrativa - discurso que tem sido repetido pelo PSDB há tempos e que o PT não conseguiu tomar, ainda que tenha mais direito a utilizá-lo que o partido de Doria Jr - com inovação na ação. O partido perdeu tamanho diante do que teve no auge, estas eleições apontam para uma perda de hegemonia na esquerda (que pode ser temporária ou permanente), porém ainda é um partido dos mais relevantes no quadro político nacional - se não for o mais -, e não tem porque duvidar da sua capacidade de voltar a crescer. Dificilmente os 460 mil eleitores de Tatto não votarão em Boulos.

Enfim, chego à análise dos dois candidatos que seguem na disputa. De Covas, pouco a dizer. Tenta seguir na inércia, na blindagem da mídia, no antipetismo e na visibilidade que a máquina pública lhe deu e lhe dá. É o favorito, mas sabe que o páreo não é fácil, tanto que sua aparição junto à Marta ex-Suplicy atesta o receio da sua equipe: a presença da ex-prefeita é uma tentativa de dar alguma entrada a ele nas periferias simpáticas ao petismo, à Erundina ou às esquerdas, que não pela inércia do cargo. A ver qual o tamanho da presença dela, pois pode afugentar votos dados como certos vindos dos eleitores dos candidatos da direita/extrema-direita. Outro problema nessa estratégia é que Boulos não é do PT, e, principalmente, é alguém extremamente preparado para debater ideias e notar pegadinhas postas nos debates - fruto tanto de sua experiência prática no MTST quanto de sua formação acadêmica (melhor nem fazer uma comparação entre ambos). Se quiser jogar mais baixo, o atual prefeito pode apelar para o “já está ganho”, como forma de desinteressar a população do pleito e garantir a inércia. O risco é desengajar seus eleitores ou potenciais eleitores, e diante da eleição ganha irem para a praia ou preferirem não se arriscar indo votar (enquanto reviso este texto sai a primeira pesquisa. A diferença ainda é grande, um cientista político que nunca tive em boa estima e que tem se provado muito aquém do que eu imaginava, já anunciou que a eleição está encerrada). O grande receio de Covas é que ele sabe que seu eleitores não são eleitores fieis, boa parte é vulnerável a mudar de voto.

Boulos também sabe disso, e seus apoiadores também. A militância vista é algo há muito tempo ausente da política nacional: graças à presença de coletivos e movimentos sociais na disputa para a vereança, houve um engajamento maior. Não apenas isso: a presença de Erundina e a oratória do Boulos inflam outra parte do eleitorado progressista. A panfletagem na rua foi feita de forma espontânea e tinha uma diferença abissal para o vira voto de 2018: foi feita não com medo, mas com esperança: isso gera uma outra forma de engajamento. A forma como lidou com a primeira pesquisa também mostra que a tática principal vai ser militância na rua, no boca a boca: fez questão de ressaltar a queda de 18% (quase 50%) na diferença para Covas. Fora da questão da militância, a equipe foi primorosa na campanha pela internet: se até pouco tempo atrás esse era um campo em que a direita dominava inconteste, seu acomodamento nas redes de WhatsApp e fake news impediu que se renovasse - o que a equipe de Boulos fez direitinho. Há ainda o tempo na tevê, que se for bem explorado como na internet, vai fazer diferença, e tem os oito debates previstos, que se forem mantidos e Covas não fugir, vão ser mais que palanque, vão ser geradores de memes para o psolista. Seu grande ponto fraco não é Covas, o partido da mídia, o partido das igrejas, a Marta ex-Suplicy, o grande empecilho para sua campanha é o tempo para o segundo turno, apenas duas semanas (tempo, a mesma questão que, na minha opinião, tirou Haddad do segundo turno em 2016). Vai ser uma campanha estressante, de alta intensidade, de ritmo alucinado, enquanto do outro lado Covas posa de racional, parcimonioso, bem relacionado (com os poderosos) e experiente. E há sempre, caso a maré vermelha avance sobre a cidade, o expediente das fake news - a questão é se os detentores do estado da arte no Brasil estão dispostos a ajudá-lo, correndo o risco de um concorrente forte em 2022.


17 de novembro de 2020

 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Da urgência de religiosos progressistas na política (ou, porque apoio Sheik Rodrigo Jalloul à Câmara de São Paulo)

Alguns amigos estranharam meu apoio a um candidato religioso à câmara municipal de São Paulo - o sheik Rodrigo Jalloul, do PSOL. Até agora ninguém veio me perguntar se eu me converti, como aconteceu quando comecei a colaborar com a Pastoral dos Migrantes, há cinco anos. Porém, antes que alguém distraído faça a pergunta, me antecipo: não, sigo ateu, e pra mim deus segue uma contradição lógica absurda, o que não me permite acreditar na sua existência. 

Também sigo achando que líderes religiosos não devem participar de política, tanto como candidatos quanto como cabos eleitorais. 

Falei em contradição logo antes, e a atenta leitora, o detalhista leitor pode logo disparar: e não há contradição em apoiar um líder religioso quando acho que religiosos deveriam se abster da política? Há - e nem precisa ser muito atento ou detalhista para notar. Contudo, como o que existe é o mundo real e não o que desejamos dele, e no real o que vemos são líderes religiosos reacionários tomando a política de assalto, seguir agindo como se vivêssemos uma situação ideal apenas nos deixa mais longe do ideal que almejamos.

A talebanização-cristã do Brasil torna urgente a presença de religiosos progressistas na política. Sua necessidade não é apenas a de fazer frente aos fundamentalistas cristãos: tem também uma função pedagógica, de dar voz a leituras alternativas das religiões (seja do cristianismo, seja das não-cristãs), que não encontram vez na mídia hegemônica, dominada pelo deus dinheiro - seja em sua versão com verniz cristão, seja na sua versão religiosa puro-sangue. Posso estar com a impressão errada, mas o que percebo é que a participação de Boulos na eleição presidencial de 2018 fez com que o MTST e congêneres, fora dos círculos mais extremistas, deixassem de ser automaticamente associados a "baderna" e "bandidos", ganhando direito de existir em suas reivindicações; o mesmo, penso, pode acontecer com os religiosos "comunistas", se tiverem a oportunidade de falar sem cortes: mostrar que o discurso social é pertinente, coerente e atraente, e que um deus amoroso e compreensivo pode existir sem abdicar de sua onipotência.

A esquerda, ao menos boa parte dela (em especial a esquerda acadêmica, limpinha e cheirosa, que deve ter conversado com alguém da periferia pela primeira (e última) vez em 2018, no vira voto), precisa relembrar sua história e a história das resistências populares na construção do Brasil, e repensar a questão religiosa (me senti no século XIX agora, falando em questão religiosa, sendo que outra questão que merece ser abordada seriamente é a questão militar), compreendendo que muitos movimentos populares costumam ter a religião como um amparo - da resistência dos escravos aos movimentos messiânicos do início do século XX, até chegar às CEBs e ao PT -, e aceitando que a religiosidade popular não é inferior à sua (me chama a atenção a proliferação de "religiosidades" individualistas na última década e meia, criadoras de uma pseudo-comunidade que faz sentido somente a uma classe média diplomada, individualista, preconceituosa e carente: astrologia, sagrado feminino, constelação familiar, reiki e uma miríade de crenças que não são capazes de criar uma rede de solidariedade como as religiões estabelecidas o fazem), e mesmo que a crença em deus é uma demanda legítima e que merece ser não apenas respeitada como satisfeita - isso eu demorei pra entender, inebriado pelo cosmopolitismo iluminista-liberal; e noto que a própria igreja católica, em seu braço social, preocupado em respeitar a opção de quem ajuda, e sem exigir contrapartidas, tem muita dificuldade em dar acolhida religiosa; os neopentecostais reacionários, por seu turno, bem atinados ao mercado, perceberam que onde há demanda convém prover oferta. 

Ou a esquerda volta a unir religião com política, ou mercadores e milicianos da fé seguirão avançando celeremente tanto na política institucional quanto na micropolítica dos corpos e hábitos, indiferentes aos princípios que gritamos que devem ser respeitados por serem avanços civilizatórios, além de cláusulas pétreas da constituição - não teve juiz federal que disse que o livro que ele seguia antes de qualquer outro era a bíblia e não a constituição?


Há uma série de religiosos comprometidos com a palavra de amor que as religiões trazem, o que os impele a agir com veemência diante da obscena injustiça social que vivenciamos. Notei o sheik Rodrigo Jalloul há um tempo, nas postagens do padre Julio Lancelotti, a quem tenho enorme admiração (pra mim, é o Eduardo Suplicy da igreja católica); além do apoio aos moradores de rua, junto com padre Julio e outros religiosos, também tem trabalho em comunidades carentes e com animais abandonados; tem o apoio de vários líderes religiosos, defende o estado laico e - condição imprescindível para uma eleição proporcional - disputa por um partido comprometido com as causas sociais, o PSOL (ou seja, se não for eleito, meu voto pode ajudar a eleição de alguma outra candidatura progressista, como o Juntas). 

Diante do contexto que presenciamos no país, ter na política institucional uma voz religiosa dissonante, comprometida com a democracia, a laicidade do estado e as causas sociais pode trincar o discurso fundamentalista cristão sobre o diferente, ajudando a gerar uma dissonância cognitiva em parte da população, de modo a reverter o quadro de talebanização-cristã para o qual caminhamos. 


29 de setembro de 2020

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Eleições paulistanas 2020: retrato de momento (à espera de Marta)


Ainda que desperte interesse da mídia, por ser a principal cidade do país, a eleição paulistana este ano tem gerado menos “frison” que em 2016. A explicação parece simples: além da questão sanitária do coronavírus (e nossa eterna disputa sobre se é gripe ou pandemia, se se combate com ozônio no reto e cloroquina ou com medidas sérias de isolamento social), o atual prefeito é do PSDB e favorito, e o perigo vermelho, por ora parece distante, com as esquerdas ainda enfraquecidas por anos de macarthismo midiático-judiciário.

Pesquisas recentes (RealTimeBigData, de 12 e 13 de agosto, e a sempre suspeitíssima Paraná Pesquisas, de 15 a 19) indicam empate entre Russomano e Covas, com França e Boulos distantes.

Primeiro ponto a destacar sobre estas eleições: se estamos analisando e discutindo como se estivéssemos dentro do jogo democrático é porque as esquerdas estão fortemente enfraquecidas, ainda no rescaldo de 2016, capazes de almejar uma ou outra vitória - seja em praças importantes, seja em locais secundários -, mas com baixíssimas chances de uma votação expressiva que dê algum recado, algo como em 1974 (temos uma pandemia em curso e um despreparado em Brasília, não sabemos o que isso pode gerar).

Segundo ponto: tal qual as eleições de 2016, estas devem tratar de temas federais também, não tão centradas apenas nas questões locais. Se lá estávamos no auge da criminalização da esquerda, já um tanto desgastada por anos no poder, para além do bombardeio midiático-judiciário; com golpe de estado em curso, crise econômica começando e mudanças em cima da hora sobre as regras da campanha (o que prejudicou Haddad e favoreceu Doria Jr. Creio que se houvesse segundo turno, o tucano teria muita dificuldade para se eleger); agora temos as esquerdas ainda na lona, precariamente tentando se recompor; um neofascista ocupando o Palácio do Planalto há pouco e jogando politicamente sem se preocupar com custos humanos, e uma enorme crise econômica, potencializada e obnubilada pela pandemia. E a pandemia, para além da mudança da data do pleito, deve trazer uma nova dinâmica às campanhas, diminuindo o corpo a corpo dos candidatos, dando ainda maior destaque à internet e televisão. No caso paulistano, quem tem tempo de tevê são os candidatos do sistema, quem tem conhecimento da internet são as equipes dos candidatos de extrema-direita e quem tem, a princípio, maior possibilidade de corpo a corpo é o candidato de direita. As esquerdas, bem... ainda estamos tentando nos desapegar do mimeógrafo.


Extrema-direita: o tamanho do fascismo na cidade

Discurso de ódio aberto, preconceito contra pobre, instrumentalização da democracia e do estado de direito (eufemismo para não democráticos) e projeto ultraliberal marcam essas candidaturas. São azarões, mas azarão também era Doria Júnior em 2016. Claro, há a diferença: Doria Jr tinha dinheiro para pagar uma competente equipe de marketing e tinha a estrutura (e a grife) do PSDB. Provavelmente um deles deve ter alguma votação um pouco mais de relevo, mas será interessante notar que os votos dados a esses candidatos (salvo um movimento de migração de voto no fim do primeiro turno para evitar um segundo turno com a esquerda) servirão para mostrar o tamanho do neofascismo puro e sem disfarces na cidade. Tem conhecimento e financiamento para uso das redes sociais - e um judiciário tímido em coagir abusos -, o que pode favorecer Hasselmann, Athur do Val ou Sabará (Fidelix e Paiva apenas completam o grupo, sem qualquer chance de destaque, me parece).


Direita: Russomano, o eterno cavalo paraguaio?

Russomano tem fama de cavalo paraguaio: bom de largada, ruim de chegada. Não se deve subestimá-lo, contudo. Classifico-o como direita apenas por conta de ter algum traquejo político e por seu discurso, tanto o econômico quanto o de ódio, ser mais mitigado (e discurso não é irrelevante, palavras, ainda mais de líderes, têm poder de induzir comportamentos). Disputando pelo partido da Igreja Universal, tem púlpito onde fazer campanha presencial com mais facilidade, o que pode lhe dar grande vantagem, além de cobertura favorável da tevê do partido, digo, da igreja. Por conta disso, tem forte penetração entre os evangélicos (o candidato do PSC não me parece ter chance). Se agir como bom político da direita e fugir dos debates (como fizeram, nas presidenciais, Collor, FHC e Bolsonaro), pode evitar tropeçar nas pernas e chegar forte no fim da campanha, com chances de segundo turno.


Centro-direita: Covas favorito

A princípio, Bruno Covas é favorito na disputa, não tanto por mérito próprio, mas por falta de um adversário à altura. Sua ascensão seguiu o modelo tucano de formação de novos quadros em São Paulo: o “vicismo” - rompido por Doria Jr pelas condições excepcionais de 2016. Destoa bastante de quem o pôs no cargo, e remete ao velho e finado PSDB de Montoro e seu avô Covas - uma centro-direita progressista (ou, dadas as cores locais da política, poderia ser até mesmo tido por centro-esquerda). Cometeu algumas falhas (eleitoralmente falando) na gestão da pandemia, como o rodízio radical, mas em geral se portou discretamente, retomando muitas das ações de Haddad no campo de direitos humanos e seguindo o projeto de privatização e criação de agências de controle do PSDB, sem apelar para o discurso de ódio. Tem no novo Anhangabaú (projeto de Haddad) outra provável vitrine - ou telhado, a depender de como mídia e redes sociais explorarão o fato. Com apoio da grande mídia, de vários partidos e a tendência do eleitorado paulistado a clicar 45, é improvável que fique fora do segundo turno. E muito provavelmente será o nome do partido em 2022 (supondo que nossa anormal normalidade democrática atual se mantenha), mas abandonar o cargo não parece ser um problema ao eleitorado da capital, até que isso se realize.

Márcio França é outro que emergiu com o vicismo tucano: foi receber de Alckmin o governo estadual que ganhou a projeção que permite pleitear a prefeitura paulistana - lembremos que no segundo turno de 2018 ganhou de Doria Jr na capital. Flertou com o bolsonarismo mas recuou, e se alia ao PDT de Ciro, provavelmente de olho no Palácio dos Bandeirantes em 2022. É com o “recall” de 2018, se equilibrando entre um “progressismo sui generis”, um discurso de endurecimento penal, que vai tentar pintar como candidato anti-tucano que não é nem de esquerda nem de extrema direita. Se chegar ao segundo turno, tem alguma chance, por poder aglutinar votos das esquerdas - mas não devemos esquecer que o não-voto em Doria Jr foi antes por este ter não cumprido a promessa de campanha.


Esquerdas: para o PT aprender por bem ou por mal

Acho horrível a expressão “se não aprende por bem, aprende por mal”. Geralmente os aprendizados que vem por mal chegam tarde e servem apenas para lamentação de quem aprendeu e regozijo impotente de quem avisou. É o caso do PT, ao que tudo indica: vai aprender por mal - resta saber quão tarde terá vindo esse aprendizado.

O nome do campo da esquerda nestas eleições, não resta dúvida, é o de Guilerme Boulos, do PSOL. O partido, por sinal, acerta, finalmente, ao ampliar sua base, antes restrita à esquerda acadêmica sectária, e dialogar mais de igual pra igual com movimentos populares menos escolarizados. Com Erundina como vice, deve conseguir algum apoio dos mais velhos e das periferias - os que vivenciaram sua gestão. Tem alguma chance de ir para o segundo turno, a depender do quanto estará fragmentado a direita e centro-direita: uma fragmentação média, com dois nomes fortes, podem tirá-lo do páreo; vários nomes ou um nome muito acima dos outros, dão-nos esperanças.

Há dois problemas principais para o PT ter candidatura própria em São Paulo este ano. O primeiro é a escolha do nome: em tempos de calamidade de saúde, na escolha entre um médico e alguém ligado aos transportes, optaram por este. Jilmar Tatto anima apenas a base mais sectária do PT e tem uma plataforma política coerente para 2013 - estamos em 2020, não sei se precisava lembrar. O segundo: ele tem tudo para passar mais vergonha que Alckmin em 2018, com a diferença de quem vai sair como grande perdedor não é ele, mas o partido: a insistência na candidatura, sem um argumento válido que a justifique, servirá, para analistas comprometidos com os donos do poder, como evidência do enfraquecimento do PT - salvo caso o partido consiga vitórias expressivas em outras cidades importantes do estado e do país.

Sua candidatura seria justificável se entrasse como candidatura de denúncia e se pusesse (abertamente) como linha auxiliar da candidatura de Boulos; contudo, para isso seria preciso abandonar anos de moderação do PT em favor de um discurso incisivo, de ataque aos adversários da direita e às instituições; contudo, se em 2018 Haddad ainda fazia elogios à Lava Jato, não parece que será Tatto, em 2020, quem elevará o tom. Para dificultar a vida de Tatto: o PT também vem um tanto rescaldado nas periferias, por conta da administração Haddad, que fez uma boa administração - mostrando que o velho PSDB poderia ter feito uma boa gestão da cidade -, mas bastante distante das periferias e muito voltada à classe média e à região central. A tentativa de Ana Estela Haddad como vice é a tentativa de ganhar essa classe média “haddadiana”, mas que dificilmente se empolgará com seu nome.


A grande incógnita: Marta

Todo esse cenário acima pode ser drasticamente mudado se Marta Suplicy (ou ex-Suplicy, não sei) entrar na disputa, seja como cabeça de chapa, seja como vice. A ausência de um nome convincente no PT, e seu apelo nas periferias da cidade podem lhe render votos. Sua saída do PT, da forma como foi feita, foi um passo bastante infeliz nas suas pretensões eleitorais: sem nunca deixar de ser vista como petista pelos antipetistas, passou a ser vista (justificadamente) como traidora pelos petistas e pela esquerda em geral - diferentemente de Erundina.

Se entrar na disputa, cresceria tirando alguns votos da centro-direita, do PT e do Boulos, porém depende de uma boa estratégia de marketing para que esse crescimento seja suficiente para pô-la no segundo turno. Ainda assim, mesmo se chegasse no segundo turno, nada garante que teria força suficiente para vencer o estado em 2022.

Se optar por ser vice de Covas, com tem sido alentado, além de trazer ao atual prefeito o voto das periferias, permite que ela assuma a prefeitura daqui dois anos, tenha outros dois para impingir sua cara na gestão e volte a disputar com força em 2024. A questão que ao ter uma “petista” como vice, Covas pode perder alguns dos votos para outros candidatos do espectro político - provavelmente menos do que ganharia, mas não convém subestimar as filiais do gabinete do ódio.


No fundo, parece mais que presenciamos uma eleição café-com-leite, que fingimos ser pra valer, impotentes de levar adiante a denúncia do estado de exceção que estamos vivendo - com beneplácito de PSDB, judiciário, grande mídia, grande capital, etc.



28 de agosto de 2020