terça-feira, 23 de novembro de 2021

A reeleição do projeto liberal-fascista prescinde do nome de quem o aplique

Oliver Stuenkel, professor da FGV, em artigo publicado há uns dias no El País, comenta que o autocrata precisaria da reeleição para ganhar força e pôr em xeque a democracia do país. A tese parece razoável: a primeira eleição do "outsider" seria um voto de protesto contra o sistema representativo liberal, já a reeleição seria o aval ao que foi rascunhado no primeiro mandato, dando força para o aprofundamento de mudanças que atentam contra democracia liberal burguesa e o estado democrático de direito. 

A argumentação para corroboração da tese, contudo, pouco (ou nada) colabora para sua defesa: começa com um contraexemplo - Fujimori que deu o golpe em apenas dois anos - e no balaio de casos apresentados, há uma mistura desconexa e sem qualquer contextualização, sem qualquer menção às oposições a esses pretensos autocratas, bem ao gosto de argumentações rasas e ideológicas, em que a conclusão não decorre das premissas, mas dá um verniz de seriedade e pode servir para alguma mobilização, mesmo que virtual [https://bit.ly/30T9yX6].

(Parênteses: essa tese é o argumento usado por cinco eleições federais contra o PT, de que se vencessem o próximo pleito implementariam uma ditadura - aprovando, inclusive, a "PEC da Bengala" para evitar o "aparelhamento" do STF (por petistas como Fux, Barroso, Cármen Lúcia, etc). Ao cabo, Lula e Dilma foram de um republicanismo de almanaque (no sentido de ignorar as condições reais, fora da teoria) e nunca passaram nem perto desse roteiro, enquanto FHC não precisou do segundo mandato para mudar a constituição para atender aos seus anseios pessoais, ou melhor, aos anseios de uma classe que se via encarnado nele e seu governo. Fecha parênteses)

Como eu disse, apesar de mal defendida, a tese de Stuenkel parece razoável - ao menos logicamente. Ainda assim, ele ignora algumas peculiaridades da Terra Brasilis, que poderiam nos ajudar a entender melhor nosso caminho para uma ditadura menos ou mais fechada (ou uma democracia mais ou menos aberta, se se quiser manter as aparências de normalidade que a grande imprensa tupiniquim adora). 

O elemento mais significativo ausente do texto do acadêmico talvez seja o poder que as classes dominantes tem sobre as instituições brasileiras, a ponto de apenas Vargas, entre 1930 e 1945, ter conseguido se sobrepôr ao seu controle estrito - mas era um contexto bem peculiar e um político também extraordinário. Tivemos 21 anos de ditadura militar em que houve revezamento de ditadores eleitos; e a ditadura caiu basicamente pela conjunção de fatores internacionais com um projeto de desenvolvimento mais autônomo por parte dos militares (o II PND), que fizeram com que essas mesmas elites os abandonassem e passassem tentar a balizar a democracia da Nova República - sendo atropeladas pelos movimentos sociais nascentes que confluíram para a finada Constituição Cidadã, de 1988.

Ao caso brasileiro atual. Se é uma regra que segundo mandato empodera autocratas, não sei, mas o que se desenha para um segundo governo de extrema-direita é o recrudescimento do que foi feito até agora pelo governo Bolsonaro, e o acabar de vez com o fiapo de democracia que resta no país - assim como fez Ortega na Nicarágua -, com implementação de um estado de exceção constitucional (como foi feito pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, que nunca revogou a constituição de Weimar). Repare que falo em "segundo governo de extrema-direita" e não "segundo governo Bolsonaro", justo porque, ao gosto da tradição das nossas elites, o que importa mesmo é que o projeto tocado pelo executivo seja do seu agrado (e dos seus financiadores internacionais). 

Como disse Rosângela Moro sobre seu marido e o atual presidente: "Eu vejo uma coisa só". E de fato são: o projeto de ambos, em seus detalhes, é o mesmo. A diferença é a forma de aplicá-lo - e nisso Moro parece ser mais bem assessorado para passar um verniz de pessoa menos tosca, o que agrada nossas elites e seus asseclas de classe média. 

Por isso, uma eventual eleição do ex-juiz de camicie nere me parece mais perigosa do que a reeleição do atual presidente: seria, no fundo, a reeleição do projeto fascista-liberal posto em prática desde o golpe de estado de 2016, agora com aval cego das elites e da mídia corporativa nacionais (e internacionais), o que permitiria uma perseguição feroz a todo tipo de dissidência - dos famélicos que "roubam" comida vencida do lixo, aos movimentos sociais, passando pelas lideranças políticas de envergadura, de qualquer espectro político (ou seja, tirando esse último aspecto, basicamente o que ele fazia como juiz de primeira instância [https://bit.ly/30TvVLv], agora como presidente da república, comandante em chefe das forças armadas e com o poder de nomear os chefes dos órgãos de investigação e espionagem e ministros do STF e STJ). 

O Partido Militar já está com ele (possível que indique o vice, dizem que seria outro egresso do governo Bolsonaro) e o PSDB deve aderir em breve (se é que o partido ainda tem alguma relevância política verdadeira, fora do interiorzão de São Paulo). Os partidos fisiológicos de direita, esses poderiam ser comprados a granel - apesar de toda a antipatia que nutrem pelo ex-juiz. A esquerda não deve fazer uma votação expressiva que lhe garanta poder de veto no congresso. Assim, a eleição de Moro desarticularia a (já enfraquecida) oposição efetiva que há contra Bolsonaro. A assinatura de dois tratados cosméticos na área do clima e da preservação da Amazônia faria ele bem quisto internacionalmente. Mais que Bolsonaro, Moro é fraco e precário, mas quem o sustenta, não.

Restam ainda duas questões essenciais: se Moro vai mesmo concorrer à presidência e se possui chances reais de vitória, com todo seu carisma e empatia. 

Há muitos analistas cantando que Bolsonaro não disputará a reeleição: com isso a faixa da direita e extrema-direita fica aberta para ele, que passa a ser postulante ao segundo turno, caso haja - Ciro tentou entrar nela, mas tudo o que conseguiu foi perder boa parte do que tinha pela faixa de centro-esquerda e centro-direita. Lula é outro empecilho nesse projeto: além de estar muito à frente nas pesquisas e ter uma rejeição baixa, em um debate humilharia Moro de tal jeito, caso este tivesse coragem de participar, que seria difícil o marreco manter os votos - e não haveria edição do Jornal Nacional que o salvasse. Há a alternativa 2018: impedir o ex-presidente de disputar o pleito. Como judicialmente isso parece difícil (no máximo, provável que a campanha petista seja impedida de falar da Lava Jato ou da atuação de Moro como ministro do Bolsonaro), haveria a possibilidade repetir o atentado a Lula, feito em março de 2018, no interior do Paraná, mas dessa vez com profissionais: candidato morto não disputa eleição - o ponto seria só não ser muito próximo da data do sufrágio, de modo que houvesse briga entre seus sucessores a ponto de enfraquecer o PT e a esquerda (Ciro poderia surgir como opção nesse caso, mas se queimou suficiente para ter poucas chances mesmo nesse caso).

Faltando pouco menos de um ano da eleição de 2022, mesmo sem saber quem serão os concorrentes de Lula, já sabemos como correrá a disputa: imprensa corporativa agindo como braço publicitário do seu candidato, demonizando ou invisibilizando as esquerdas e toda fala que não entoe sua cartilha ultra-liberal, e a "terceira via" com as mesmas propostas que o PSDB apresenta desde 2010: anti-petismo raivoso e valores conservadores hipócritas. Deu certo em 2018, quando a terceira via do momento venceu, a despeito de todas as análises dizendo o contrário. Não creio que se repita em 2022, mas é de bom tom não subestimar o poder de nossas elites. 


23 de novembro de 2021

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Os desajustados de hoje serão os carrascos dos desajustados de amanhã

Ao cabo de meu último texto, “Acolher os fracassados da sociedade” [bit.ly/cG211108], senti certo incômodo (que me acompanhou durante sua escritura) por não ter sido mais explícito sobre quem tratava como desajustados (ou "fracassados") na sociedade: as pessoas pobres, as periféricas, as negras, as mulheres, as gordas, as "desviantes" no gênero ou na orientação sexual... e também os homens brancos heterossexuais (ao menos na autoficção de seu discurso - e digo isso como alguém que levou quase quatro décadas para se dar conta de que não se identifica com o gênero masculino). Enquanto escrevia, pensei se não caberia ilustrar com algum exemplo dessa "acolhida perversa" feita por seitas evangélicas e pela extrema-direita. Até para evitar um texto muito longo, desisti - mas agora desdesisto e me embrenho nestas novas linhas. Ainda mais porque a reflexão que levou ao texto anterior surgiu quando eu caminhava por minha cidade natal e por lembranças de quando morei aqui (até os 17 anos). 

Desde sempre fui um ímã de pessoas tortas - e segui sendo quando mudei de cidade (de nove relacionamentos afetivos significantes que tive, por exemplo, apenas uma das garotas não era desajustada). Na infância, meus amigos eram meninos que sofriam bullying ou tinham potencial para sofrê-lo; na adolescência juntaram-se ao círculo meninas visadas, por serem de "má fama" (porque com dezesseis anos já transavam e fumavam), e algumas que só não sofriam porque eram meninas (e não eram gordas nem tidas por masculinizadas). Essa tendência a atrair para meu entorno de amizades potenciais (e reais) alvos de bullying atribuo ao fato de que eu próprio havia sofrido quando tinha oito anos e sempre me recusei a repetir a experiência com outras pessoas - e foi algo marcante na minha formação, por mais que a atuação de meus pais e da escola Nossa Escola tenham sanado o problema rapidamente. Curiosamente, dos garotos, a maioria desses amigos e colegas próximos eram católicos praticantes, fervorosos ou evangélicos. Dentre os católicos, esses amigos depois se revelariam ou homossexuais ou fascistas homofóbicos - sem meios termos. Quanto aos evangélicos, quem fazia o bullying, boa parte das vezes, eram pessoas da própria igreja - quando não da própria família nuclear!

Teria o exemplo de um colega evangélico do ensino médio, mas tomo o caso de um amigo de infância e adolescência (que por acaso frequentava a mesma igreja que o Dallagnol). 

Era uma pessoa muito inteligente, não só tirava excelentes notas como lia muito além do que a escola exigia (lembro que enquanto estudava para o vestibular ele estava lendo Hobsbawn e outros livros), e não era lento de raciocínio (ao menos era bem mais rápido que o meu, por isso faço essa afirmação sem medo de errar). Estudando num colégio "de resultados", voltado a uma elite que só se interessa por capital monetário, de criança pequena até adolescente, sempre fora o cara torto, zuado, posto de canto, que tentava se enturmar a qualquer preço, mesmo que esse preço fosse ser ridicularizado e humilhado. 

Duas formas de sofrer bullying: eu, recusando a "brincadeira" e de algum modo querendo distância dos agressores (já que não fazia sentido eu tentar bater em oito coleguinhas, pois seria certo que apanharia); ele, aceitando tudo isso como algo natural, na esperança (vã) de ser chamado para as brincadeiras no contraturno, me contando com um sorriso meio bobo como se fosse divertido ser humilhado pelos meninos mais reconhecidos do colégio.

Diante dessa integração sadia, sem suporte dos pais (uma família bem machista, com um pai extremamente inseguro - e não entendam por isso qualquer espécie de violência física, apesar de várias outras histórias cabulosas), com doze anos tinha ideações suicidas e acabou indo a um psiquiatra, que receitou antidepressivos. De pronto começaram as fofocas, tão típicas de cidade pequena e de comunidades religiosas moralistas: de que ele não era crente de verdade, que não tinha fé, que tinha "se perdido", que estava andando com gente errada (fora da igreja, era basicamente eu e dois ou três amigos meus, geralmente em minha casa), que era meio maluco (aquele estigma básico, principalmente entre conservadores, de que buscar qualquer ajuda psi é sinônimo de loucura e fraqueza). Em sua casa, presenciei várias discussões com seu irmão mais novo, em que ele logo recebia como resposta: "você é louco, por isso tá assim", ao que os pais recriminavam com a firmeza de uma gelatina fora da geladeira numa tarde de quarenta graus: "não fala assim com seu irmão...", enquanto meu amigo ia para o quarto chorar (sem direito a consolo). Na época eu me horrorizava tanto com a fala do irmão como com a tibieza dos pais; hoje noto que ele apenas vocalizava a opinião da família e de toda a igreja - por isso a complacência: deviam encarar como parte da educação que o primogênito precisava para forjar seu caráter e que eles não tinham coragem de aplicar.

Três anos depois a família se mudou para Curitiba, para um bairro de alta renda. Quando o visitava, não tinha como fugir dos torturantes encontros de jovens da sua igreja (isso explica minhas ausências de todas missas na Pastoral dos Migrantes, nos quase seis anos que trabalhei com eles, mais que meu ateísmo). Lá, contava ele com uma assertividade marcante, estava entre os seus melhores amigos. Tratava-se de um bando de jovens brancos, de classe média, média-alta, levemente descolados nas aparências, que andavam de ônibus de vez em quando (ousados!), falavam gírias entre uma reza e outra (e pareciam invejar a seita concorrente que soltara um "deus é mano" antes deles, pelo tanto que falavam dela), e faziam brincadeiras adolescentes entre si. Dentre as mais animadas estava caçoar do meu então amigo, cujos apelidos carinhosos eram "bugre", "do mato", "caipira" - e ele ria junto, enquanto fazia o que lhe era ordenado, como um cão sem dono que abana o rabo pra quem lhe chuta mais fraco. 

Certamente pesava sobre ele também a suspeita de "homossexualismo" - justificada por sua dificuldade com mulheres -, a ponto de o pai ter tirado uma foto dele com a primeira menina que beijou, em um hotel fazenda - foto que ele mostrava para todo mundo (isso na época da máquina analógica), numa necessidade triste de afirmação. Mesma necessidade que o levava a frequentar os puteiros na rua Augusta, quando se mudara para estudar em São Paulo - e diametralmente oposta às necessidades que pulsavam em suas constantes corridas noturnas em regiões de prostituição masculina e transexual, quando treinava para maratonas que fazia questão de registrar em foto e pôr em seu Orkut com a legenda "running for the lord" (assim, em inglês, creio que porque o velho testamento deve ter sido originalmente escrito na língua de Shakespeare).

Hoje ele é um homem feito, pai de família, com graduação e pós nas melhores universidade públicas do Brasil, e como bom cidadão de bem, foi para os Estados Unidos assim que terminou os estudos, "porque no Brasil não se valoriza o médico", argumentou. 

Lembro daquela que foi nossa última conversa de verdade, em frente o teatro municipal de Pato Branco, madrugada adentro. Tínhamos os dois passado na USP, e enquanto eu falava em seguir carreira acadêmica na psicologia, ele dizia que iria para a Cruz Vermelha ou Médicos Sem Fronteiras. Vinte anos depois, eu não virei professor universitário e ele sequer trabalhou no SUS. Nos EUA, além de médico, atua como pastor, onde escreve textos ditando regras para o corpo das mulheres, com base em um deus que só é amor para os sádicos e perversos. Nos encontros que tivemos depois, já éramos dois estranhos usando máscaras grotescas para disfarçar o óbvio ao outro: ele se achava um rei por ser estudante de medicina, adorava desmerecer enfermeiras e técnicas de enfermagem, e gostava de contar como acompanhava a galera nas zuações de outros colegas - deixando transparecer vez ou outra que também ele era um dos alvos das ridicularizações, nas insistentes justificativas das formas físicas das mulheres com quem conseguia ficar (lembro de um texto seu argumentando que não vira que era uma gorda estrábica a moça que beijava na festa porque estava escuro - creio que ela também não deve ter visto que ele era esse tipo de pessoa que estava ficando porque devia estar muito bêbada, mas não sei se escreveu um texto sobre ele).

Ao recordar desse meu amigo, admito sentir raiva. Do que? Nem sei direito. Dele. De ter sido seu amigo (como se o futuro estivesse contido naquele passado interiorano). De meu pai, que como uma sibila duvidara dos anseios expressos por meu amigo naquela última conversa, quando lhe contei, e vaticinou que ele seria o tipo de médico que deixaria o paciente morrer na porta do hospital, caso não tivesse dinheiro para pagar a consulta (deve ser essa a valorização dos médicos que ele tanto gosta nos EUA). De estarmos numa sociedade em que o pensamento que hoje ele expressa tem vez e voz, cada vez mais, numa marcha macabra para as trevas. 

Mas sua recordação também me traz decepção, uma grande tristeza: um lamento impotente de "não precisava ser assim". Quando começou a tomar remédio, lembro de ter comentado com outros amigos que sua depressão era por conta do limite imposto pela religião (não que isso sirva para toda religião, nem para toda pessoa), que o impedia de crescer tudo o que podia e descobrir um mundo bem mais amplo que o autorizado pela igreja e pela família. Eu tinha quatorze anos, e para eu ter percebido isso, sinal que era muito evidente! Sem um grupo que o acolhesse de verdade, seguiu o caminho mais óbvio, de adequação aos padrões e valores - da sociedade e dos seus pais -, com a mediação perversa da igreja, que atuava num morde-assopra abusivo e eficiente. 

Ainda que seja bem mais refinado que tantos pastores (ou mesmo seu irmão, um médico abertamente fascista e poltrão; ao que tudo indica, com o mesmo caráter de quando humilhava o irmão sem remorsos), hoje despeja todo seu fracasso, todo seu ressentimento, todo o ódio do que teve que se tornar para ser aceito, contra a primeira minoria vulnerável que encontrou ao seu alcance - as mulheres. E, superando seu pai, foi além de sua esposa. Que ser pastor fosse mesmo sua vocação (já que médico definitivamente não era), poderia ter sido do nível de um Henrique Vieira, uma Romi Bencke, um Ariovaldo Ramos - tinha plena capacidade intelectual para tanto. Mais que um fracassado - a despeito de que possa estar ganhando muito dinheiro, não sei -, ele também é um retrato da nossa incapacidade de ouvir e potencializar os melhores sentimentos nas pessoas, suas aspirações mais nobres. Ele é mais uma prova viva do nosso fracasso enquanto sociedade.


10 de novembro de 2021

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Acolher os fracassados da sociedade

Luis Nassif costuma comentar que Olavo de Carvalho tem o dom de convencer fracassados a acreditarem que seu não-sucesso é detalhe e o culpado são os outros - daí o exército de ressentidos que o seguem e estão dispostos a destruir tudo o que foi identificado pelo guru como fator de seu fracasso, menos aquilo que de fato o é: uma sociedade calcada na concorrência desmedida e que divide as pessoas entre as de sucesso (curiosamente as capitalistas ou que estão próximas desse núcleo) e as fracassadas (que se subdivide entre as que já notaram seu fracasso e as que ainda se iludem esperando o bilhete premiado da meritocracia que cai sempre no colo dos mesmos) - usando como régua para sucesso ou fracasso capital monetário e social.

Muito se tem dito que o avanço dos evangélicos se deu por conta da recusa da igreja católica de João Paulo II em acolher os pobres e os periféricos, preferindo uma cruzada ideológica (e quixotesca) contra o comunismo. 

Há, porém, todo um espectro de evangélicos que não são das classes baixas, e que ainda não aparecem o tanto quanto deveriam nas análises. A existência desse perfil é extremamente importante para completar o discurso do "aqui se faz, aqui se ganha": se evangélicos se restringissem apenas a pobres e periféricos, não haveria como sustentar que deus ajuda já nesta vida. Ao mesmo tempo, eles não precisam de uma educação ascética, pois já possuem algum capital, nem me parece que a justificativa moral de que sua pretensa riqueza é uma benção divina seja suficiente para a conversão: uma vez com dinheiro, ainda mais se for ganho de modo "legal" (as aspas porque nem sempre o que é legal é moral), essas pessoas não deveriam se dar ao trabalho de prestar contas a quem quer que fosse - exceção feita à receita.

Talvez o discurso de louvor da pobreza da igreja católica seja  uma explicativa para a conversão de remediados para a crença evangélica: tendo aprendido nas aulas de catequese que cobiça é pecado e a riqueza seria sua materialização, a teologia da prosperidade e afins livraria tais pessoas de assumirem a dimensão política de suas escolhas e atos, entregando os ônus que delas decorrem a um ser (pretensamente) onipotente, que aparece como fiador do que possa ter feito de mal na sua escalada social.

Há também o elemento de acolher o fracassado na sociedade e fazê-lo de algum modo um vencedor. Nas classes baixas, é fácil identificar o fracassado e fácil dar um "banho de loja" (literalmente) que faz com que ele construa para si próprio uma manjada autonarrativa do mito do herói que galgou graças a deus. Nas classes médias isso é mais difícil, já que desde o berço a herança está posta e as oportunidades, abertas. Ainda assim, é visível um perfil de fracassado a esses que a miséria financeira não aflige: são os desajustados, que não conseguem se enturmar, por não serem "normais", e não raro acabam por sofrer bullying.

A igreja surge, então, como o lugar acolhedor, onde ele é aceito com menos violência que em outros grupos, que o estimula a se moldar ao "jeito certo", com paciência com seus deslizes, e que perdoa seu passado - ainda que faça questão se sempre rememorá-lo caso questione o caminho "sugerido". Esse processo não deixa de ser violento, de acarretar sofrimento - uma vez que não é uma aceitação de fato da pessoa, mas apenas na medida em que ela cede aos padrões impostos pela moral do grupo -, mas apresenta uma alternativa bem delineada de onde se vai chegar: a felicidade compartilhada (haja visto que a felicidade individualista do consumo já mostrou a essa classe ser uma miragem, ao menos se tida isoladamente).

É também esse tipo de pessoa que as esquerdas tem perdido na "guerra cultural" travada pelo neofascismo atual. E vai seguir perdendo, se em nome de uma pluralidade abstrata e que preza por uma pureza irreal seguir execrando quem não se encaixa no "jeito certo" de ser dissidência. A tal "cultura do cancelamento" sempre houve, mas ganhou outra dimensão com a internet, e tem servido muito mais para empurrar os desajustados para o discurso daqueles que num primeiro momento se mostram abertos a acolher os "tortos" e incompreendidos, do que para gerar uma autorreflexão em quem quer que seja (compare-se os efeitos dos muitos cancelamentos que tem ocorrido com o da chamada de atenção que Ana Maria Braga levou após falar em "racismo reverso" [https://bit.ly/30a2gxO]). 

Ou nos lembramos que todos os excluídos da sociedade - independente se por questão de classe ou por questões existenciais - foram forjados nela, e não tem por obrigação nascer sabendo e conseguindo enxergar diferente do que sempre lhes foi ensinado - na família, na igreja, na escola, na televisão, na internet -, e aprendemos a escutá-la realmente, para acolhê-las de fato, com o que é possível potencializar sua dissidência em prol de um devir que não seja um fluxograma de consumo e destruição do ambiente; ou seguiremos tentando convencer as paredes do quarto que fizemos tudo o que podíamos, enquanto lamentando impotentes o avanço do ultraliberalismo neofascista sobre todas as esferas da vida.

08 de novembro de 2021.