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sábado, 5 de junho de 2021

03 de junho: o dia em que tivemos que admitir que não há mais democracia no Brasil

Desde quando a ditadura militar caiu, em 1985, o Brasil nunca viveu uma democracia plena - visto que o acesso a direitos básicos apregoados pela constituição nunca foi efetivado para maioria da população, e falo de direitos muito elementares, como o direito à vida nas abordagens dos militares que fazem policiamento e o princípio de presunção de inocência (nem vamos entrar no direito ao trabalho, moradia digna, etc). Tivemos arremedos de abertura democrática, em especial nos três primeiros governos petistas. Sim, tivemos eleições também! Como eleições tivemos em 1978 (numa emulação do sistema dos EUA, Figueiredo venceu com 61% dos votos, índice que o bolsonarismo esperava alcançar em 2018), e como em todo o período ditatorial tivemos congresso funcionando, com oposição e situação - a cordialidade brasileira no seu jogo de aparências sem efetividades. Desde 2010, entretanto, está escrito nas estrelas da bandeira: o brasileiro vota errado. Uma vez, tolera-se, duas, não: 2015 veio o golpe - ainda acho que Dilma não abriu totalmente o jogo do que aconteceu entre a eleição e o início do segundo mandato, talvez na esperança de garantir brechas por onde alguma democracia possa ser construída. 2018 já não tivemos mais o risco do brasileiro votar errado: mídia, judiciário e forças militares estiveram presentes e atuantes para garantir um pleito justo aos interesses das elites mais sedutoras a egos mesquinhos. 

Com a concentração da mídia no Brasil, é ingenuidade achar que alguma vez houve eleição limpa durante a Nova República: o que tivemos foi uma força popular grande o suficiente e bem canalizada, e algum conhecimento das artimanhas espetaculares (com os ocorridos em 1982 e 1989), para não deixar o golpe acontecer. Entretanto, essas mesmas forças, inebriadas pelo poder, iludidas por um republicanismo de almanaque que serve apenas para discussões beletristas acadêmicas e pauta moral para oportunistas, desatentas ao que eram as novas tecnologias de informação recém surgidas, e com uma leitura equivocada das elites brasileiras, ficaram deitadas em berço esplêndido, sem alterar efetivamente a correlação de forças. Resultado: em 2018 a Nova República coroou a velha ESG, depois que esta fez um breve estágio no governo ultraliberal-neofascista Temer: Bolsonaro venceu uma eleição na qual ele estava impedido de perder. Como será a de 2022 - salvo raras combinações de circunstâncias. 

Se ainda acreditávamos em alguma possibilidade de que os entendidos nas forças armadas estivessem errados, o 3 de junho não permite mais ilusões: não há mais instituições de Estado. Alarmados pelo monstro que ajudaram a criar, o judiciário ainda pode voltar atrás e reagir: STE pode cassar a chapa, o STF pode afastar o presidente, pode decretar tudo o que quiser, em vão: o judiciário não possui sequer um cabo e um soldado para levar o recado ao presidente. 

Bolsonaro não tem o apoio da maioria da população, e isso é mero detalhe (como em 64 os militares tampouco tinham): tem a maioria dos donos da grana, a maioria dos seus serviçais (médicos, advogados, jornalistas, economistas e outros “doutores” assalariados que se acham ricos), a maioria da mídia, que faz uma oposição tão aguerrida quanto a seleção brasileira em certo jogo contra a Alemanha no estádio Mineirão; se não tem a maioria, tem parte considerável do judiciário e do Ministério Público, e mais importante: tem a grande maioria das armas: forças armadas, polícias e forças paramilitares (conhecidas no Rio de Janeiro como milícias, no resto do mundo como máfias). 

As forças progressistas e populares precisam assumir a situação tal qual ela é: nossa democracia, que era de baixíssima intensidade, é, desde 2014, uma democracia de fachada. Ou, sem firulas: não é democracia. Precisamos parar de esperar que instituições teoricamente de Estado, mas que sempre foram guarida para uma casta de mandarins entreguistas, tenham pela primeira vez na sua história qualquer apreço pelo Estado, pelo país ou pela sua população: carro blindado não é empecilho para essa casta, a universidade de Lisboa ou de Cornell estão ao alcance de seus filhos, e Miami fica só a oito horas de São Paulo. Não vai haver nenhum movimento por parte da maioria que compõe essas instituições e não faz sentido tentar restaurar uma democracia que sempre foi uma quimera: é necessário um novo pacto social.

Contudo, o que vemos é uma permanente discussão sobre 2022 - o que é válido e necessário, diga-se de passagem -, como se a eleição de Lula (ou Ciro, dentre os que ainda acham que ele é viável) fosse capaz de resolver, por si só, qualquer coisa. Sem mobilização, sem construção de base, pouco adianta vencer eleições majoritárias: minora aspectos mais medonhos e gritantes, mas a essência da nossa democracia tutelada segue a mesma. Contudo, a situação é ainda pior: sem mobilização popular, não vai ter vitória de Lula ou de qualquer nome progressista em 2022 - o contexto político mundial não sinaliza apoio a uma ditadura explícita, então é de se crer que teremos eleições fajutas, como as de 2018.

Com isto não quero dizer que estamos derrotados, pelo contrário: o futuro em aberto está. Só que precisamos abandonar o pensamento mágico de um salvador da civilização e passar a atuar desde já (e não só nas nossas bolhas virtuais): a constituinte de 1988 e a desconstituinte de 2016 em diante são mostras do quanto a mobilização popular faz diferença mesmo nos acordos das elites que alijam a maioria do povo. Vira voto em segundo turno é ação de desespero - até agora sem demonstrar resultados efetivos: precisamos virar percepções de mundo, mentalidades, formas de se engajar na política.


05 de junho de 2021


terça-feira, 21 de janeiro de 2020

A esquerda não sabe mais o que é trabalho de base

2019 passou. O governo Bolsonaro, como era de se esperar, foi um desastre, um ataque diuturno ao trabalhador, aos mais desfavorecidos, à educação, aos serviços públicos, e o que se viu foram algumas poucas manifestações - muito aquém do que as medidas antipovo exigiam. Parte da dita elite progressista, em seus apartamentos em bairros centrais, em suas salas com ar condicionado, voltou a acusar o povo brasileiro de passivo - Mino Carta, na sua prepotência europeia, me parece o tipo ideal dessa esquerda que quer que o povo se revolte enquanto ela se ocupa de afazeres mais nobres.
Anos atrás também eu fui adepto dessa tese da passividade, até ter um pouco mais de noção de mundo, e notar que a recusa também é uma estratégia de revolta - assim como a alegria -, ainda mais num país onde a nação é feita a partir do território, não do povo, o que torna a carne negra ainda mais barata no mercado - e não adianta os "morenos" e os "mulatos" reproduzirem o pantone racial das elites, pois na hora da geral, a polícia militar sabe identificar quem é branco, quem é suspeito; na hora do emprego, o recrutador sabe ver quem é "mais bem apresentável" para a vaga.
Porém, se não tivemos manifestações nas ruas na medida que necessitávamos, não quer dizer necessariamente que nada foi feito. 2019 passou e aquele movimento iniciado com as eleições de 2018, em especial no segundo turno, com professores universitários organizando mutirões para discutir voto nas periferias pobres, com o pessoal classe média indo com um banquinho e uma placa conversar nas ruas sobre política, tudo isso se mostrou apenas uma ação fugaz em um momento de desespero, não gerou qualquer enraizamento.
É aqui que o ponto fica preocupante: vindo de anos de desarticulação de trabalho de base, é até lógico que manifestações em 2019 não tenham tido a força necessária: insistir nessa desarticulação, esperando pela "grande noite", apenas torna nosso desejo de mudanças profundas na sociedade um vago sonho idealista, desancorado da realidade - por mais que se baseie em pesquisas e dados e números sobre a situação do "brasileiro médio".
Em compensação, a direita, em especial seu braço mais reacionário - esse que tem dado suporte ao neofascismo de Bolsonaro, Doria Jr, Huck, etc -, esse assumiu a vanguarda no trabalho de base de modo inconteste.
Algumas das coisas que a classe média descobriu ano passado é que política não se encerra no voto, e que fazer política cansa: é preciso deixar de fazer o que se estava fazendo e ir para a rua, trocar o cinema ou a conversa com os amigos no bar por diálogos muitas vezes tensos com gente estranha - ou mesmo com conhecidos. Difícil fazer isso todo dia. Sem articulação, difícil fazer isso qualquer dia.
E essa conversa que se poderia ter tido com alguém até então cercado pelo monólogo repetido pelo pastor e pelo Bonner, poderia amanhã se multiplicar em mais uma pessoa, e mais outra e mais outra. Não como a certeza de algo, mas como uma dúvida desse mundo acabado e solucionado dado pela religião, pelo mercado, pela mídia. A ausência dessas conversas é a negação desse efeito multiplicador da dúvida.
A direita, em especial via igrejas evangélicas - com a retaguarda da sempre onipresente mídia -, faz esse trabalho de base com perfeição. Organiza não mutirões esporádicos em momentos de desespero (seu), mas mutirões permanentes para conversar com aqueles em momentos de desespero - na porta do presídio, no sopão na rua, no universitário perdido e acuado por veteranos agressivos; a conversa com dois hoje será reproduzida para mais seis amanhã, e assim por diante. Não é preciso que cada um vá para a rua todo dia, é preciso que a mensagem chegue todo dia na rua e circule - e quanto mais natural e organicamente circular, melhor.
Tudo isso me veio à mente por conta de um cartum do cartunista Batata Sem Umbigo. Diz o cartum: "Ela trabalha muito: madruga na porta das fábricas para conversar com os trabalhadores". Ora, ir todo dia para a porta de fábrica, por mera convicção, é algo muito difícil, ainda mais quando se tem a vida para levar, as contas para pagar, a casa para cuidar. Fiquei pensando: às cinco, seis da manhã, no caminho para as empresas, há vários vendedores ambulantes de café da manhã. É uma cena de São Paulo que sempre me atraiu - esse café na rua, que parece improvisado e ao mesmo tempo parece ter algum laço a mais que a mera circulação de dinheiro. Em volta da mesa dobrável com uma toalha simples se juntam, por algum momento, algumas pessoas. Certamente, além de falar de comida ou do tempo, devem conversar sobre algum assunto outro - um tema importante posto pela mídia ou um problema pessoal que assola. O vendedor de café está ali, ouvindo, respondendo, propondo soluções - outros clientes devem também palpitar eventualmente. Qual o repertório desse vendedor, dessa vendedora? A partir de que discurso ela apresenta suas propostas de soluções ao trabalhador anônimo que todo dia compra seu bolo? Será de algum pensador de esquerda? De algum conhecido mais "esclarecido" da classe média? Quando consigo captar algo dessas conversas, o que mais escuto é a voz do pastor - do pastor mais reacionário -, a delimitar o problema, apontar as causas e sinalizar as soluções.
Nós nos perdemos em nossas bolhas de internet, em nossas bolhas metálicas que circulam pela cidade, em nossos fones de ouvidos para ninguém nos incomodar no metrô, em nossos bairros relativamente assépticos, em nossos programas entre iguais (cuja discordância maior será Ciro Lula ou Boulos e não se prender preto em poste foi legítimo ou não); deixamos de conversar com as pessoas na rua, e passamos a ignorar quem nos serve o café. Enquanto isso, o trabalho de base segue sendo feito.

21 de janeiro de 2020

Batata Sem Umbigo no Instagram: https://www.instagram.com/batatasemumbigo/

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Aula de democracia dos estudantes de São Paulo

Ao ouvir a entrevista do secretário de educação do Estado de São Paulo, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, na rádio CBN, quarta-feira, o primeiro escritor que me veio à memória foi Millôr Fernandes: "Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim". As alusões bibliográficas não se encerraram por aí: o duplipensar orwelliano também era claro na fala do secretário. Para não falar na máxima de Goebbels, tão em voga nestes Tristes Trópicos - afinal, se algo é repetido o tempo todo, só pode ser verdade, não?
Em quarenta e cinco minutos montados para o secretário "explicar para a população" as medidas adotadas pelo governo tucano, Voorwald conseguiu irritar as muito complacentes entrevistadoras, Fabíola Cidral e Ilona Becskeházy. Para alguém um pouco mais crítico, sua fala foi temerária do início ao fim, uma boa mostra de desapreço à democracia por parte dele e do governador para quem trabalha, o senhor Geraldo Alckmin.
Diz o secretário que o projeto de reorganização das escolas está em "fase de discussão" e que não é uma medida atabalhoada, antes parte de um processo que vem desde dois mil e onze - ou seja, desde a gestão anterior. Duas questões importantes quanto a isso: se é um processo, como os agentes diretamente envolvidos - professores, alunos e pais, para não falar nos cidadãos sem ligações diretas com a escola - não estavam a par? Inadmissível em um governo sob regime democrático um processo que afeta toda a sociedade passar quatro anos na sombra. Já dizer que o fechamento das escolas está em fase de discussão é negar a realidade, ao gosto do Grande Irmão, de 1984, ou como bem definiu Millôr Fernandes: desde quando baixar uma norma determinando o fechamento de escolas é discussão? O secretário usa como exemplo de "abertura para o debate" do governo o fato de ter revertido a decisão de fechar duas escolas, por terem conseguido provar que eram importantes. Isso não é debate, é ceder a movimentos de resistências: diante de uma norma ditada de cima, decida em gabinetes com ar-condicionado, sem qualquer discussão com a sociedade, provou-se que os tecnocratas que a elaboraram durante quatro anos foram incapazes de perceber a relevância dessas duas escolas - nada surpreendente, já que a comunidade é um dos atores mais indicados para indicar a importância e os porquês de dados equipamentos públicos.
Como todo político no poder, Voorwald tenta desqualificar os movimentos reivindicatórios e todo e qualquer crítico de sua proposta. Sobre as críticas dos professores das faculdades de educação da USP e da Unicamp, disse que não tinham qualquer importância, que os pesquisadores de educação pouco (ou nada) sabem de educação - e completou que se a crítica partisse da FEA, aí ele daria crédito. 
Na sua fixação em desqualificar as ocupações - que são, afinal de contas, contestações efetivas e não beletrismo acadêmico em busca de revistas indexadas -, conseguiu tirar do sério as entrevistadoras. Depois de repetir pela enésima vez que seria anti-democrático e inadmissível que as escolas "invadidas" fosse trancadas pelos invasores, aparelhados por "movimentos políticos". "Secretário, o senhor já falou quatro vezes isso", retrucou a certa hora a entrevistadora, diante de um secretário que ignorava a questão feita para explicar o plano para a população. Pouco a seguir, depois de Voorwald chorar novamente sua ladainha sobre a falta de democracia dos alunos aparelhados por "movimentos políticos", a entrevistadora teve que lembrar o secretário de educação que ele não podia generalizar, pois a maioria das ocupações não ostentava bandeiras de partidos ou do MTST.
Estavam numa empresa do grupo Globo, é claro que passou sem problemas o discurso proto-fascista do ex-reitor da Unesp: ao usar o argumento de "movimento político" para desqualificar o protagonismo dos estudantes, como se fosse uma falha óbvia, desmerecedora - e pior, ilegal e autoritária - discutir política e usar instrumentos político numa questão política. Os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo deram uma pequena lição de democracia ao governador Alckmin, ao negar o pedido de reintegração de posse: "[as ocupações] não envolvem questão possessória, pois o objetivo dos estudantes é apenas fazer com que o Estado abra discussão sobre o projeto de reorganização da rede de ensino". Desta vez a justiça negou a educação feita na base de porrada, bombas e balas "não-letais" (que eventualmente matam), tão ao gosto dos governadores paulista nos últimos vinte anos. Talvez a proposta tucana seja das mais razoáveis para o momento (não tenho opinião formada e não palpito sobre), e me parece que os alunos não estão negando de antemão essa possibilidade: é certo que duvidam que seja, e questionam, principalmente pela forma como Alckimin está tentando implementá-la. Se o governo apresentar argumentos sensatos, as ocupações perdem força no momento seguinte.
Há pressões para que o governador abra discussões sérias - dessas que envolve apresentação e discussão de propostas e não o-governo-fala-a-população-acata. Entretanto, não é de agora que o PSDB demonstra apreço nenhum pela democracia: gestões feitas de cima para baixo, questões sociais resolvidas preferencialmente com polícia militar e porrada, negação e desqualificação do contraditório, leis em interesse próprio, complacência com corrupção e descrédito do processo eleitoral. Para sorte do partido de Alckmin, a Grande Imprensa brasileira defende o mesmo modelo de democracia dos cemitérios - e das ditaduras -, em que o povo acata bestializado o que pequenos ditadores da Casa Grande determinam - "sim, senhor". Desta feita os estudantes da rede estadual de São Paulo decidiram dizer "Não!", ao gosto do operário de Vinícius de Moraes: "E o operário disse: Não!/ E o operário fez-se forte/ Na sua resolução/ (...)/ Em vão sofrera o operárioSua primeira agressãoMuitas outras se seguiramMuitas outras seguirão.Porém, por imprescindível/ Ao edifício em construção/ Seu trabalho prosseguiaE todo o seu sofrimento/ Misturava-se ao cimentoDa construção que crescia".

ps: não era o foco de meu texto, mas destaco que a pauta dos estudantes da rede estadual, diferentemente das usuais pautas da Apeoesp ou dos universitários (professores e alunos), não é corporativa. Que professores e universitários aprendam algo com toda essa mobilização.

26 de novembro de 2015.

E os estudantes ensinam: a escola é nossa, não do governo.